segunda-feira, abril 04, 2011

Mário Viegas

Alguém lembrou que acabam de passar exatamente 15 anos desde a morte de Mário Viegas. Viegas foi um grande ator e um excecional "diseur", a quem se fica a dever um trabalho muito importante na divulgação da poesia portuguesa. Vi-o pela última vez no curiosíssimo "Europa não, Portugal nunca", onde construía um diálogo criativo com a assistência e punha em causa algumas das coisas adquiridas do nosso quotidiano político.

Conheci pessoalmente Mário Viegas em 1973, durante o serviço militar. Recordo-me de ele ser já alferes, ao tempo em que eu era aspirante. Um dia desse ano, num juramento de bandeira na parada da EPAM, meses antes do 25 de abril, coube-me fazer o discurso às tropas, na minha qualidade de oficial de Ação Psicológica da unidade militar. O meu texto tinha sido construído de forma equívoca, com diversas ambiguidades, que tentavam compatibilizar a solenidade da ocasião com algumas mensagens que eu tinha por subtis (lido hoje, confesso que acho o discurso gongórico e algo pretensioso). No final, a figura militar que presidia à sessão levantou-se na tribuna e lançou, com voz forte: "Nosso aspirante, aproxime-se!". Lembro-me que fiquei gelado e lá avancei para o palanque. Afinal, era para me felicitar pela "elevação" do texto... Minutos depois, Mário Viegas comentou-me: "Quando o brigadeiro te chamou, achei que era para te dar voz de prisão". Eu também.

Aqui deixo o som de Mário Viegas no genial "Manifesto anti-Dantas", de Almada Negreiros.

Europa política

"Pequenalmocei" hoje, em trabalho, com o braço-direito de Catherine Ashton, o embaixador Pierre Vimont. Ele é o secretário-geral executivo do Serviço Europeu de Ação Externa.

Perguntei-lhe as impressões sobre o seu regresso a Bruxelas. Em 2002, Vimont saiu de representante permanente (embaixador) de França junto da União Europeia para chefe de gabinete de ministros dos Negócios Estrangeiros e, mais tarde, para embaixador em Washington.

- A União Europeia de hoje é um mundo em tudo diferente do que existia ao tempo em que ambos por lá andávamos. Tudo mudou imenso, depois da Europa "a quinze", em que todos nos conhecíamos uns aos outros. Só ias identificar alguns contínuos...

Canalhices


Um blogue publicou, há dias, o facsimile de um telegrama do Ministério dos Negócios Estrangeiros. O blogue está no seu pleníssimo direito de tentar ter acesso a correspondência interna do MNE. Alguém lha facultou.

Há semanas, um jornalista referiu-se, a meio de uma conversa ao telefone comigo, ao teor de um telegrama recebido no MNE, assinado por um nosso embaixador. Perante o meu espanto e a pergunta de como obtivera o texto, replicou: "Foi alguém do MNE que mo deu...", disse, já um tanto arrependido de me ter falado no assunto. Também aqui, o jornalista fez apenas o seu trabalho.

A questão é conosco. Quando integramos o serviço público comprometemo-nos, "solenemente, pela nossa honra, que cumpriremos com lealdade as funções que nos são confiadas". Dessa lealdade faz parte o dever de confidencialidade, nomeadamente face a dados a que tenhamos tido acesso por virtude das funções que ocupamos.

Na diplomacia, os telegramas são a essência da profissão. Através deles, frequentemente, dizemos a nossa opinião sobre coisas muito sensíveis e transmitimos ao poder político informações de grande delicadeza, tendo como finalidade a defesa dos interesses do país na ordem externa. Se os diplomatas começarem a pressentir que, um destes dias, as suas avaliações ou pareceres recolhidos através de terceiros, que legitimamente não querem ser identificados, vão acabar por surgir nos blogues ou na imprensa, naturalmente que passarão a "fechar-se em copas" e a limitar drasticamente a utilização dos meios oficiais de correspondência.

Dir-se-á que ambos os telegramas a que aqui faço referência são inócuos - um é de natureza administrativa e o outro pouco longe disso. Porém, isso é completamente irrelevante. Trata-se de um telegrama e os diplomatas aprendem, no "bê-á-bá" profissional, que um telegrama é um documento "sagrado", que se lê se a isso temos necessidade profissional (na regra do "need to know") e que, depois, o "esquecemos".

Quem se sente tentado a passar para o exterior um telegrama administrativo é sempre capaz de ir bastante mais longe. Quem transmitiu os telegramas ao blogue e ao jornalista quebrou um dever de Estado. E quem infringe um compromisso que, perante o seu país, jurou "pela sua honra" só tem um qualificativo: é um canalha.

domingo, abril 03, 2011

Porto

Vitória suada, mas merecida, na Luz, onde o Porto mais gosta de ganhar. Uma magnífica época.

( Em tempo: diálogo de alguém, hoje, com um portista: 
- Foi muito triste ver o Benfica desligar a eletricidade no estádio...
- Não foi o Benfica! Fomos nós que apagámos a Luz... )

Revejo-me no canto superior esquerdo da imagem.

Gilberto Gil

O Chatelet esteve ontem a abarrotar para ouvir Gilberto Gil, acompanhado pelo filho e por esse génio do violoncelo que é Jacques Morelenbaum. Há mais de 20 anos (desde Londres) que não ouvia Gil cantar ao vivo e, devo confessar, fiquei rendido ao seu profissionalismo, num espetáculo onde, da música brasileira tradicional, ele saltou frequentemente para o rock e para o jazz, criando uma sonoridade apelativa para faixas muito alargadas de auditório.

No tempo em que vivi no Brasil, fui testemunha da imensa popularidade de Gilberto Gil. Um dia, o assessor internacional de Lula, Marco Aurélio Garcia, comentou-me que "Gil é o Lula de Lula" - querendo com isso significar que o cantor aparecia aos olhos do presidente como uma figura carismática, quase mítica, no cenário brasileiro. Por esse tempo, e para escândalo de muitos, Gil, embora mantendo-se ministro da cultura, continuou a fazer concertos pelo mundo, a ganhar dinheiro. "Não existe pecado do lado de baixo do Equador"...

sábado, abril 02, 2011

Comemorações

Há cerca de um ano, escrevi por aqui isto:

"Em Portugal, o 25 de abril é oficialmente celebrado com uma sessão de discursos políticos e partidários na Assembleia da República. Todos os anos, para além da aturada observação jornalística de quem leva ou não um cravo ao peito, a atenção pública volta-se para o tom e exegese dessas intervenções, que invariavelmente utilizam a comemoração abrilista para tratar a realidade da conjuntura política do presente. Assim, aquilo que poderia ser um espaço de proclamação de elegias à liberdade conquistada nessa data acaba por se transformar numa arena de severo combate político, com as diversas leituras de "abril" a servirem de arma de arremesso, mais ou menos subliminares. Julgo que ninguém, com sinceridade, acreditará que essa maratona declaratória contribui minimamente para louvar as virtualidades da Revolução e para cativar novas gerações para o culto desse momento fundacional da nossa democracia."

A decisão de, este ano, não organizar a sessão solene na Assembleia da República, devido a razões de natureza conjuntural, é uma excelente notícia.

Offshore

Há dias, a propósito de uma opinião que expressei, um amigo, vindo de Portugal, comentava: "dizes isso porque estás 'offshore' "...

Gostei da metáfora, nesta fase em que todos somos beatos do petróleo que não temos.

Costa do Marfim

O sentido dos acontecimentos na Costa do Marfim parece apontar, finalmente, para que Allassane Ouattara venha a assumir a presidência, depois de um ato eleitoral em que a comunidade internacional reconheceu a sua vitória sobre Laurent Gbagbo. São boas notícias, para aquele país, para a África e para as Nações Unidas.

Por uma vez, o Conselho de Segurança da ONU foi unânime na fixação de sanções a Gbagbo, reforçando e impondo a legitimidade do sufrágio e, muito em particular, evitando a "salomónica" partilha do poder, como havia acontecido no Quénia e no Zimbabué. Ou, o que seria ainda pior, a divisão do país, como aconteceu no Sudão - neste caso sob o inconsciente júbilo internacional, que, uma vez mais, deitou para o caixote do lixo da História a sábia regra de ouro da Carta da OUA (a qual, pelos vistos, é desprezada pela União Africana).

Esta crise deixou evidente que se vive em África um tempo de ostensiva tentativa de implantação de novos poderes regionais, que, sem surpresa, parece colocarem em segundo plano a preservação das regras democráticas, para garantirem a fixação da sua influência nacional, mesmo em zonas geopolíticas que, à partida, lhes seriam alheias. Isso aconteceu na Costa do Marfim, convém dizê-lo, devido à conjuntural auto-limitação de um vizinho poderoso (a Nigéria). E é importante que fique também dito: a teimosia de Gbagbo, com as milhares de vítimas e o custo económico e social que acarretou para o seu país, ficou muito a dever-se à esperança que colocava na sua proteção por parte de alguns poderosos amigos africanos, os quais, felizmente, perderam a parada.

O caso da Costa do Marfim suscita também, e uma vez mais, a eterna questão do que é, ou pode ser, a democracia em África. Com exceções tão escassas que já as tomamos como alheias ao próprio continente - como é o exemplo de Cabo Verde -, a grande maioria dos modelos políticos africanos funciona na lógica do "ou tudo ou nada": quem está no poder acapara o aparelho de Estado e os recursos do país, quem perde as eleições tem, as mais das vezes, como destino o exílio, a prisão ou ainda pior. Num modelo intermédio, alguns regimes "cooptam", para melhor neutralizar, personalidades da oposição, através da partilha da apropriação patrimonialista em que assentam o seu poder.

Uma conhecida escola de pensamento "do Norte", que se quer "compreensiva" com a necessidade de "evolução" desses modelos "do Sul", tidos como eternamente protodemocráticos pelas leis do destino, defende que se deve "respeitar" o gradualismo da evolução institucional desses Estados, que é necessário "compreender" algumas vantagens estratégicas, em termos de "estabilidade", que justifica a perpetuação dos seus dirigentes no poder, que há que ter "compreensão" pelas limitações que neles sofrem alguns direitos de cidadania - de acesso aos media, das mulheres, das confissões religiosas, etc. Às vezes sem se dar conta, quem assim pensa acaba por revelar um paternalismo racista e eurocêntrico, na assunção implícita de que a democracia é só para alguns eleitos, não querendo entender que só se aprende a nadar na água. Coincidem nesta escola "compreensiva", curiosamente, algumas correntes da esquerda "multiculturalista" e "porto-alegrista" e, claro!, os usufrutuários liberais das vendas de armas, das negociatas e da corrupção. E mais não digo, para não estragar o fim-de-semana. 

sexta-feira, abril 01, 2011

A cadeira

Os tempos hoje serão outros, mas sou do tempo em que o exercício discricionário da hierarquia permitia a certas chefias assumirem atitudes de forte autoritarismo. A certeza de que a opinião dos dirigentes dos serviços era uma incontornável chave para promoções ou colocações colocava os respetivos subordinados numa dependência quase humilhante. 

A memória da carreira diplomática portuguesa, aliás como de qualquer outra, está cheia de historietas de autoritários chefes. Famoso, entre nós, era um embaixador que sempre obrigava o respetivo secretário, numa capital do Médio Oriente (em que, curiosamente, já não temos embaixada), a ficar de pé, ao lado da sua mesa de trabalho, enquanto despachava a papelada do dia, às vezes por mais de uma hora. Há quem diga que o secretário deverá a essa penitência algum distúrbio psicológico que veio a revelar.

Estas patéticas expressões de autoritarismo não se ficavam pelos postos no estrangeiro, também se praticavam em Lisboa. Num verão do final dos anos 70, durante as férias de um subdiretor-geral (na altura, a designação oficial no MNE era "adjunto do diretor geral") da área económica, o lugar foi interinamente preenchido por um diplomata mais velho que, por uma qualquer razão, transitava pelas Necessidades, desde há alguns meses, sem ocupação fixa.

Aquele nosso chefe interino compensava a sua manifesta irrelevância profissional, que o mantinha oficialmente sem destino, com uma soberba de atitude de onde destilava uma importância que só ele se atribuía. Além do mais, a sua postura contrastava vivamente com o colega que estava a substituir - um homem cordial, muito apreciado pelos colaboradores.

Logo no segundo dia da presença desse episódico chefe, fui ao seu gabinete, para lhe entregar um documento. Mal levantou os olhos à minha chegada, apenas grunhindo um relutante "bom-dia" à saudação que lhe dirigi. Notei, então, que tinha desaparecido a cadeira que sempre estivera em frente à secretária. Decididamente, o homem era dos que queria ter as pessoas de pé, durante o despacho.

Passei a "boa nova" a quem comigo assegurava a permanência na Direção-geral dos Negócios Económicos, nesse verão, que já se anunciava curioso. Ao contá-la a um colega um pouco mais antigo do que eu, figura alta e com voz tonitruante, notei-lhe um brilho irónico no olhar, acompanhado de um "logo veremos!".

Na tarde desse dia, o nosso grupo de jovens diplomatas das "Económicas", que regressava do tradicional almoço nas "Espanholas" (um restaurante vizinho, onde a densidade de pessoal diplomático costuma ser superior aos níveis recomendados pela OMS...), foi surpreendido por um desafio desse nosso colega: "Vocês não querem ver a minha ida a despacho?" Porquê? "Logo verão!", disse, críptico. 

Um tanto artificialmente, colocámo-nos à conversa no "hall", para o qual dava o gabinete da chefia. Um minuto depois, o nosso colega emerge da sua sala de trabalho com uma pasta de papelada na mão, pisca-nos o olho e, decidido, entra no gabinete do nóvel chefe. Nem trinta segundos eram passados e já a porta se abria de novo, com o jovem diplomata a sair, sem papéis na mão, e a dizer alto, lá para o fundo do gabinete: "É um minuto, já volto!". E vimo-lo avançar decidido para a sua sala de trabalho.

Perplexos, interrogámo-nos sobre a cena. Ter-se-ia esquecido de alguma coisa? Algum papel? Mas, afinal, o que é que esta ida a despacho tinha de tão especial?

Tudo ficou mais claro, quando, instantes depois, o vemos regressar, a sorrir, com uma cadeira na mão, que introduziu no gabinete onde iria a despacho.

Não ouvimos, embora possamos presumir, a reação do chefe à entrada da cadeira. Mas ficou-nos para sempre no ouvido a voz muito forte do nosso colega, ainda a porta não estava totalmente fechada, a dizer: "Então não vê? É uma cadeira, para eu me sentar!".

Desde essa tarde, e pelo tempo que durou o interinato da chefia, passámos a poder contar com uma cadeira no gabinete desse esquecido chefe interino, onde sempre nos sentávamos para o despacho. Às vezes, para grandes males...

António Duarte Silva (1941-2011)

Era um homem cordial, um conversador delicioso, muito inteligente e culto. Foi autarca, governante e gestor. Conheci-o em diversas circunstâncias e sempre dele colhi a imagem de uma pessoa de grande integridade, muito dedicado aos interesses do país. 

Morreu hoje, subitamente, aqui em França.

Crise na maioria

Numa recente reunião das chefias da UMP, o partido da maioria que apoia o presidente francês, o antigo primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin, pertencente à sensibilidade mais centrista, mal chegado à mesa de trabalho, dirigiu-se desta forma ao presidente Nicolas Sarkozy:

- Senhor presidente, estamos divididos e fraturados, estamos em crise, a situação é muito grave, há aqui claramente dois campos!

Conhecidas que são algumas tensões políticas que atualmente parece atravessarem a maioria governamental, os presentes na sala terão ficado algo expectantes. Raffarin esclareceu:

- Há quem aqui tenha já café e há quem ainda o não tenha...

A história vem ontem numa revista.

Nada melhor que o humor para descrispar os ambientes políticos...

quinta-feira, março 31, 2011

Petróleo, mentiras e árabes

Hoje, dia das mentiras, deixo aqui registada uma que ficou na memória da minha geração.

Em fevereiro de 1971, quando o mundo, e Portugal dentro dele, passava por grandes perpexidades no tocante ao abastecimento oretolífero, um rumor chegou, uma tarde, a setores políticos e jornalísticos de Lisboa: um grupo de importantes "sheiks" árabes iria passar pela capital portuguesa, tendo marcado um jantar no "Tavares", o mais emblemático restaurante da cidade. A notícia surgira, através de alguém da TAP, pelo que um membro do governo ter-se-á deslocado apressadamente de Coimbra para tentar um contacto com os visitantes, os quais talvez pudessem ser a chave para a flexibilização das condições altamente restritivas em que Portugal então vivia, no tocante a fornecimentos de petróleo.

No diário "O Século", que havia conseguido, "de muito boa fonte", a informação sobre o repasto árabe nos dourados do "Tavares", o chefe de redação, José Mensurado, decidiu enviar o repórter Roby Amorim para o local, tendo este testemunhado a chegada do Rolls Royce, com batedores, que transportava os nababescos visitantes. Estes, chefiados pelo "príncipe Iben Seddak", relutantes à intrusão jornalística, revelaram-se pouco prolixos, deixando apenas cair, através de um tradutor, escassas e pouco esclarecedoras declarações, as quais, no entanto, serviram de farto objeto, no dia seguinte, a magníficos título, notícia e fotografia, nessa "caixa" em exclusivo obtida pelo jornal da família Pereira da Rosa (de que conservo um precioso exemplar). A cinco colunas "O Século" garantia: "Negoceia-se em Teerão. Mas encontram-se árabes em Lisboa e o tema também é petróleo", referindo-se às negociações em curso sobre o chamado "Acordo de Teerão" no âmbito da OPEC.

Para o que aqui interessa: era tudo falso! Os tais "árabes", vestidos a rigor no "Paiva", eram figuras da vida social lisboeta (o chefe cozinheiro Michel da Costa, Manecas Mocelek, Nicha Cabral, Jorge Correia de Campos e outros), "O Século" foi objeto de um gozo geral (só minorado pela intervenção da censura) e o contacto credibilizador na TAP terá mesmo sofrido represálias, tal como o próprio José Mensurado. No "República", Artur Portela Filho escreveu então, na sua coluna "A Funda", uma crónica deliciosa, intitulada "Os árabes da rua do Século". Pelos cafés de Lisboa, a história (que conto de memória) deu para rir, por semanas.

O estertor da ditadura já era abalado por estas pequenas mentiras. Meses depois, surgiriam por Lisboa boatos de uma revolta militar. O regime não acreditou. Ainda bem. Era verdade.   

Em tempo: leia aqui toda esta história de forma bem mais completa.

Jornalismo

Há dias, já no auge da crise na Líbia, o jornalista da RTP, Paulo Dentinho, fez uma magnífica entrevista a Mouammar Kadhafi, um "furo" jornalístico da maior qualidade. Equilibrada e inquisitiva q.b., a conversa foi crescendo de ritmo e foi marcada pela inteligência e pertinências das perguntas, que permitiu extrair respostas curiosíssimas. 

Vi a entrevista de Paulo Dentinho ser citada, abundantemente, em toda a comunicação social internacional, com extratos a correrem o mundo das grandes televisões. Curiosamente, ou talvez não, esta excelente peça de jornalismo passou quase despercebida em Portugal, pelo menos a avaliar pelo que me chegou.

Será que se tivesse sido produzida por canais privados, com outros meios coadjuvantes de ressonância mediática, o destino português da peça teria sido outro? Deixo a pergunta.

Coincidências

Há dois dias, veio aqui a Paris, em serviço, uma amiga de Lisboa. Ao final desse dia, alguém comentou que essa pessoa era extremamente parecida com uma determinada jornalista portuguesa. 

Era verdade! Eu próprio tinha feito uma "gaffe", uma vez, confundindo as duas. Mas já não via essa jornalista há uns bons 12 anos.

Ontem, chegado ao escritório, recebo um telefonema. De quem? De Portugal, dessa jornalista, a convidar-me, em nome de uma organização onde trabalha, a fazer uma palestra em Lisboa, no início de Maio. 

Com a maior naturalidade, e para grande surpresa dela, disse-lhe: "Ainda ontem aqui falámos de si". Mas quem estava mais surpreendido era eu.

As coincidências cada vez mais me intrigam. Leiam aqui, aqui, aqui e aqui.

quarta-feira, março 30, 2011

Gorbatchev

Há dias, contei aqui uma historieta de Gorbatchev. Dou-me agora conta que o antigo presidente fez ontem 80 anos, recebendo homenagens um pouco por todo o mundo, que o consagram como alguém responsável por um tempo charneira da história contemporânea. Escrevi "todo mundo"? Na Rússia, apenas 14% das pessoas têm uma memória positiva de Mikhaïl Gorbatchev.

Um dia, em Março de 2000, António Guterres convidou o então ministro da Defesa, Júlio Castro Caldas, e eu para um almoço com Gorbatchev, na residência oficial, em S. Bento. Confesso que entrei para esse almoço (a cinco, porque nele estava também o intérprete que sempre acompanhava Gorbatchev) com uma elevada expectativa. Na realidade, tratando-se de uma figura que atravessara um período riquíssimo da vida internacional, que protagonizara o fim do mundo soviético, que vivera a trágica convulsão interna dessa desagregação, que fora interlocutor estratégico privilegiado dos Estados Unidos e de personagens como Thatcher, Kohl ou Mitterrand - por todas essas e por outras razões mais eu esperava ir ter um almoço memorável. Nunca comparei notas com António Guterres e Júlio Castro Caldas sobre esse repasto, mas devo dizer que saí dele um tanto desiludido com a figura que o justificou.

Mikhaïl Gorbatchev não deixa de ser uma personalidade interessante, mas, quando o aprecio à luz daquelas horas em que o ouvi, está muito longe de ser uma figura fascinante. Falou imenso, mas deu-me a sensação de ter criado e ensaiado um discurso feito à medida daquilo que os seus interlocutores dele esperariam, auto-justificativo, muito óbvio, com ideias que, como dizia o outro, quando eram originais não eram boas e que quando eram boas não eram originais. Mais tarde, ao lê-lo, voltei a não encontrar razões para mudar de opinião.

Dito isto, que fique claro!: tenho consciência de que Mikhaïl Gorbatchev é uma das grandes figuras da história contemporânea, a cujo sentido de compromisso e adesão sincera às ideias da mudança a liberdade e paz internacionais muito devem. Por isso, "nazdrovia" pelos seus 80 anos.

BFM

Fui ontem ao canal de televisão BFM, convidado a comentar a situação político-económica em Portugal. A BFM é uma espécie de SIC-Notícias da área económica, com grande penetração nos meios empresariais e dos mercados, que também lhe advém da sua ligação ao diário "La Tribune".

Dir-se-á que, nos dias que correm, a presença de um embaixador de Portugal num debate televisivo pode constituir um exercício de alto risco. Talvez seja. Mas considero que, independentemente da complexidade dos tempos que atravessamos, me compete dar notas explicativas sobre o funcionamento do nosso sistema institucional, colocando, com serenidade e isenção, as posições que definem o debate político em Portugal. E que também pode ser útil, para o espetador e ouvinte (porque a entrevista passou também na BFM rádio) francês, conhecer melhor as razões por detrás de certas decisões que Portugal titula.

O "som" da entrevista aparece neste "podcast", desde que se tenha a paciência de alguns minutos.

A economia e a democracia*

A imprensa europeia tem estado particularmente atenta, nos últimos dias, à situação política portuguesa, com especial destaque para a reprovação pelo parlamento do Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC), que desencadeou o pedido de demissão do primeiro-ministro José Sócrates.

Diversos líderes europeus, tal como muitos comentadores internacionais, abordaram a situação criada em Portugal, alguns deles emitindo juízos de valor sobre o sentido da decisão parlamentar portuguesa.

Ninguém terá dúvidas que, mais do que em qualquer outro lugar, esta questão foi e é objeto de uma elevada polémica em Portugal. Governo e oposição têm mantido um forte debate sobre as possíveis consequências do voto que não aprovou o PEC: o executivo diz que o mesmo vai no sentido das recomendações da Comissão e do Banco Central Europeu, que estava autorizado a executar, e a oposição considera que o governo ultrapassou o mandato que tinha para assumir compromissos na ordem externa. Esse debate, que não se encerrou ainda, acaba por ser o pano de fundo em que se projeta a ideia de convocação de eleições antecipadas.

Pelo modo como a opinião pública internacional tem vindo a pronunciar-se sobre este assunto, fica a sensação de que não se terá, porventura, interiorizado devidamente que o sistema europeu assenta, primeiro do que tudo, na afirmação democrática das instituições representativas dos seus Estados.

Poderá dizer-se que, algumas vezes, a racionalidade técnico-económica de algumas decisões poderia, em tese, estar isenta de desacordos de natureza nacional, que acabam por influenciar a eficácia do sistema colectivo.

É um erro pensar assim. No estádio que vivemos da construção europeia, a responsabilidade principal dos governantes continua a ser perante as instituições do seu país, que lhes concede a legitimidade para governar e tomar decisões.

Tal como, no passado, alguns tratados europeus caíram ou tiveram de ser retificados por referendos em alguns Estados, a Europa tem de aprender a viver com a diversidade dos seus modelos institucionais, com a diferente força dos seus governos na sua ordem interna e, por essa via, com os efeitos, paralisantes ou não, que certas posições nacionais possam vir a gerar sobre o processo coletivo. Isto é válido para o voto parlamentar que, em Portugal, estaria na origem da crise política, tal como aceitámos, com naturalidade, a decisão irlandesa de realizar um sufrágio, ou como agora aguardaremos o resultado do voto finlandês, com o seu impacto na aprovação do novo Mecanismo de Estabilidade.

No caso português, aconselho que se olhe menos para a árvore e um pouco mais para a floresta. Assim, devemos notar, em prioridade, que Governo e o principal partido da oposição, tendo estado em lados opostos na questão da aceitação do projeto de PEC, afirmaram, contudo, a sua comum e plena adesão às metas de redução do défice, não apenas para este ano, mas também para os próximos dois anos, sem a mais pequena divergência entre si no tocante àquilo a que Portugal se comprometeu perante as instituições internacionais. 

* Tradução do artigo que hoje publico no diário económico "Les Echos" (30.03.11). Texto original aqui ou link aqui.

Fico muito grato a Vasco Campilho pelo simpático post que publicou, a propósito deste artigo, no Albergue Espanhol.

terça-feira, março 29, 2011

José Alencar (1931-2011)

A morte deve ter andado um tanto desorientada, nestes últimos anos, com José Alencar. O vice-presidente de Lula fintava-a com regularidade, sempre com um sorriso nos lábios, num desafio constante, uma espécie de teimosia irónica. Mas tudo tem o seu fim e estava escrito que, um dia, José Alencar ia perder uma das batalhas. Que iria ser a final.

Quando, em 2003, Lula foi aconselhado a ter Alencar na sua "chapa", dificilmente poderia prever que este industrial mineiro, escolhido para lhe dar credibilidade junto do setor privado, se iria transformar num dos seus mais leais apoios, num sustentáculo valioso, que nunca vacilou, mesmo nos piores momentos dos seus dois mandatos.

Praticamente desde a minha chegada ao Brasil, tive o inestimável privilégio de poder manter com José Alencar uma relação marcada por uma forte estima e simpatia, muito influenciada pela grande amizade que se estabeleceu entre os nossos cônjuges. Fizémos parte do grupo dos amigos que o casal escolheu para uma memorável deslocação ao Rio, comemorando o aniversário do seu casamento. Recordo jantaradas divertidas em nossa casa, com José Alencar a contar-nos, com a graça imensa que tinha, as insuperáveis historietas mineiras, daquela gente que "nunca se zanga mas também nunca se reconcilia". Pena tenho de não saber reproduzir as aventuras do "Fernandinho", cuja saga, acabada num posto consular nos Estados Unidos, era um êxito garantido para as audiências. Mário Soares, Jorge Sampaio e Freitas do Amaral, entre outros visitantes portugueses, foram testemunhas do ambiente aberto e franco que a segunda figura da hierarquia brasileira sabia criar à sua volta.

Há uns meses, recebi uma simpática nota manuscrita de José Alencar, em resposta aos votos de restabelecimento que lhe havia formulado, aquando de uma das suas, cada vez mais frequentes, recaídas. Dela transparecia, para além da sua profunda ligação a Portugal, a sua imensa fé religiosa, que talvez tenha sido uma das fontes onde ia beber a sua admirável coragem.

Lamento não ter hoje comigo a garrafa da "melhor cachaça do mundo", que fez questão de me enviar, depois de eu ter elogiado o néctar, num almoço em casa de outro amigo comum, o ministro da Defesa, Nélson Jobim. Nesse dia, ainda abalado por um internamento recente, José Alencar disse-me, em voz baixa: "Temos de arranjar dois copos daquela cachacinha que ali está, com rótulo verde. Mas não diga à Mariza que um deles é para mim..."

Logo que puder, vou beber um copo dessa cachaça pela memória desse amigo, um homem bom e corajoso, que se chamou José Alencar.


Em tempo: em 31.3.11, publiquei um artigo, baseado neste post, no jornal "Correio da Manhã"

Fado

A UNESCO acabou ontem o dia a ouvir excelente fado. No âmbito da campanha para a promoção do fado a "património imaterial da humanidade", a Câmara Municipal de Lisboa, em articulação com a representação diplomática portuguesa junto da UNESCO, inaugurou em Paris uma belíssima exposição documental sobre a história da canção portuguesa, ilustrada por duas fantásticas vozes do novo fado, que nunca tinha ouvido ao vivo: Carminho e Ricardo Ribeiro.

Ouçam a primeira aqui e o segundo aqui.

segunda-feira, março 28, 2011

Asas diplomáticas

Era (e é) um homem bastante mais velho do que eu, com um ar "grave" mas com uma imensa graça, um diplomata de linguagem franca e certeira. Chefiou postos importantes e, em todos eles, soube manter uma postura que tinha o seu quê de snobe, de aristocrático, sempre bastante irreverente, ao jeito algo britânico que cultivava.

Viajar com ele, pelo mundo, era uma delícia, pelas notas de ironia que, a cada passo, o quotidiano lhe sugeria, pelos qualificativos que colava à figura de colegas. Não se sabe bem porquê, um embaixador britânico, com um "stiff upper lip" exagerado, ficou por ele eternamente crismado de "Serafim", um antigo assessor diplomático de Belém era o "Brzezinski da Reboleira" e, a propósito de um ministro que, em meados de um qualquer Dezembro, estava a tomar-se ares de "grandeza", comentou alto, à mesa de uma reunião de trabalho, para ele ouvir: "é por esta altura do Natal que os 'pinheiros' têm o seu momento de glória"...

Um dia, viajávamos em grupo para uma capital europeia, cujo nome não é para aqui chamado. Ainda no avião, disse-me, algo angustiado como sempre foi pelas coisas da gastronomia:

- O nosso colega, que hoje oferece o almoço, é um dos embaixadores mais forretas da nossa carreira. Desde há décadas que, em casas dele, nunca comi outra coisa que não fosse frango. Você vai ver!.

Não fiquei nada preocupado, apenas curioso em saber se o meu colega tinha ou não razão.  Eu não conhecia o nosso anfitrião, que nos aguardava no aeroporto. Pareceu-me um homem simpático. Ainda antes de nos acomodarmos no hotel, fomos diretamente para o almoço que nos oferecia na residência da embaixada.

Como o grupo era grande, o embaixador tinha previsto mesas redondas. Eu ficava numa mesa distante da do meu companheiro, que o dono da casa, por óbvias razões de antiguidade, tinha levado para junto de si.

O almoço começou. Os convidados mais importantes, à volta do embaixador, foram os primeiros a ser servidos. A certo passo, o meu olhar cruzou-se com o do meu companheiro de viagem, sentado nessa mesa principal. Então, sem denotar qualquer particular expressão facial, esse meu amigo voltou-se ostensivamente para mim e, com os braços em ângulo reto, aproximou e afastou, por várias vezes, os cotovelos do corpo. O gesto não era nada elegante e, para alguns, terá parecido apenas um casual e inopinado exercício de descontração muscular. Só eu percebi: o almoço era, de facto, frango!

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...