terça-feira, outubro 26, 2010

Bocas

Alinhavando tópicos para uma intervenção na Gulbenkian, fui ontem almoçar numa ignota tasquinha próxima (se tivesse ido ao "Polícia", à "Gôndola", ao "Lacerda" ou ao "De Castro Elias," apareceriam, pela certa, alguns conhecidos e não conseguiria concentrar-me).

De saída, ouvi um cliente perguntar para o outro:

- E vocês, vão aderir à greve geral?

A resposta foi "portuguesmente" lapidar:

- Se for geral, lá terá que ser...

Mais pela similitude do ritmo discursivo do que por qualquer outra razão, veio-me à memória uma clássica, mas "benévola", graça anti-comunista dos anos 90. Nela, um cidadão pergunta para outro:

- Foste à última reunião do Comité Central?

- Não, mas se soubesse que era a última tinha ido...

Facebook

Hoje, acordei "no" Facebook. Sem que nada tivesse feito para tal, sem nunca me ter passado pela cabeça entrar na "rede social", alguém me "colocou" no Facebook, com fotografia (retirada da Wikipedia e tudo).

E, logo, alguns conhecidos, simpaticamente, já se "ligaram" à minha página... 

Alguém me pode dizer como conseguir "desarriscar-me" (como se diz no "argot" de Vila Real)?

segunda-feira, outubro 25, 2010

Pelé

Quando fui viver para o Brasil, em 2005, levava comigo o projeto de conhecer três  figuras - Pelé, Oscar Niemeyer e Chico Buarque. Também queria conhecer Lula, mas "that would come with the job".

Conheci e falei bastante com Niemeyer. Não conheci Chico Buarque, embora, de facto, nunca me tivesse esforçado muito para isso. Mas conheci Pelé, uma das figuras que, desde sempre, mais me fascinaram no mundo do futebol - com Beckenbauer, Cruyff, Platini e Di Stefano. 

Falei com ele pouco tempo, no intervalo de um famigerado Brasil-Portugal, onde uma seleção desenhada pelo senhor Queirós foi batida por uns humilhantes 6-2. 

Pelé acaba de fazer 70 anos. Nunca pensei que, depois daquela noite em Brasília, se voltasse a lembrar de mim. Mas lembrou. Semanas mais tarde, num restaurante de Nova Iorque, o meu sucessor viu Pelé e decidiu apresentar-se, revelando que seria o novo embaixador português no Brasil, para onde partiria dentro em pouco. Pelé foi simpático e, na conversa, perguntou-lhe: "vai substituir aquele embaixador de cabelos brancos, que eu conheci, muito triste!, em Brasília, na noite em que Portugal perdeu por 6-2 conosco?". O meu colega confirmou. Eu estava, de facto, bastante triste e isso não deve ter escapado a Pelé. O que ele não sabia é que tê-lo conhecido terá sido a minha única alegria daquela noite.

domingo, outubro 24, 2010

Estupidez

Há dias, num debate público, alguém disse: "Se a estupidez pagasse imposto, éramos um país rico".

Não me contive e lancei para o microfone: "Lá chegaremos! Mas, nesta conjuntura, convém não dar novas ideias..."

sábado, outubro 23, 2010

Moratinos

Estávamos num jantar de trabalho, no Luxemburgo, no fim do primeiro dia de um Conselho de ministros Assuntos Gerais da União Europeia, em 1996.

Abel Matutes, ministro espanhol de "Exteriores", revelou-me que a Espanha tinha um candidato para o importante lugar que o Conselho Europeu iria criar, dentro de dois dias, de enviado especial da UE para o Médio Oriente. Tratava-se de garantir à Europa uma maior visibilidade política no processo de paz, à altura do apoio que a ele já prestava no domínio económico. Matutes hesitava, contudo, em avançar, desde já, com o seu nome, porque tinha indicações de que os britânicos se lhe oporiam, pelo interesse que se dizia poderem ter no cargo. Porém, não tendo aparecido outros candidatos, a imediata colocação em liça de um nome colocaria a Espanha na dianteira, com todos os eventuais futuros nomes já a surgir como seus "challengers". Estas eram as razões que fundamentavam a hesitação.

Matutes explicou-me também que a figura espanhola pensada para o cargo era o seu recém-nomeado embaixador em Tel-Aviv, Miguel Ángel Moratinos. Perguntou-me se acaso eu poderia vir a obter o apoio de Lisboa para o candidato espanhol. Expliquei-lhe que não precisava de consultar Lisboa e ele que podia contar, a 100% e desde logo, com o pleno apoio do governo português. (Esta é, na prática, uma regra não escrita nas relações luso-espanholas contemporâneas: apoiamos mutuamente os nossos candidatos, a menos que tenhamos interesses próprios a salvaguardar ou compromissos com terceiros a respeitar).

Animado com a minha reação, e após discretas aproximações positivas a mais dois colegas, Matutes acabou por lançar para a mesa a proposta do nome de Moratinos. Como era de esperar, o britânico David Davies, "minister for Europe", pediu mais tempo para refletir. Para grande satisfação de Matutes, fui o primeiro a "sair à carga", argumentando que o desenvolvimento rápido da situação na região impunha que a Europa mostrasse, de imediato, uma "cara" no processo de paz que tomava então formas crescentemente positivas e que Portugal propunha formalmente que, daquele jantar, saísse já uma aprovação "de princípio" do nome espanhol (que elogiei sem sequer conhecer...). Por uma daquelas dinâmicas que, às vezes, ocorre neste tipo de encontros, e um tanto pelo efeito surpresa provocado pela proposta de Matutes, acabou por gerar-se um sentimento alargado de apoio ao candidato espanhol. O nome de Moratinos foi anunciado formalmente, logo nessa noite, como a proposta unânime dos chefes da diplomacia ao Conselho Europeu (isto é, aos primeiros-ministros). David Davies, à saída do jantar, estava agastado comigo e com a "pressão ibérica" que eu tinha ajudado a transformar em decisão...

Miguel Ángel ("Curro", para os amigos) Moratinos permaneceu no cargo de enviado especial da UE para o Médio Oriente de 1996 a 2003, tendo sempre mantido conosco um excelente relacionamento, nomeadamente durante a nossa presidência da UE, em 2000. Com um trato pessoal de grande afabilidade, que esconde uma forte determinação, Moratinos ajudou a credibilizar a voz europeia num processo onde, por uma culpa que não é sua, a Europa tem sempre e apenas o "óscar" para o "melhor ator secundário".

(Para a "petite histoire", posso revelar que, num jantar idêntico ao de 1996, que teve lugar na Grécia em Junho de 2003, os chefes da diplomacia europeia abordaram a questão da substituição de Moratinos, o qual pretendia abandonar o cargo de representante especial da UE para o Médio Oriente. Um único nome foi então discutido e a aprovação dos ministros em torno dele ficou praticamente garantida. O nome era... o meu! Porém, o governo português de então não havia tido nem o cuidado nem a elegância de me consultar previamente, tendo optado por "testar" a aceitabilidade do meu nome sem querer saber da minha eventual disponibilidade, contando que eu aceitaria o facto consumado. Por essa e por outras razões, recusei a possibilidade de indigitação. O Conselho Europeu ficou então sem um candidato que nunca o fora e Moratinos acabou, muito contra a sua vontade, por ter de prolongar-se por mais alguns meses nas funções. Esta historieta surgiu em vária imprensa da época, como, por exemplo, aqui. Na altura, sobre o assunto, escrevi isto.)

Moratinos seria chamado, anos mais tarde, a dirigir a diplomacia do seu país. O seu relacionamento com Portugal manteve-se excelente. Saiu anteontem do governo espanhol, numa remodelação surpresa efetuada pelo presidente Zapatero. 

A diplomacia espanhola e a diplomacia portuguesa têm, nos dias que correm,  fortes pontos de contacto e de convergência. Isso deve-se muito a homens como "Curro" Moratinos.

República

Bela (e imperdível, para quem puder) exposição sobre a (primeira) República, a que está na Cordoaria de Lisboa. 

Rigorosa e historicamente não demagógica, como seria de esperar de um académico do nível de Luis Farinha - que há meses tive o gosto de ter, como meu convidado, em Paris, para o colóquio realizado na Embaixada sobre a "Liga de Paris". E com um grafismo de grande força e elegância, na tradição a que o Henrique Cayatte nos habituou, desde há muito.

Três notas críticas, uma de fundo, duas de forma.

A exposição assenta, basicamente, nos eventos entre 1910 e 1926, isto é, sobre 16 anos de uma República que tem mais 84 de existência. Pena é que a mostra passe "a correr" sobre todo o cultivo da ideia republicana que a coragem de alguns fez sobreviver durante toda a ditadura salazaro-marcelista. E que o 25 de Abril, e o fantástico salto de modernidade e de aculturação democrática a ele subsequente, não sejam sublinhados como um orgulhoso património da nossa República.

Agora, as reticências de forma.

Presumo que 90% dos visitantes que chegam à Cordoaria se dirigem à sua entrada habitual. Hoje, eu e a totalidade das pessoas que queriam visitar a exposição lá fomos "ao engano", pela falta de indicação de que o início da mostra é, afinal, no torreão norte.

Posso ter sido iludido pela amostragem, mas a qualidade profissional das apresentadoras que explicam a exposição aos grupos pareceu-me fraca, com um discurso muito "papagueado". Uma delas relatava - aliás, perante o gramatical silêncio do auditório - que "houveram muitas revoltas" em certo período. Eu, que ia de passagem, não resisti e perguntei alto: "houveram?". E a menina, convicta de que eu estava a pôr em causa os factos, lá confirmou: "houveram, houveram, sim senhor!". Desisti...

Dito isto, acho importantíssimo que, quem puder, visite esta magnífica exposição, infelizmente só disponível até ao início de Dezembro. Despachem-se!

sexta-feira, outubro 22, 2010

América Latina

Ontem, ao intervir na Fundação Gulbenkian, a convite da Casa da América Latina e do Instituto Diplomático, dando uma visão portuguesa sobre aquele sub-continente americano, recordei uma obra histórica de Marcel Niedergang, um livro que li no final dos anos 60: "Les vingt Amériques Latines". 

Ao ouvir vários dos intervenientes, dei-me conta de como pode ser redutor o conceito "América Latina", da imensa variedade de realidades que ele esconde, sob a capa federadora da língua e de alguma cultura comum.

Organizei o que disse na minha intervenção em tópicos, a que talvez algum leitor pode achar interesse:

  • Há uma política de Portugal para a AL?
  • O Brasil. A América hispânica. As "Américas Latinas". A retórica e a realidade.
  • O tempo das ditaduras (na Europa e na AL). Portugal: uma política bilateral errática e de oportunidade. O Brasil e a AL no esforço internacional de defesa colonial de Portugal. Migrações e culturas.
  • A integração europeia e o início de um novo "olhar europeu" sobre a AL. Portugal e a Espanha na política exterior europeia. Papel da França e Itália.
  • Integração latino e sul-americana. Limites, frustrações e dúvidas.
  • Crescente comunidade de valores euro-latinoamericana. Ação comum nos fóruns multilaterais. Problemas: Cuba e outros. Haverá um agravamento futuro das divergências? Desenvolvimento e comércio. Protecionismo. A conflitualidade intra-AL como possível problema.
  • Processo íbero-americano: as dificuldades e os equívocos. O "gigantismo" do Brasil. A "tutela" espanhola. Os limites realistas do exercício. Portugal e Espanha no exercício.
  • O Brasil e a sua vizinhança hispânica. Bom gigante ou "big brother"? Conceito de "América Latina" não existe para o Brasil: só "América do Sul".
  • Brasil e EUA: manter a "América do Norte"...a Norte - questões Colômbia, Amazónia e IV Frota.
  • Para fazer em comum: reforma da ONU? Agenda do Milénio? Multilateralismo comercial e ambiental? Defesa e segurança? Atlântico Sul, droga e terrorismo numa possível agenda renovada.
  • Portugal e a AL: sempre velhos amigos mas não amigos velhos.

Taxi

Foi mais para ser simpático do que por qualquer outra razão que perguntei:

- Há muitas senhoras a dirigir táxis, cá em Lisboa?

O seco "algumas", saído da boca da motorista, logo me fez ver que estávamos longe de um ambiente distendido, passível da sociologia de pacotilha que o tema poderia, despretenciosamente, ajudar a cultivar, nos minutos da viagem.

Logo na primeira rotunda, tudo se confirmou:

- Saiu-te a carta na farinha Amparo, ó palerma! - gritou, abrindo o vidro, para um outro automobilista.

- Cada vez há mais bestas por aí - teve a confidência de me esclarecer, não fosse eu não ter percebido.

Afundei-me no banco, por detrás do meu "Notícias", lamentando não estar a ler outra literatura mais consonante com a matriz da minha condutora, como "O Crime" ou quejandos. Estou certo que isso trar-me-ia outro nível potencial de cumplicidade. 

Até a feminilidade é afetada pela crise. Ou será só a educação?

"Ágora"

Um convite da Junta de Extremadura levou-me, há dias, a Espanha, onde, de 18 a 24 de outubro, tem lugar a 10ª edição do "Ágora - el debate peninsular". Devo dizer que foi para mim uma agradável surpresa confrontar-me com este magnífico projeto, que mobiliza algumas centenas de pessoas, sob a direção competente de Ignácio Sanchez Amor.

Fiz parte de uma mesa sob o lema "Geometria Variable - los nacionalismos en la península ibérica", moderada pelo professor de Ciência Política da universidade de Madrid, Carlos Taibo, por Maria do Carmo Dalmau, ligada às questões da Catalunha, por Xosé Manuel Beiras, fundador do Bloque Nacionalista Gallego e pelo próprio diretor do Ágora, Sanchez Amor. 

Foi um excelente e muito vivo debate, de que deixo apenas uns escassos tópicos da minha intervenção inicial:
  • a Espanha no imaginário diplomático português. Os "demónios ibéricos" da História. Ditadura e democracia.
  • os "três D" da antiga relação luso-espanhola: desconfiança, desconhecimento, dissimetria.
  • Espanha e Portugal: as realidades por detrás da retórica.
  • dissídios do passado recente: os rios, as pescas, os comandos NATO, os bancos, etc.
  • problemas do presente: o proteccionismo espanhol, PT/Telefónica.
  • a relevância do fenómeno nacionalista espanhol na atual relação bilateral Lisboa-Madrid.
  • cooperação transfonteiriça: dois Estados e várias nações. Soberanias e cooperação. Realismo e respeito.
Confesso que foi um grande prazer participar neste exercício. Por lá estiveram muitos portugueses, desde Jaime Nogueira Pinto a Joaquim Pina Moura, de Manuela Ferreira Leite a Ricardo Araújo Pereira (esse mesmo! falando "de que se ríen los vecinos?").

Como me dizia, depois de uma saudável e solta jantarada, um (novo) amigo, Josep Sanchéz Cervelló, este tipo de encontros fazem mais pela amizade luso-espanhola que anos de discursos oficiais.

Saiba mais sobre Ágora aqui.

quinta-feira, outubro 21, 2010

A cadeira

A noite já ia longa. O embaixador português esmerara-se no acolhimento dado ao seu ministro, visitante daquela capital onde, há já alguns anos, exercia as suas funções, nesse que era o seu último posto  diplomático, depois de um percurso profissional interessante. Obstinado e frontal, o diplomata tinha consciência de que não projetava, entre os seus pares, uma imagem consensual. O seu caráter truculento grangeara-lhe vários inimigos e apenas uma escassa mão-cheia de amigos. Mas isso, dizia-se, era-lhe irrelevante. Olhava para as reticências com que os outros o viam como a expressão da fragilidade alheia, como um fator desafiante para a sua conhecida postura na Carreira.

Pessoalmente, não tinha do homem uma ideia precisa. Nunca trabalhara com ele, nem nos havíamos cruzado profissionalmente. Era a primeira vez que com ele convivia. O facto de ser uma pessoa frontal, que se "borrifava" para os poderes, era um ponto positivo. Falado, contudo, revelara-se um insuportável pedante. Em suma e em saldo: era-me indiferente.

Essa não parecia ser, contudo, a atitude de um diretor-geral que fazia parte da delegação que acompanhava o ministro. Homem despretencioso e relativamente são, nele pressenti, desde cedo, uma acrimónia contra o embaixador, talvez fruto de histórias antigas, em que a nossa profissão é fértil. Se havia uma "corrente" que passava entre ambos, ela era de "alta tensão"...

O jantar na residência do embaixador fora normal. Acabado o respasto, recolhemo-nos à adjacente sala de estar. O ministro escolheu uma estratégica poltrona. Eu, acompanhado pelo diretor-geral e por um jovem colaborador do embaixador, sentámo-nos num sofá, degustando cafés e as aguardentes de função. Outros se espalhavam pela sala. O embaixador, que sofria do ouvido, alapou numa cadeira próxima do ministro, cuja atenção mobilizou, alimentando conversas nas quais - acontece-nos a todos! - procurava mostrar o seu indisputável domínio da situação política local, que dissecava, aliás, com visível inteligência.

O tempo passou e a conversa fluiu. A certo passo, vi o jovem colaborador do embaixador manifestar o que me pareceu ser alguma inquietude, por uma coreografia movediça do corpo. Em tom baixo, comentou, para mim e para o diretor-geral: "É um perigo! A cadeira em que o meu embaixador está sentado tem uma perna fortemente inclinada. A qualquer momento, pode cair". O jovem estava, sinceramente, preocupado com a sorte potencial do seu chefe.

Num segundo, e tal como o jovem colaborador do embaixador, também eu visualizei o risco: de facto, se a cadeira cedesse, ele cairia desamparado e tudo poderia acontecer, até um grave traumatismo craniano, fruto do embate com a tijoleira da sala.

O jovem secretário, na indecisão provocada pela sua dependência hierárquica, hesitava em interromper o seu chefe, talvez temeroso que um seu alerta pudesse ser interpretado como bajulador. Para mobilizar a sua própria coragem, consultou, em tom baixo, o diretor-geral, que estava a seu lado: "Acha que eu diga ao embaixador que a cadeira em que ele está sentado é perigosa, que uma das pernas pode ceder e conduzir a um acidente grave?"

O diretor-geral olhou-o de viés, sacou uma baforada mais do seu cachimbo e, em tom igualmente com poucos decibéis, aconselhou: "Se você for culpado pelo facto desse estupor não se "esbardalhar" com as fuças no chão, a Carreira não lhe perdoará nunca..."

Resisti a dar uma gargalhada. O secretário de embaixada percebeu a mensagem, manteve-se calado, porque a opinião de um diretor-geral seria indispensável à sua futura promoção e à definição do seu próximo posto. E, vá lá!, o seu embaixador não se "esbardalhou", até ao fim da noite. Aliás, há semanas, vi-o, reformado, numa pastelaria do Estoril, com o  seu eterno e irónico sorriso, prova da qualidade das cadeiras lá de casa.

Uma questão de justiça

Um esforçado colega de serviço público, de seu nome António Martins, expoente sindical de um "órgão de soberania", por via da profissão que, nomeadamente, decretou, há pouco, a imaculada pureza de intenções do senhor Domingos Névoa, um estimável cidadão de Braga vilmente acusado pelos irmãos Sá Fernandes, houve por bem afirmar que as medidas de restrição salarial, que injustamente acabaram por ferir a sua nobre casta, mais não configuram do que uma objetiva intenção de coartar a eficácia da máquina judicial, a qual tem mobilizado, com uma coerência que o país testemunha com diária admiração, sangue, suor, férias especiais e ajudas de muito custo.

Que as mãos lhe não doam nunca, companheiro Martins! 

quarta-feira, outubro 20, 2010

Obituários

Esta história passou-se em Inglaterra, claro está.

Uma das mais antigas tradições da boa imprensa britânica é a publicação de obituários, essas biografias mais ou menos sintéticas, quase sempre benevolentes, de figuras que partem desta vida. Alguns grandes jornais britânicos (o "Financial Times" não o faz), do "The Times" ao "The Independent", do "The Guardian" ao "The Daily Telegraph", trazem diariamente notas sobre personalidades falecidas, algumas das quais são, por vezes, peças soberbas de bela escrita. Certos jornais chegam a editar em livro, no final do ano, alguns desses textos. Já cheguei à triste conclusão de que é por ocasião da morte das pessoas que acabo por aprender mais sobre a sua vida.

Um dia, uma figura britânica de menor destaque, mas com suficiente importância para poder merecer uma pequena nota necrológica, foi surpreendida pela embaraçada informação de que um jornal tinha inserido, nesse dia, o seu obituário. A família começara já a receber condolências... Uma troca de nomes terá estado na origem desse lamentável erro. 

O nosso homem, que se encontrava longe de Londres, no campo, sem jornais acessíveis, mal soube do sucedido ligou a um amigo na capital, alguém que o puderia ajudar a desmentir imediatamente o facto, junto dos círculos sociais conhecidos. Mas eram outros os tempos tecnológicos. A cobertura telefónica na zona rural onde vivia tinha grandes fragilidades, havia imensos os ruídos na linha, o som geral das comunicações interurbanas era muito débil. Depois de várias tentativas, o amigo londrino lá acabou por atender. O infeliz biografado, para se identificar, gritou, por entre a confusão das várias sonoridades que se projetavam na linha telefónica, o seu próprio nome. Do outro lado, houve uma pausa, por alguns segundos. Até que, finalmente, o amigo de Londres, numa entoação que soava a perplexa, perguntou: "where are you calling from?..." 

terça-feira, outubro 19, 2010

Os chatos da plateia

São temíveis! Raramente escolhem a primeira fila dos auditórios, embora isso aconteça com alguns mais vaidosos. Pela minha experiência, a terceira fila costuma ser o seu lugar de eleição, de preferência junto às coxias, por forma a facilmente poderem obter o microfone das mãos dos ajudantes volantes que circulam pela sala. Falo, naturalmente, dos chatos interventores, dos falsos perguntadores, sempre presentes em colóquios, palestras e conferências, que aproveitam o momento da abertura do debate à audiência para fazerem longas dissertações, para as quais ninguém os convidou.

Em Portugal, durante anos, pressentia-os, mal me sentava numa mesa, com um simples olhar pela sala. Conheci alguns de ginjeira, sabia que estavam à coca do momento oportuno, de dedo imediatamente esticado para pedirem o microfone (chegam a fazer sinal prévio aos ajudantes de sala, quando prevêem próximo o período de perguntas). Mas o seu objetivo quase nunca é colocar uma questão aos oradores ou, se o fazem, trata-se de um mero gesto formal, no fim de uma imensa exposição pessoal. Aliás, e pela minha experiência, o que é dito pelos interventores é-lhes praticamente indiferente. Trazem a lição estudada de casa, uma ideia fisgada, as mais das vezes embrulhada em fórmulas confusas, quase sempre com tonalidades radicais. A sua grande finalidade é intervir, opinar, dizer o que pensam, por mais indiferente que isso seja a quem foi ali para ouvir outros. Os mais hábeis, quando pressentem que o moderador da mesa se prepara para os interromper, têm duas técnicas: uma delas é citar, a meio da fala, ainda que obliquamente, um dos oradores oficiais, para dar a falsa perceção de que se encaminham para a formulação de uma pergunta; outra é recorrerem à vetusta figura do "só gostaria agora de acrescentar, para terminar..." ou coisa do género - o que lhe faz ganhar uns minutos mais.

Há dias, num cenário de um qualquer colóquio, ao ver atuar uma dessas personagens, lembrei-me que poderia ser interessante organizar uma sessão onde se pudesse colocar na mesa, como oradores, precisamente um grupo selecionado desses chatos  mais conhecidos, dando-lhe, finalmente, o palco que tanto procuram. A dificuldade residiria apenas em encontrar, para o debate, um tema que lhes fosse comum... E plateia para os aturar, claro.

segunda-feira, outubro 18, 2010

CCB

Fui daqueles que, ao tempo da sua construção, diabolizaram o Centro Cultural de Belém (CCB). Não só achava a obra uma megalomania tonta como desprezava a vontade de quantos haviam ousado estragar o equilíbrio dos Jerónimos com a proximidade "modernaça" de um mostrengo arquitetónico de duvidoso recorte neo-egípcio, que  iria impedir o "diálogo" sereno com a Torre de Belém. Além do mais, pensava eu, o CCB ia ser uma "catedral no deserto", condenada ao vazio e ao fracasso como projeto.

Enganei-me redondamente: o CCB tem uma dimensão não conflitual com a monumentalidade vizinha (100 metros de distância mais dos Jerónimos não teriam, porém, ficado mal) e constitui hoje um polo da maior importância na modernidade portuguesa. Os lisboetas "apropriaram-se" dele e afeiçoaram-se por completo a esta nova centralidade.

Às vezes, temos de ter a coragem - e a decência - de "dar o braço a torcer". Faço-o hoje, com gosto, a propósito do CCB.

Eduardo

Falar de alguém insuportavelmente ausente pode ser uma tortura. Não o foi - antes pelo contrário - a conversa que ontem o António Mega Ferreira organizou no Centro Cultural de Belém, sobre a figura e a obra de Eduardo Prado Coelho. Que bem que nos fez a todos recordar o Eduardo, ouvir contar as suas histórias, revisitar a lucidez impressionante das suas palavras! 

Alexandra Prado Coelho, Fernando Pinto do Amaral, Margarida Lage e Nuno Júdice evocaram escritos e deram notas pessoais sobre Eduardo Prado Coelho. Para as dezenas de presentes, amigos ou admiradores do Eduardo, foi muito bom rever alguns dos seus mais belos textos, cuja densidade o tempo e a distância parecem sublinhar ainda mais.

A Eduardo Prado Coelho, como aqui já disse noutras ocasiões, Portugal deve um sopro de modernidade e um choque cultural que talvez não tenhamos, até hoje, medido em pleno.

domingo, outubro 17, 2010

Azul

Não sei se é da idade, mas o azul do céu de Lisboa perturba-me cada vez mais. Pela positiva, claro. Hoje, Lisboa estava com um céu de um azul imbatível. Não sou muito dado a reflexões poético-emocionais sobre cores, mas tenho vindo a dar conta que frequentar o azul me faz imenso bem. E o azul é, para mim, definitivamente, a cor de Lisboa, sendo falsa a ideia fílmica da "cidade branca", que equivocou Tanner. Optar pelo azul é uma banalidade? Claro que é, mas cada vez acho mais que assumir a banalidade genuina é a mais saudável forma de snobeira.

E as outras cores? Também as há, claro. Gosto do verde por irracionalidade afetiva e do vermelho (não do encarnado) pelas razões da razão. Do amarelo, só aprecio os sorrisos de alguns e deixo o roxo pascal para o fígado dos colunistas e blogueiros da desgraça. E o resto para os restantes.

sábado, outubro 16, 2010

Artur Santos Silva

Há dias, numa conversa em Paris, uma amiga com fortes ligações ao nosso país disse-me, de forma apreciativa, que este blogue a tem ajudado a conhecer melhor Portugal e, mesmo, a "descobrir"  alguns portugueses. Fiquei satisfeito, porque esse é também um dos objetivos do que por aqui vou deixando.

Hoje, ao abrir o "Público", num avião da TAP, deparei com uma longa entrevista de Artur Santos Silva, presidente do BPI e da comissão para as comemorações do centenário da República. E lembrei-me que este é um nome que as pessoas ganhariam  muito em conhecer melhor. Para quem possa fazê-lo, recomendo a leitura daquele texto. As respostas são um manancial de bom-senso e de sentido cívico, sem deixarem, simultaneamente, de refletir um espírito lúcido e crítico. Dei por mim a pensar que Portugal se permite, com grande frequência, não utilizar, em funções determinantes para a condução ou orientação do país, algumas figuras cuja estatura seriam uma mais-valia para o serviço público. 

Artur Santos Silva passou apenas brevemente pela política, optou pelo usufruto da independência, prestigiou-se profissionalmente e criou uma instituição bancária de referência. Ao longo dos anos que levo da observação da vida do país, ele continua a ser uma das vozes que mais me têm marcado pela sua retidão e exemplaridade, pelas úteis lições de vida que nos transmite.

Oriundo de uma família liberal do Porto, é um homem formado num tempo e num ambiente em que a cultura e o respeito atravessavam a formação da juventude. Dessa rica vivência soube decantar uma forma de estar na vida da qual emana uma imensa serenidade. O meu pai, que daqui a dias teria a idade da nossa República, educou-me a respeitar figuras que qualificava como "pessoas de bem". Artur Santos Silva é uma delas.

Escrevo este post com muito à-vontade. Não sou íntimo de Artur Santos Silva. Vivemos em mundos diferentes, não temos laços políticos ou profissionais, conheço-o apenas por contactos esporádicos, embora feitos de cordialidade e, estou certo, de mútua estima. Devo confessar, porém, que criei uma sincera admiração por esta figura ética que - e aqui regresso ao início deste texto - o nosso país não terá aproveitado como devia. 

Digo-o a propósito da entrevista que hoje li e, claro, de muitas outras coisas que os tempos correntes me suscitam. Mas por aqui me fico.

Arras

Ontem, dei por muito bem empregue o longo tempo de viagem de automóvel, para uma deslocação de um dia completo a Arras, para contactar as autoridades locais, para falar de Portugal a cerca de 400 estudantes da Université d'Artois e para estar presente na inauguração da "Saison Portugaise", no "Le Quai de la Batterie".

No primeiro caso, foi muito interessante poder discutir, com uma audiência madura, a posição de Portugal perante as grandes questões internacionais, mas igualmente o futuro das línguas portuguesa e francesa à escala global, para além de um conjunto vasto de outros temas. Uma hora de palestra e outra de debate confirmaram-me a crescente curiosidade em torno da imagem de Portugal que se regista aqui em França.

Depois, foi revigorante ver como um atelier como "Le Quai de la Batterie", com o apoio da "Mairie" local, conseguiu trazer a Arras quatro excelente criadores artísticos da contemporaneidade portuguesa: Francisco Tropa, Maria Loura Estêvão, Isabel Baraona e Joana Travisco. Trata-se apenas da primeira parte de um extenso programa que se prolongará por 2011, no qual a cultura portuguesa será abordada em muitas dimensões - artes plásticas, fotografia, teatro, literatura, música, cinema, etc.

Portugal deve estar reconhecido a quem, no estrangeiro, se interessa pela sua cultura e se organiza de forma a, generosamente, a dar a conhecer. Foi essa uma das mensagens que deixei em Arras.

quinta-feira, outubro 14, 2010

Chile

A propósito do salvamento dos mineiros chilenos, alguém me dizia ontem, num jantar, que é muito bom para o mundo que haja uma história famosa que acabe bem.

De facto, fartos andamos nós de desgraças e tragédias, como alimento do nosso quotidiano mediático.

Reformas

Um dos fenómenos mais curiosos, no âmbito dos movimentos sociais que têm vindo a contestar a legislação para o alargamento da idade da reforma em França, foi o aparecimento, nesse contexto, dos estudantes liceais.

Independentemente das questões de fundo deste debate, confesso que não pude deixar de dar uma gargalhada ao ver uma jovem de 16 anos, inquirida sobre a razão pela qual aderia aos protestos, dizer na televisão: "eu, quando chegar aos 60 anos, quero ter o direito de não trabalhar mais!". 

Para alguém ainda longe de entrar no mercado de emprego, não está mal!

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...