sexta-feira, dezembro 27, 2019
quinta-feira, dezembro 26, 2019
Lâmpadas
“Há já muito tempo que só vendemos LED, não sabia?!”. Então acabaram com as lâmpadas normais e ninguém me avisou?
Bom ambiente
Tenho a maior simpatia pelo ministro do Ambiente. E é precisamente por isso que acho que ele tem de medir melhor o peso das palavras: falar na hipótese de deslocação física de localidades é um tema a cuja imensa delicadeza um político não pode deixar de ser sensível
Outdoors
Não há regras que impeçam a poluição visual com cartazes. “outdoors” gigantes que desfeiam as cidades portuguesas?
Em períodos eleitorais, vá que não vá. Mas será que nunca mais poderemos voltar a ver o Marquês ou a Praça de Espanha ou o Saldanha sem cartazes? Não se vê isto noutras capitais.
The Crown
Acho excelente a série “The Crown”, que passa na Netflix. Mas tem um imenso defeito: “cola-se” de tal forma à realidade que acaba por induzir o observador desprevenido à ideia de que aquilo é História, nomeadamente no modo como faz interagir entre si as diferentes personalidades. Às vezes, somos tentados a esquecer que estamos perante uma mera obra de ficção, construída por forma a tentar criar uma narrativa que ligue alguns factos reais conhecidos.
A reserva islandesa
Podia haver pessos mais forretas do que o meu amigo Álvaro. A mim, porém, nunca ninguém me as apresentou! Fui amigo do Álvaro até à sua morte e pude constatar que, à infindável generosidade da sua amizade, correspondia um cuidado extremo em não gastar um tostão a mais que ele visse como dispensável. Ou, se possível, gastar ainda menos. Tinha, aliás, um extraordinário livro onde anotou, por décadas, as suas mais ínfimas despesas, gorjetas incluídas - um documento que hoje seria precioso, para se aferir da evolução dos preços nesse período.
O Álvaro sempre me considerou um incorrigível perdulário, ficava furibundo quando me via incorrer numa despesa que ele via como supérflua, achava que eu comprava livros a mais, que gastava muito em restaurantes e que não escolhia as formas mais económicas de viajar. Eu, confesso, às vezes fazia certas compras diante dele com uma certa displicência ou deixava uma gorgeta mais redonda, unicamente para ver-lhe no olhar chocado a sua íntima reprovação. Provocar um forreta nunca me pareceu configurar um “crime”...
Tenho um mar de histórias da forretice do Álvaro, mas há uma que, ontem, em conversa com um conhecimento comum, me veio à memória.
Estávamos na segunda metade dos anos 80. Era um tempo em que eu vivia em Lisboa e, um dia, o Álvaro telefonou-me a perguntar se eu conhecia alguém na Islândia.
Porque ele tinha estado em minha casa uns dias, quando vivi em Oslo, dera conta que era a embaixada portuguesa na Noruega que “cobria” a Islândia, pelo que achou provável que eu tivesse mantido um conhecimento qualquer por lá, não obstante terem passado já alguns anos.
De facto, eu tinha tido contacto com o cônsul honorário português em Reykjavik e disse-lho. Ficou imensamente satisfeito e passou a relatar-me o que pretendia. Ia à Islândia numa viagem que lhe fora oferecida por um jornal com o qual colaborava, mas estava a ter dificuldade em fazer a reserva do alojamento que pretendia.
Para evitar incomodar o nosso cônsul honorário por um assunto tão fútil, disse-lhe que tinha um amigo numa agência de viagens, em Lisboa, que seguramente lhe trataria da reserva. O Álvaro reagiu: “Isso também eu tenho! Mas as agências não conseguem marcar aquilo que eu quero”.
Que diabo de alojamento tão especial era impossível de marcar a partir de Lisboa, num mundo onde essas coisas já se faziam, à distância, com toda a facilidade? O Álvaro pareceu-me um pouco embaraçado, ao confessar: “Bom, é que eu soube que as instalações do “Exército de Salvação” têm lá umas camaratas coletivas muito boas, com um preço que me ficava muito em conta. Se o nosso cônsul pudesse fazer um telefonemazito a marcar uns dias para mim, tudo seria mais fácil”.
Eu nem queria acreditar! Ficar no “Exército de Salvação” era um recurso quase para indigentes, disse-lhe. Ele não tinha idade nem estatuto para isso. Mas ele não se importava: o preço da dormida era muito “jeitoso”. “Eh, pá! Não sejas chato! Pede lá isso ao homem, não te custa nada”.
Tenho a maior relutância em incomodar os outros, só o fazendo por razões muito ponderosas. E aquela, manifestamente, não era uma delas. Assim, recusei liminarmente fazer o pedido ao nosso cônsul honorário. Nunca cheguei a saber onde é que o Álvaro se aboletou em Reykjavik. (Na internet, descobri agora uma elucidativa imagem de camarata “Salvation Army Guesthouse” em Reykjavik. As coisas a que o Álvaro recorria, quando se tratava de poupar dinheiro!)
O Álvaro ficou um pouco abespinhado comigo. Mas nós nunca nos zangávamos, porque a nossa amizade era à prova de tudo, mesmo da sua incomensurável forretice. Só a sua morte, há já mais de uma década, acabou com essa coisa deliciosa que eram as nossas intermináveis discussões. Este Natal, tive saudades do Álvaro!
quarta-feira, dezembro 25, 2019
A bica da Consoada
Tinha fama de comunista, o que, no tempo da “outra senhora”, prenunciava vida problemática e sugeria cautelas na aproximação pessoal. O Lima afivelava, por regra, uma cara zangada com o mundo, que exibia à porta do café de que era proprietário, o Imperial, no fundo da rua Direita de Vila Real.
Na sociologia empírica que me habituei a fazer de cada um dos cafés da minha cidade natal, nunca consegui definir uma tipologia dos frequentadores do Imperial. As mesas pareciam-me sempre vazias e rumorava-se que isso se devia ao facto do Lima ter erupções de feitio que o levavam, algumas vezes, a fáceis atritos com a clientela.
Em contraste com este perfil iracundo, o Lima era um refinado artista. Na memória da cidade ficou a sua direção de uma “marcha luminosa” histórica, no início dos anos 60. Mas, mais do que isso, ficou a sua arte no desenho das passadeiras de flores que, por muito tempo, ornamentavam, numa data religiosa do ano, a rua onde eu vivia. Recordo bem a reverência com que as senhoras encarregadas da coleta das flores recebiam as instruções detalhadas do Lima, no tocante à cor desejável das pétalas, a serem colocadas nos vincos deixados no serrim pelos moldes de madeira, cuja execução ele próprio acompanhava num carpinteiro na rampa de S. Pedro.
Mas a glória maior do Lima era a noite de Consoada. Por muitos anos, o Imperial foi o único local aberto, nessa noite, na cidade, onde se podia tomar uma bica ou comprar tabaco. Nessas horas, o café regurgitava de clientes - só homens, claro - oriundos de todos os bairros. Ainda estou a ver ali o Lima, de sobretudo cinzento, ao fundo da sala, apreciando o movimento confortável da máquina registadora. O Imperial não tinha aquecimento, aquilo era um mar de samarras, debaixo de uma fumarada imensa. O balcão não tinha mãos a medir, com os Macieira 5 estrelas a encherem (mas só até à linha vermelha) uns balões de vidro já foscos do uso. Ironicamente, essa era a noite da seca vingança do Lima.
Vingança que passava a um estádio superior de perfídia quando se constatava que o Lima fechava as portas do café meia hora antes da missa do galo, ali ao lado, em S. Pedro. E isso obrigava quantos usavam o Imperial para queimar tempo, a terem de ficar na rua, a bater as botas e os dentes de frio, a menos que quisessem ir fazer companhia às beatas que sempre chegavam cedo, para marcar lugar antes da homilia do padre Abel. O Lima não devia ser herege, talvez nem sequer fosse comunista. Ele era, apenas, de uma cidade diferente.
terça-feira, dezembro 24, 2019
segunda-feira, dezembro 23, 2019
Milagres da Mesa Dois
Há pouco, nos arquivos fotográficos que a quadra natalícia tem tendência a fazer emergir, descobri uma imagem que, em si mesma, é reveladora da abrangência do grupo da tertúlia da Mesa Dois do bar Procópio, animado por Nuno Brederode Santos.
Desde 2004 até 2016, com escassas interrupções, tomei a iniciativa de organizar jantares anuais dos frequentadores da Mesa Dois, normalmente no mês de dezembro. Foram, ao todo, dez jantaradas, todas bem divertidas. As presenças nestes repastos anuais chegaram a oscilar entre 70 a 80 pessoas, com um quase sempre impecável equilíbrio de género.
O conceito de “frequentador” foi sempre muito arbitrário, porquanto algumas pessoas eram bastante refratárias a “marcar o ponto” na mesa ao longo do ano. Posso hoje revelar que a primeira lista dos “convocados” foi acordada entre mim e o Nuno Brederode Santos, figura tutelar e central da tertúlia. Ao longo do tempo, fui incluindo, com a anuência discreta ou implícita do Nuno, quem entendia que tinha “credenciais” para ser chamado ao grupo. É assim, acho eu, que funciona uma democracia eficaz...
Esta fotografia é do jantar de 2008, no saudoso restaurante Vírgula, onde dois desses repastos tiveram lugar.
À esquerda (por ironia lateralizante), está o Caetano da Cunha Reis, fundador da Juventude Centrista, figura histórica desses primeiros tempos de um CDS onde se acolheu muita direita lusa - e o Caetano nunca deixou, honra lhe seja, de se reivindicar orgulhosamente dela. À direita (honni soit...), estão Carlos Antunes e Isabel do Carmo, conhecidos militantes revolucionários, das BR ao PRP.
Eu já tinha feito a malandrice de colocar o Caetano e o Carlos lado a lado, num anterior jantar no Manel, no Parque Mayer - e deram-se lindamente! Aqui fica, pela primeira vez divulgada, a prova fotográfica deste pontual “bloco lateral”, unido excecionalmente pelo espírito congregador da tertúlia da Mesa Dois, que o Nuno tão bem simbolizou.
Ao Caetano e ao Carlos aproveito para deixar os meus amigos votos de Festas Felizes, seja o que cada um possa disso entender.
domingo, dezembro 22, 2019
Eu, hipocondríaco, me confesso
Abro a janela do meu quarto, aqui por Vila Real, e, em letras garrafais, vejo escrito o meu nome, o nome da minha familia. É uma farmácia, aberta todos os dias, a uns escassos metros, que, desde há meses, passei a ter por vizinha.
Hipocondríaco como sou, este é um sonho de vida finalmente realizado. Neste aspeto, sei que convoco aqui a inveja do nosso presidente da República, também ele sempre pronto a opinar sobre medicamentos. Tal como ele, sempre que necessário, “receito” medicamentos, com elevado critério, a quem se queixa de alguma coisa e tem o bom-senso de seguir os meus conselhos.
(Um dia, recordo-me, cheguei mesmo a dar dicas farmacopédicas a um médico amigo, que olhou para mim com uma cara espantada. Em defesa, perguntei-lhe: “Nunca mandaste bitaites sobre política internacional? Tenho o mesmo direito...”).
Tenho contudo uma vantagem sobre o mais alto magistrado da nação: Marcelo (da mesma forma que Filipe II, no poema de Gedeão, não tinha um fecho-éclair) não se pode gabar de ter uma farmácia tão “à mão de semear” como a que eu tenho por aqui. Essa é que é essa!
Mas nem tudo são alegrias. O cerceamento progressivo das liberdades privadas, que alguns confundem com modernidade, matou-me, neste domínio, pequenos prazeres dos quais, há décadas atrás, podia usufruir. Eram tempos em que vivia no estrangeiro e, passando por Vila Real, visitava aquilo que foi a outra encarnação geográfica deste mesmo estabelecimento.
Vou fazer uma confissão, porque o eventual cúmulo de delitos já prescreveu, para os presumíveis réus envolvidos: eu aproveitava o que sabia serem as horas mortas de venda da farmácia e, com a cumplicidade de um empregado, amigo e complacente, permitia-me o discreto acesso às prateleiras “lá de dentro”. Mas, antes, tinha de ter a prévia certeza de que a “dona da casa” estava fora, porque nunca, com ela presente, eu teria a “lata” de usar daquela liberalidade.
Ultrapassando as dificuldades de aquisição que ia tendo na estranja, onde havia essa picuinhice permanente que era a necessidade de receitas médicas para certos produtos, atulhava-me então de “uma coisa que está a sair muito para o estómago” ou de “um antibioticozinho que dá para quase tudo” ou de “um xarope de que dizem maravilhas” e muitas outras novas e velhas mezinhas para as várias maleitas potenciais de que poderia vir a sofrer, nesses destinos para onde me tinham mandado para bem da pátria. Apenas “coisas para o sono ou desse género” me estavam vedadas, sendo essa a “red line” deontológica do meu cúmplice.
Era então um deleite poder passear por aquelas prateleiras, adquirindo as novidades e reforçando os “clássicos”. Não é impunemente, sem este rico saldo de experiências, que se acaba uma vida profissional nas delícias do retalho...
Tomava tudo aquilo que comprava? Nem pensar! Quantas dezenas de caixas de medicamentos, que me custaram bons milhares escudos (era esse tempo!), não acabaram por ir, intocadas, para o lixo - tanto mais que faço parte do grupo de ingénuos, como sabe quem me conhece, que é incapaz de tomar um medicamento nem um minuto que seja depois do final do mês em que ele expira o seu prazo indicativo de validade.
Esta também é uma caraterística do hipocondríaco “profissional”, o qual, para ser verdadeiramente feliz, tem de ter uma doençazita de vez em quando, sem o que deslegitimaria a sua mania. E eu, para minha “felicidade”, lá vou tendo algumas.
Tenho agora, como disse, a nova farmácia aqui ao lado. É uma sensação confortável, podem crer. Mas, nos dias de hoje, ela passou a ter para mim zonas inexpugnáveis, travadas por um balcão por onde rodam umas jovens senhoras de sorriso simpático, que só vaga e progressivamente me vão reconhecendo, mas que, imagino, serão escassamente sensíveis a eu poder vir a tirar qualquer vantagem da circunstância do meu nome coincidir com o da casa onde trabalham. Não me estou a ver, nos dias que correm, a ser autorizado a abrir aqueles “tesouros” que são as gavetas brancas da botica (usam-se muito, vejo eu, guloso, à distância, umas inclinadas), podendo escolher “o que me der na veneta”, seduzido pela exaltante literatura das bulas. Foram grandes tempos!
A liberdade já não é o que era!
Grande Corgo!
Vejo-o assim da minha varanda. É nestes dias que o Corgo se enche de brios e mostra que, quando pode e quer, se transforma no grande rio que é. Nem sempre é assim? Pois não, mas a culpa é da nascente, lá para Vila Pouca, que lhe é avara quase o ano todo, somada depois aos litros que lhe tiram em Zimão ou Tourencinho. Por estas horas, até o afluente Cabril, que lhe alimenta quanto pode o ego aquático, deve andar impante! O Douro, onde o Corgo desagua por fim em todo o seu esplendor, que se acautele! Ah! E depois não nos venham a culpar pelas cheias na Régua ou em Miragaia! Um grande rio é assim mesmo, não pode fugir ao grandioso do seu destino...
sábado, dezembro 21, 2019
“Crónicas”
Intervenção que fiz na sessão de lançamento do livro “Crónicas”, de Nuno Brederode Santos, editado pela Cotovia e pela Imprensa Nacional, na Câmara Municipal de Lisboa. Pode ler aqui.
sexta-feira, dezembro 20, 2019
Nuno Brederode Santos
Hoje, é lançado o livro com as crónicas que Nuno Brederode Santos publicou no Expresso, de 1974 a 2001.
Leiam este seu auto-retrato delicioso:
Leiam este seu auto-retrato delicioso:
quinta-feira, dezembro 19, 2019
Carlos Moedas
A entrada de Carlos Moedas no Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian é uma excelente noticia.
Moedas foi um ótimo comissário europeu e seguramente trará à instituição uma rica e interessante vivência internacional. A Gulbenkian continua assim a provar que tem um apurado critério nas escolhas para a sua Administração.
A Gulbenkian não é “nossa”, é uma instituição independente, sendo que é precisamente essa capacidade de se manter independente, escapando a ser “infetada” pelos ciclos políticos, que tem sido, ao longo das suas décadas de existência, precisamente a chave do seu sucesso. E esse seu sucesso é, como hoje parece mais do que óbvio, do interesse coletivo do país.
quarta-feira, dezembro 18, 2019
RTP
Comunicado do Conselho Geral Independente
O Conselho Geral Independente da RTP (CGI) manifesta a sua profunda preocupação pela situação recentemente criada na empresa, que levou a que Direção de Informação da televisão da RTP tenha posto o seu lugar à disposição do Conselho de Administração.
O CGI considera que o trabalho desenvolvido pela Direção de Informação correspondeu às linhas de orientação estratégicas que, a seu tempo, o CGI definiu para o serviço público de informação televisiva.
Ao longo de 2019, a informação da RTP distinguiu-se pela independência, equilíbrio e neutralidade informativa. A preocupação com estes valores assumida pela Direção de Informação foi manifesta na exemplar cobertura das campanhas eleitorais de 2019.
Não compete ao CGI, nos termos da Lei da Televisão, pronunciar-se sobre “matérias que envolvam autonomia e responsabilidade editorial pela informação”, competência que “pertence, direta e exclusivamente, ao diretor de informação”. Cabe-lhe, todavia, assegurar que a informação da RTP se adequa, com rigor, às linhas de orientação estratégica que definiu, numa das quais se defende uma informação “independente de todo o tipo de poderes” e “tendo como base critérios editoriais rigorosos e eticamente irrepreensíveis, sem concessões ao populismo mediático”.
O CGI espera que o Conselho de Administração possa propor, com celeridade e no interesse da empresa, uma nova Direção de Informação que mantenha, no essencial, a orientação que a anterior Direção vinha a seguir, a qual correspondeu ao modelo de serviço público definido pela Lei da Televisão.
O CGI considera desejável que a nova direção de informação a ser empossada estruture, da forma mais adequada à execução rigorosa do seu projeto informativo, os mecanismos internos que garantam unidade e coerência da estrutura de informação, e evitem situações fortemente lesivas da RTP, como as que recentemente tiveram lugar.
Fernando Lemos
Quando conheci Fernando Lemos, numa noite em casa do nosso cônsul geral em S. Paulo, Luis Barreira de Sousa, ele já tinha 80 anos. Eu era mais um dos, seguramente muitos, embaixadores portugueses que tinham passado pelo Brasil, desde que ele aí se instalara, em 1953. Alguns terá conhecido, outros não. Durante um jantar, falámos alguma coisa, de conhecimentos comuns, mas, para mim, soube-me a pouco a conversa com aquela que era uma figura mítica de um português no mundo das artes plásticas no Brasil. Em especial, para muita gente, na fotografia, onde ele era verdadeiramente genial. Fernando Lemos estava então já em cadeira de rodas, mas era uma figura vivíssima, com aquele humor ácido que os velhos sábios tendem a adquirir, depois de terem visto muita coisa e muita gente. Não vou fazer-lhe aqui o currículo, porque os jornais se encarregarão disso. Mas fica uma nota do seu desaparecimento, aos 93 anos de uma vida bem vivida, muito brasileira mas, também, bastante mais próxima de Portugal do que a maioria dos seus pares das artes que se fixam para sempre no estrangeiro.
O arbóreo do Natal
Disseram-me, há dias, que tinha morrido. O nome não vem ao caso. Mas logo me surgiu à memória a última conversa que tive com ele, há uns bons anos, numa rua de Vila Real, por esta altura do Natal.
Eu vinha dos lados da Gomes, pastelaria que é o lugar geométrico da cidade de quantos ali são do meu tempo. Avistei-o e tive, já perceberão porquê, uma reação de imediata precaução. É que estava perante um conhecido praticante da chamada conversa "arbórea".
Tenho o assunto, de há muito, bem estudado. A conversa "arbórea" é um estilo de expressão oral que se carateriza por uma deriva temática obsessiva e recorrente, sem pausas, que segue como os ramos de uma árvore, de onde surgem novas ramificações, as quais, por sua vez, se subdividem, quase sem fim. Fala de um assunto, passa a outro e é como as cerejas...
Lembro-me de que o meu interlocutor não desiludiu:
- Então, disseram-me que já saiu de Paris? Deixou-se de embaixadas, não é? Era tempo! Bela cidade, Paris! Sabe que tenho lá uma prima, que trabalha num banco. Nunca a encontrou? É de Justes, está casada com o Meireles, você é capaz de conhecer, é um homem da Régua que esteve num gabinete num governo do Soares. Você é amigo do Soares, não é? Como é que ele está de saúde? Tenho grande admiração por esse homem. Desde os tempos da oposição ao Salazar. Isso é que foram anos difíceis! Na oposição, trabalhei muito com o doutor Otílio, um grande democrata cá de Vila Real. Conheceu-o, não? Dizem que o filho dele faz agora um vinho muito bom, numa quinta que tem lá para o Douro. Por falar em Douro: você, que anda lá por Lisboa, sabe o que é que se passa com a Casa do Douro? É que não se percebe nada daquelas confusões! É como na política! Você acha que o Passos Coelho se aguenta? Olhe! Ainda ontem estive com o pai dele, uma jóia de pessoa, não desfazendo...
Um "arbóreo" raramente fecha o discurso, As mais das vezes, prossegue na sua imparável viagem pelas palavras, sem limites nem contenção. Só raros "arbóreos", no delírio quase intravável do seu curso verbal, regressam ao princípio de conversa.
Naquela tarde, com o frio do Marão a apertar, na esquina entre o ourives e o Euclides (só um vilarrealense sabe o que é isto), em frente ao Santoalha e ao antigo Rafael (já houve por ali um sinaleiro!), apenas o surgimento oportuno de outro conhecido me salvou. E o "arbóreo" lá desandou, em direção ao que, noutros tempos, foram o Zeca Martins e o Teixeira Pelado...
Mas isto já parece conversa de “arbóreo”! Boas Festas para todos!
terça-feira, dezembro 17, 2019
As horas
Hoje, tive um dia infernal de trabalho. Amanhã, a coisa vai pelo mesmo caminho, se bem que quinta- feira vá ser bem pior. Quando me reformar, já prometi que vou ter tempo para tudo e mais alguma coisa. Nessa altura, tenho de arranjar alguma coisa para fazer, para me entreter. É que (dizem!) é muito mau parar!
segunda-feira, dezembro 16, 2019
Pedro Canavarro
Gosto de biografias. E bastante das que são assinadas na primeira pessoa, de autobiografias. Já me aconteceu, aliás, ler algumas biografias que mais não eram do que “autobiografias” envergonhadas, a que terceiros haviam dado o nome e a pena (agora, a tecla), para fingir “distância”.
Há dias, deparei, numa livraria, com uma autobiografia de Pedro Canavarro. Trata-se de um livro bem escrito, com notas muito pessoais, de alguém que resolveu “pôr as cartas na mesa”, com rara franqueza. Um retrato de vida corajoso, de uma figura pública que, passados os 80 anos, decidiu não deixar nada do que considerava importante por dizer. Fá-lo com aquilo que foi sempre a elegância pessoal que, ao longo dos anos, lhe colamos à imagem, aqueles que com ele nos cruzámos, em diversas circunstâncias. No meu caso, apenas circunstancialmente.
Este livro acaba por ser um retrato, interessante e culto, de um certo Portugal. Nele surgem muitas pessoas que conhecemos, onde está plasmada uma certa época, em especial de Lisboa, que muitos de nós vivemos, de perto ou de longe. E, mais do que isso: estão presentes as ideias e perceções dessa época, que tendemos a esquecer.
Confesso que já não me recordava de que Pedro Canavarro havia sido presidente do PRD (Partido Renovador Democrático), mas lembrava-me bem de o ver como parlamentar europeu e, antes disso, como comissário da “XVII”, a interessante exposição sobre os Descobrimentos que, nos anos 80, constituiu um importante marco em Portugal.
Em Bornes de Aguiar, perto das Pedras Salgadas, terra do meu avô materno, existe um Solar dos Canavarros, edifício de que, por coincidência, vim a encontrar um dia uma aguarela, na residência da nossa embaixada em Londres. Terá alguma ligação à família nortenha de que Pedro Canavarro nos fala no seu livro?
Nele também se contam histórias e impressões de algum mundo onde a vida o levou, com o Japão a ocupar um lugar muito especial, por aí ter tido uma experiência universitária, que veio a criar-lhe uma permanente relação afetiva com o país. Tudo escrito, como referi, sempre com elegância e equilíbrio, por vezes até com alguma candura, para o país onde vivemos. É este tipo de livros, com visões pessoais mas muito informadas e cultas, que, no tempo de um quotidiano apressado e de notas instantâneas e perecíveis, no rolo compressor dos factos e das sombras que eles deixam, nos pode ajudar a fixar um pouco melhor a história recente deste país.
Nele também se contam histórias e impressões de algum mundo onde a vida o levou, com o Japão a ocupar um lugar muito especial, por aí ter tido uma experiência universitária, que veio a criar-lhe uma permanente relação afetiva com o país. Tudo escrito, como referi, sempre com elegância e equilíbrio, por vezes até com alguma candura, para o país onde vivemos. É este tipo de livros, com visões pessoais mas muito informadas e cultas, que, no tempo de um quotidiano apressado e de notas instantâneas e perecíveis, no rolo compressor dos factos e das sombras que eles deixam, nos pode ajudar a fixar um pouco melhor a história recente deste país.
Confesso que li, com gosto, a autobiografia de Pedro Canavarro.
“The Irishman”
Foi há dias. A reunião de trabalho estava a acabar, já em cima da hora de jantar. Todos os presentes, exceto eu, já tinham visto o “The Irishman”. Adiantei, sem grande convicção: “Se calhar, vou ver o filme hoje à noite!”. Alguém alertou: “Mas olhe que tem três horas e vinte!”. Quando me fui deitar, deliciado, o relógio já passava das quatro da matina. Bendita Netflix!
domingo, dezembro 15, 2019
Dave Allen
Dave Allen foi um humorista irlandês. Fez “stand-up comedy” (o “up” é um pouco forçado, porque quase sempre estava sentado numa cadeira, com um whisky ao lado, às vezes a fumar) e “sketches” televisivos em que a religião era um seu tema regular e favorito, sempre tratado de uma forma que o tornaria muito polémico.
Tinha sido na televisão norueguesa (ou seria sueca?, porque, nos meus tempos de Oslo, só havia esses dois canais) que eu tinha visto, pela primeira vez, programas de Allen. Fiquei, para sempre, um seu imenso fã.
Uma década depois, quando vivia em Londres, dei conta de que ele fazia um espetáculo num teatro e, claro, não o perdi. Diverti-me imenso, mas bastante menos do que aconteceu ontem, quando a sorte da vida me fez encontrar e poder rever no YouTube precisamente esse “show” londrino de 1993. É que, sendo Allen irlandês, com um inglês cerrado, eu não tinha então “apanhado”, com o barulho da sala e os aplausos, muitos dos seus magníficos trocadilhos. Agora, no ecrã, foi tudo muito mais fácil - e bem mais divertido. Depois, foi como as cerejas: descobri na net mais alguns episódios de Allen fui “por ali adiante”, até de madrugada. Há muito que não ria com tanto gosto em frente a um ecrã. Dave Allen morreu em 2005.
Vejam aqui o fabuloso primeiro “contacto” de Allen com deus, nestes seis minutos: aqui.
Maldade natalícia
Para minha surpresa, acabo de saber que o azevinho é, tempos de hoje, uma espécie fortemente protegida, que é em absoluto proibido cortar esses arbustos e, por essa razão, o hábito antigo de haver ramos dessa planta verde, com pequenas bagas vermelhas (encarnadas, em algumas casas), a decorar as mesas de Natal, já terá quase desaparecido. Confesso que, nos últimos anos, tinha andado distraído, porque não tinha notado o fim dessa bela tradição decorativa.
Na minha infância, o azevinho não faltava nunca nos Natais. E o seu uso, que me recorde, pelo menos uma vez, excedeu a mera ornamentação das mesas.
Foi em Viana do Castelo, em casa da minha avó paterna. Eu teria uns seis ou sete anos. Numa Consoada, com todos os tios e primos, e por uma circunstância que não vem ao caso, estava também por lá uma miúda, basicamente da nossa idade, com quem tínhamos uma relação que não era familiar. Por uma qualquer razão, mas que posso assegurar que nada tinha a ver com a ausência do parentesco, eu e os meus primos, que basicamente andávamos pela mesma faixa etária dela, tínhamos criado uma forte embirração com o feitio da rapariga. Por muito que os adultos tentassem que a juntássemos às nossas diversões dessa noite - creio que tudo se resumia ao jogo do rapa e ao loto, com pinhões à mistura - a miúda foi mantida afastada do nosso convívio.
A certa altura da noite, contudo, tudo parecia ir mudar: um de nós chamou por ela. A voz vinha do fundo de uma escada que ligava dois dos andares da casa. A luz por ali visível, por essa altura, era estranhamente escassa. A miúda, decerto encantada por ter sido convocada, finalmente, ao convívio do grupo da sua idade, que se juntava no andar de baixo da casa, desceu confiante os degraus, imagino que quase a correr.
A certo passo, contudo, tropeçou numa sediela (aquele fio quase incolor que serve para a pesca) estrategicamente estendida na escada e, desculpem-me agora a expressão popular, “esbardalhou-se”, sem apelo nem agravo, no patamar no fundo dos degraus.
A maldade, de que hoje assumo a minha quota-parte, com um remorso que regressa a mais de seis décadas atrás, não se ficou, contudo, por aqui. É que esse patamar tinha sido “almofadado” por nós com um “tapete” de azevinho, o tal arbusto hoje tão protegido e na altura tão vulgar. E, como sabe bem quem conhece a planta, esta é caraterizada por ter uns extremos afiados cujo impacto na pele está longe de ser a coisa mais simpática que pode acontecer a alguém. Ainda hoje me soa nos ouvidos o berreiro da miúda, queixando-se de nós, aliás com toda a razão. Estou certo que, pelo menos alguns de nós, levámos o devido castigo, talvez atenuado pela santidade da noite.
Não conheço os cânones temporais dos pecados, mas acho que tudo já prescreveu...
sábado, dezembro 14, 2019
Daquela janela
Estávamos numa janela larga, a olhar uma rua de Lisboa a que, no passado, tinha estado associada alguma História política e, a propósito já não sei bem de quê, alguém se lembrou de dizer: “Vocês já pensaram o que esta rua poderia contar, do que aqui já ocorreu, de quem por aqui passou, das tragédias e alegrias que aqui tiveram lugar?” Ninguém ficou muito impressionado com esta banalidade, aplicável a milhões de ruas do mundo.
A mim, contudo, trouxe-me à memória uma conversa que há muito tinha gravado, para sempre. Em Luanda, em inícios dos anos 80.
António Pinto da França, nosso embaixador em Angola, tinha convidado para jantar Victor Sá Machado, então administrador da Fundação Gulbenkian (da qual, mais tarde, viria a ser presidente) e que também já passara pelo MNE, como breve ministro no governo PS-CDS.
Era um homem agradável, bom contador de histórias, com um toque algo snobe que, no entanto, não diminuia uma cordialidade elegante. Nascido em Angola, sentia-se que tinha a África nos genes e na sua hierarquia de interesses, cabendo-lhe, aliás, na Fundação, esse pelouro de cooperação, de que falava com genuíno empenho.
A certo passo, fez- nos uma descrição de uma conversa a dois que tinha tido, em Maputo, com Samora Machel, semanas antes.
O presidente moçambicano era uma figura mercurial, no que tocava à sua maneira de se pronunciar sobre Portugal: tanto era capaz de gestos tocantes, que recuperavam emocionalmente a ligação histórica entre os povos dos dois países, como se podia sair com diatribes que relevavam da leitura mais ácida dos ressentimentos coloniais. Era um grande chefe africano, com a complexidade que esse conceito encerra, como Sá Machado reconhecia e nos descrevia, numa linguagem rica e interessante, durante esse dos muitos jantares que António Pinto da França transformava em belos e inesquecíveis momentos, na Angola em guerra civil nesses tempos.
Na conversa com Samora, terá vindo à baila a aventura da expansão, a viagem de circum-navegação da África, a ida à Índia, depois os caminhos até à Taprobana à China e ao Japão. Sá Machado teria habilmente respondido com a aventura única dessas viagens a alguns remoques ácidos de Machel sobre o nosso passado colonial. E, como nos contou, começou, a certa altura, a vê-lo fragilizar a deriva para a acrimónia histórico-política, ao ser enleado pelo relato da gesta do Gama. A figura do navegador parecia interessá-lo, mesmo fasciná-lo. Fez perguntas e comentários.
Sá Machado contou-nos que, a certa altura, se levantou da cadeira onde estava sentado e, aproximando-se de uma janela do gabinete de Machel, no Palácio da Ponta Vermelha, apontou para a vista do Oceano Índico que dali se vislumbrava e comentou:
“O Presidente já pensou, quando olha desta janela, que, um dia, ali em frente, por aquele mar, há uns séculos, passaram as naus do Vasco da Gama, uns barquitos frágeis, de madeira, a caminho da Índia?”
Machel terá ficado então muito sério, aproximou-se da janela, colocou as mãos no parapeito e ficou uns segundos a olhar o mar. Depois, voltou-se para Sá Machado, deu-lhe uma palmada num ombro e disse: “Tens razão! Fico a pensar nisso: o Vasco da Gama passou por ali! Nunca mais vou olhar o mar, daquela janela, da mesma maneira!”
sexta-feira, dezembro 13, 2019
O voto de ontem
Os britânicos, quer fossem a favor ou contra o Brexit, davam sinais de cansaço quanto ao prolongamento do tema na arena política e de que, a isso ter de acontecer, como tudo indicava que ia ser, que, ao menos, fosse “de vez“, sem mais delongas. Johnson propunha uma hipótese de solução simplista, com bastantes riscos e áreas “cinzentas”, mas que, para uma opinião pública exausta, tinha a vantagem de romper o impasse. Corbyn manteve-se sempre equívoco sobre aquilo que, afinal, mais preocupava o país, fugiu a enfrentar com clareza a questão e, ao invés, tentou levar o debate para um terreno ideológico visivelmente radical, que cedo se percebeu que tinha um apoio limitado. Um ganhou, o outro perdeu. É assim a vida.
A propósito do Brexit
Não quero correr o risco de ter de pagar “royalties” por citações de mim mesmo, mas gostava que relessem estes parágrafos de um texto que escrevi por aqui há poucos meses:
“Para quem não saiba - e isso pode ser interessante no contexto pós-Brexit -, muita da tradicional proximidade entre Lisboa e Londres esbateu-se fortemente após a nossa entrada nas então chamadas Comunidades Europeias, em 1986. Enquanto o Reino Unido continuava a ser um parceiro relutante do processo europeu, Portugal tentava dar um salto "centrípeto", colocando-se no eixo da União, com a deliberada intenção de evitar cair num novo ciclo de perifericidade na sua história contemporânea. Salvo o interesse em manter viva na Europa a relação transatlântica (o que, à época, partilhávamos com os Países Baixos), quase tudo nos começava a afastar dos britânicos. Ler isto pode não ser confortável para algumas pessoas, mas a verdade nem sempre nos pode agradar.
Mas será que a "mais velha aliança", no contexto da futura singularidade britânica perante a Europa dos 27, não tem condições para poder ter um novo fôlego? Não quero desiludir ninguém, mas direi que, naquilo que verdadeiramente nos importa no quadro externo, estamos estritamente ligados ao quadro europeu, que tanto nos condiciona como nos protege e amplifica a nossa capacidade de defesa de interesses. E que tudo o resto, podendo ser interessante de explorar no terreno bilateral, acabará por ter uma dimensão menor e residual. A menos que a União Europeia desapareça, bem entendido. Perguntam-me se ainda acredito na "mais velha aliança"? Acredito, tanto como os ingleses...”
Quando o mundo acordar...
A ruptura entre a URSS e a China, no pós-estalinismo, a “revolução cultural” e o culto de Mao, a que algum mundo ocidental em tempo de turbulência geracional foi sensível, somado à mudança geopolítica criada pelo reconhecimento da China de Beijing pela ONU - tudo isso suscitou, deste nosso lado do mundo, nos anos 50 a 70 do século passado, um surto de curiosidade sobre a República Popular da China.
Foram muitos os livros dos “sinólogos”, mais ou menos elaborados, que se esforçaram por nos ”traduzir” esse mundo estranho, misterioso e imenso, marcado por formas de comportamento, e até de medida do tempo histórico, muito diversas das nossas.
Para além da propaganda do maoísmo, do lado de cá interpretada como uma novidade revolucionária colorida e algo “naïf”, cheia de aforismos doutrinários, que uns achavam uma filosofia profunda e outros meras platitudes de banalidade, houve quem tentasse aprofundar a realidade chinesa.
K.S. Karol e Alain Peyerefitte foram, entre escassos outros, quem mais longe avançou nessa descriptagem da contemporaneidade do “império do meio”.
Ao retomar, num livro que ficou famoso, a frase atribuída a Napoleão - “quando a China acordar, o mundo tremerá” -, Peyrefitte terá sido talvez o mais pragmático “leitor” ocidental dessa nova China. Mas a sua lucidez não escapava, apesar de tudo, a uma caricatura, quase etno-antropológica, de um poder que, não tendo um tropismo externo agressivo, embora assustasse o seu “near abroad”, revelava uma postura internacional atípica, nomeadamente na seleção dos seus interlocutores ocidentais.
Entretido na Guerra Fria com a URSS, fica a ideia de que o Ocidente olhou como algo inócuas algumas iniciativas da política externa chinesa, nomeadamente em África, cuja lógica não era muito evidente e parecia relevar de um casuísmo de competição com Moscovo.
Pode imaginar- se que, para os “think tanks“ mais atentos, que alimentam de ideias os poderes ocidentais com expressão global, não tivesse passado despercebido o salto económico-financeiro que, em escassas dezenas de anos, a China tinha dado. Mas fica a sensação de que, por muito tempo, ela ia sendo vista por muitos apenas como um grande poder “benévolo”.
Com o colapso da URSS, os EUA terão sido os primeiros a perceber que estava ali o novo inimigo potencial, com Moscovo reduzido a adversário de segunda linha. Para a Europa, por muito tempo vidrada nos cifrões, a China era essencialmente um grande parceiro económico, face ao qual se via obrigada a deixar umas piedosas notas em matéria de Direitos Humanos, para salvar a sua face ética.
Um poder global não pode ser apenas económico, como a União Europeia bem o prova, pela negativa. Agora, a China arma-se como potência naval, vital para um poder que vive do comércio e importa o essencial da sua energia e outras matérias-primas, desenha a sua nova “rota da seda“ geopolítica e afirma-se em todos os fóruns relevantes.
O mundo demorou muito a acordar face à China, como se constatou no comunicado final da recente cimeira da NATO.
Os nossos brexistas
Será interessante saber se os portugueses que, no RU, verão o seu estatuto em forte risco com o Brexit, bem como os trabalhadores das nossas empresas que se preparam para sofrer as limitações nas exportações para aquele país, que põem em risco os seus empregos, partilham da satisfação que alguma direita lusa revela com a vitória de Boris Johnson.
A nova potência regional
Barack Obama chamou um dia “potência regional” à Rússia, uma expressão cujo impacto deve ter medido bem, porque, ao contrário do seu sucessor, ele conhece o peso das palavras. O antigo presidente queria significar que, não obstante se tratar de um poder nuclear, com forças convencionais nada desprezíveis, a potência sucessora da União Soviética sofre, nos tempos que correm, de fortes constrangimentos económicos e tecnológicos, que a colocam muito longe dos anos áureos em que se afirmava como um poder geopolítico global, concorrencial com os Estados Unidos, com uma forte capacidade de proselitismo, atração e influência. Acresce ainda, no caso da Rússia, ser atravessada por uma tendência demográfica trágica, que não parece facilmente reversível e pode ter consequências muito sérias no futuro do país.
A expressão de Obama, que encerrava uma inegável verdade, esconde, contudo, uma ironia: para “potência regional”, a nova Rússia de Vladimir Putin mostra uma vitalidade muito apreciável, uma capacidade de ser estrategicamente relevante no seu “near abroad” e mesmo, por vezes, de ir um pouco mais além, como se tem visto em alguns arroubos na Venezuela.
Não cabe aqui analisar o poder do “czar” desta nova Rússia, que dirige com mão forte e evidente apoio popular um país que continua a sentir-se muito maltratado pela História recente, que considera que os seus imediatos antecessores foram incapazes de negociar um final mais honroso para a clamorosa derrota sofrida na Guerra Fria.
O alargamento das fronteiras da NATO até uma escassa distância de Moscovo, bem como de uma União Europeia que integra hoje países que olham para a Rússia quase como um Estado inimigo, deu a Putin um argumento para testar as “linhas vermelhas” do mundo ocidental. A travagem da deriva ocidentalizante na Geórgia, a resposta firme ao “golpe de Estado” que a Europa e os EUA estimularam em Kiev, garantindo a retomada da Crimeia e o hábil “congelamento” do conflito no Donbass, suscitam hoje em alguns a dúvida sobre se o líder russo pode ser tentado a ir mais longe. Em particular nos Estados bálticos, essa questão está bem viva.
Se os vizinhos da Rússia tivessem votado nas eleições americanas, Hillary Clinton estaria hoje na Casa Branca. A disposição confrontacional face a Moscovo demonstrada pela antiga chefe da diplomacia de Obama era objeto de reverência e confiança em vários países que desconfiam da Rússia. Embora a bravata inicial de Trump face ao futuro da NATO tivesse tido uma forte regressão, a certeza no empenhamento absoluto de Washington no automatismo do tratado que leva o seu nome enfraqueceu bastante desde então. Para isso contribuiu ainda o mistério, que só a História um dia esclarecerá, sobre o que há de concreto na cumplicidade de Trump com Putin.
É dessa bizarra parceria que deriva a nova importância que Moscovo ganhou no Médio Oriente. Os erráticos movimentos dos americanos naquela região, a partir da confusa retirada do Iraque, concederam por ali à Rússia um papel nunca antes igualado, passando de quase simbólicos pontos de apoio militar a uma presença “on the ground“, com uma capacidade de interlocução fortíssima, sendo ela hoje o suporte e o garante do poder de Assad na Síria e um fator de ponderação incontornável para os americanos, em quaisquer movimentações de natureza militar que possam vir a pensar contra o Irão. Além disso, Moscovo, que sempre manteve um “jogo de sombras” nunca bem explicitado com Israel, conseguiu, depois de alguns equívocos, estranhamente ultrapassados, gizar uma relação operativa e funcional com a Turquia, que dia a dia se revela mais um “joker” dentro da NATO, onde aliás, também se encontra o seu adversário histórico, a Grécia ... com o qual a Rússia tem uma parceria privilegiada!
Tenho para mim que Barack Obama, quando chamou “potência regional” à Rússia não estava necessariamente a pensar no Médio Oriente, onde ela hoje distribui algumas cartas que usa como importantes trunfos no seu jogo de retoma de poder.
quinta-feira, dezembro 12, 2019
Parabéns, Presidente
Ao ler hoje os jornais (os que ainda sobram...), dei-me conta de que, desde este dia do ano e por algumas semanas, comungamos regularmente a mesma idade.
E pus-me a pensar que, ao longo dos já muitos anos em que nos conhecemos, em que estivemos bastantes vezes em polos bem opostos, em que tivemos mesmo alguns desencontros, em que talvez só por acaso tenhamos conjugado as nossas escolhas na urna do voto, em que nunca fomos íntimos, acabámos por criar, entre nós, uma relação que saiu da cordialidade para um terreno que me atrevo a colocar num registo de amizade.
É esse percurso, um caminho de uma convergência que, no fundo, se baseia no respeito por valores e princípios que sei, de ciência certa, que hoje temos como comuns, que me leva a ousar escrever-lhe, nesta data que espero seja para si e para os seus um dia feliz, uma mensagem pessoal muito simples: de agradecimento e de simpatia.
De agradecimento, pelo apaziguamento que a sua prestação à frente do país, que tão bem sabe encarnar e representar, conseguiu trazer a Portugal, na forma algo atípica como soube desenhar o seu modo de se ligar aos portugueses. Muitos podem não ter apreciado o estilo que imprimiu a alguns desses seus gestos e, aqui entre nós, algumas vezes também eu fui sensível a essas críticas.
Mas, contraditoriamente, é também nesses “erros” que assenta muita da simpatia que sinto pelo modo genuíno como tem atuado. E se há algo que gostava de destacar, agora que entramos num período do ano em que o isolamento dos que caíram fora da roda da sorte se torna mais chocante, esse é, precisamente, o sentido solidário que sempre demonstrou para com esse Portugal a quem o 25 de abril trouxe muito menos do que tínhamos sonhado.
Um forte abraço de parabéns pelo dia de hoje, caro Presidente.
quarta-feira, dezembro 11, 2019
O teatro da verdade
Há muitos anos, tive um chefe só com certezas: perante qualquer assunto, tinha sempre uma sólida opinião, que assumia com uma inabalável determinação. Porém, se as circunstâncias mudavam e, forçado pela realidade, se via obrigado a alterar o que pensava, era em absoluto incapaz de confessar que se tinha enganado. Afirmava a nova posição com total desplante, como se nunca tivesse dito algo diferente. E ai de quem tentasse sugerir que se estava a contradizer!
Quando passei pela política, aprendi que, por aí, a regra era exatamente a mesma. Raramente se ouve alguém dizer: "Enganei-me, procedi de forma errada e, porque aprendi com esses erros, vou de futuro fazer diferente". Um político que assim proceda teme que lhe seja atirado à cara que, afinal, era a oposição da época que tinha razão e que, se ele havia cometido então os erros que agora confessava, talvez não haja razões para o eleitorado voltar a confiar em que ele não venha a errar de novo no futuro. E, por isso, continuará, com a segurança de sempre, a dizer e a fazer coisas diferentes das que fez ou não fez no passado, mas sempre sem se retratar, como se nada tivesse ocorrido, incapaz de pedir desculpa pelos pecados cometidos.
Há quem, numa altivez política, teorize mesmo esse comportamento. A uma figura pública muito conhecida, perguntei um dia que erros reconhecia que cometera, face a uma realidade que se tinha revelado completamente adversa das soluções que ele empreendera. Abespinhou-se comigo e disse-me: "Eu não cometi erros. Atuei, da forma que me pareceu mais adequada, em face dos dados de que, à época, dispunha. Esses dados e os pareceres que recebi com base neles, apontavam para a tomada das medidas que tomei". Ingénuo, perguntei-lhe se, ao menos, se não arrependia de ter assumido as políticas que então preconizara. A resposta foi lapidar: "Arrependermo-nos é errar duas vezes..." E passou à frente.
Será inevitável que os políticos procedam sempre desta forma? É assim tão impiedosa, ao ponto do absurdo, a opinião pública? Não será esta capaz de apreciar a sinceridade, a honestidade e a franqueza, o humano assumir do que se fez de errado? Gostava de pensar que sim, mas não penso. E, por isso, aprendi a viver com os políticos: vendem-nos, na busca do nosso voto, programas que já sabem que não vão cumprir, mentem-nos com toda a verdade que sabem imprimir a um discurso em que, no fundo, nenhum de nós - a começar por eles - acredita. É o teatro da verdade.
terça-feira, dezembro 10, 2019
O regresso dos bufos
Quando as pulsões populistas esquecem o cuidado mínimo a ter com os direitos básicos das pessoas, o resultado é sempre a grossa asneira. A “delação premiada”, que as teorias das justiças de pacotilha utilizam pelo mundo subsdesenvolvido para obviar à incompetência investigativa, tentando acomodar da maneira mais baixa os clamores da indignação justicialista, anda agora por aí nas bocas do nosso pequeno e, por isso, mais miserável mundo.
Ora nós já por cá tivemos a delação premiada! Que outra coisa era senão isso a corte de “bufos” que a Pide alimentava, à custa de alguns tostões e outras benesses?
Imediatamente a seguir ao 25 de abril de 1974, quando dava instrução na Escola Prática de Administração Militar, aproximaram-se de mim dois irmãos, ambos economistas, que frequentavam a especialidade de “Contabilidade e Pagadoria”. Por uma razão que eu não conseguia compreender, esses meus instruendos mostravam-se muito inquietos com a Revolução que tinha acabado de suceder, querendo saber do seu possível destino pessoal, então que a guerra colonial parecia sair do horizonte. Ia acabar já o seu tempo de “tropa”? Regressariam de imediato à vida civil? Encaravam mesmo a hipótese de ir para o estrangeiro.
Eu achava tudo aquilo um pouco estranho! Logo então, que Portugal começava finalmente a “ter graça”?! Mas, embrenhado que andava, por esses dias, nas lides revolucionárias, dei-lhes pouca atenção. Mas, lá no fundo, estranhava aquela aproximação conjugada e um pouco insistente de mais.
Mas acabei por esquecê-los, semanas depois. Só voltei a lembrar-me deles, meses mais tarde, quando veio a ser revelado que esses “irmãos metralha” eram, afinal, dois miseráveis “bufos” da Pide, de quem haviam sido encontradas cartas sob pseudónimo, a denunciar colegas que, por sua culpa, tinham passado “as passas do Algarve”. Isso acabou por vir a público, os canalhas foram desmascarados mas, com toda a certeza, a “bondade” do 25 de abril acabou por esquecer esses pecadilhos e, às tantas, ainda aí hoje andam de costas (a fingir de) direitas.
Se os legisladores portugueses tiverem o topete de trazer para cá o instituto jurídico da “delação premiada”, um sistema de benefício para gentalha a querer absolver-se das suas próprias patifarias, facilmente inventando sobre as dos outros, com o grau de “credibilidade” que o seu estatuto lhes concede, esses legisladores qualificar-se-ão bem a si mesmos. Convém que isto fique dito, alto e bom som, desde já. A justiça, para ser justa, tem de começar por ser decente.
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BOAS FESTAS!
A todos quantos por aqui passam deixo os meus votos de Festas Felizes. Que a vida lhes sorria e seja, tanto quanto possível, aquilo que i...