quinta-feira, dezembro 26, 2019

A reserva islandesa


Podia haver pessos mais forretas do que o meu amigo Álvaro. A mim, porém, nunca ninguém me as apresentou! Fui amigo do Álvaro até à sua morte e pude constatar que, à infindável generosidade da sua amizade, correspondia um cuidado extremo em não gastar um tostão a mais que ele visse como dispensável. Ou, se possível, gastar ainda menos. Tinha, aliás, um extraordinário livro onde anotou, por décadas, as suas mais ínfimas despesas, gorjetas incluídas - um documento que hoje seria precioso, para se aferir da evolução dos preços nesse período.

O Álvaro sempre me considerou um incorrigível perdulário, ficava furibundo quando me via incorrer numa despesa que ele via como supérflua, achava que eu comprava livros a mais, que gastava muito em restaurantes e que não escolhia as formas mais económicas de viajar. Eu, confesso, às vezes fazia certas compras diante dele com uma certa displicência ou deixava uma gorgeta mais redonda, unicamente para ver-lhe no olhar chocado a sua íntima reprovação. Provocar um forreta nunca me pareceu configurar um “crime”...

Tenho um mar de histórias da forretice do Álvaro, mas há uma que, ontem, em conversa com um conhecimento comum, me veio à memória.

Estávamos na segunda metade dos anos 80. Era um tempo em que eu vivia em Lisboa e, um dia, o Álvaro telefonou-me a perguntar se eu conhecia alguém na Islândia. 

Porque ele tinha estado em minha casa uns dias, quando vivi em Oslo, dera conta que era a embaixada portuguesa na Noruega que “cobria” a Islândia, pelo que achou provável que eu tivesse mantido um conhecimento qualquer por lá, não obstante terem passado já alguns anos.

De facto, eu tinha tido contacto com o cônsul honorário português em Reykjavik e disse-lho. Ficou imensamente satisfeito e passou a relatar-me o que pretendia. Ia à Islândia numa viagem que lhe fora oferecida por um jornal com o qual colaborava, mas estava a ter dificuldade em fazer a reserva do alojamento que pretendia.

Para evitar incomodar o nosso cônsul honorário por um assunto tão fútil, disse-lhe que tinha um amigo numa agência de viagens, em Lisboa, que seguramente lhe trataria da reserva. O Álvaro reagiu: “Isso também eu tenho! Mas as agências não conseguem marcar aquilo que eu quero”. 

Que diabo de alojamento tão especial era impossível de marcar a partir de Lisboa, num mundo onde essas coisas já se faziam, à distância, com toda a facilidade? O Álvaro pareceu-me um pouco embaraçado, ao confessar: “Bom, é que eu soube que as instalações do “Exército de Salvação” têm lá umas camaratas coletivas muito boas, com um preço que me ficava muito em conta. Se o nosso cônsul pudesse fazer um telefonemazito a marcar uns dias para mim, tudo seria mais fácil”.

Eu nem queria acreditar! Ficar no “Exército de Salvação” era um recurso quase para indigentes, disse-lhe. Ele não tinha idade nem estatuto para isso. Mas ele não se importava: o preço da dormida era muito “jeitoso”. “Eh, pá! Não sejas chato! Pede lá isso ao homem, não te custa nada”.

Tenho a maior relutância em incomodar os outros, só o fazendo por razões muito ponderosas. E aquela, manifestamente, não era uma delas. Assim, recusei liminarmente fazer o pedido ao nosso cônsul honorário. Nunca cheguei a saber onde é que o Álvaro se aboletou em Reykjavik. (Na internet, descobri agora uma elucidativa imagem de camarata “Salvation Army Guesthouse” em Reykjavik. As coisas a que o Álvaro recorria, quando se tratava de poupar dinheiro!)

O Álvaro ficou um pouco abespinhado comigo. Mas nós nunca nos zangávamos, porque a nossa amizade era à prova de tudo, mesmo da sua incomensurável forretice. Só a sua morte, há já mais de uma década, acabou com essa coisa deliciosa que eram as nossas intermináveis discussões. Este Natal, tive saudades do Álvaro!

6 comentários:

João Cabral disse...

Como diria Agostinho da Silva, era uma pessoa que não tinha dinheiro: este é que o tinha a ela!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

O seu amigo deveria ser uma comédia com as poupanças, decerto iria adorar a presente moda dos Hostels.
Tal como Gilberto Felício de Nunes - protagonista da série "Nós, os Ricos", interpretado por Fernando Mendes - poderia ser alcunhado de "o Gosma".

Anónimo disse...





"superfula" , Sr. Embaixador?

Anónimo disse...

Conheço algumas pessoas das minhas relações (felizmente poucas), que ganham muito bem e até muito e lucrativos negócios, no entanto, têm um comportamento de uma forretiçe doentia, até, ao nivel, de um simples café, que só pagam, se o outro, não se adiantou. È uma boa forma de morrer rico.

Francisco Seixas da Costa disse...

Fiquei superfulo quando o anónimo das 19.46 me apontou o erro que fiz ao escrever superflua.

josé ricardo disse...

O sr. Álvaro, que eu não conhecia pessoalmente, mas somente através dos seus salazarentos escritos na Voz de trás os montes, simboliza muito bem aquele Portugal (lá está: salazarento) que o sr. Embaixador tão bem anota neste blogue e que ainda teima em subsistir nos nossis dias. Fica-lhe, contudo, bem o registo de uma amizade intocável.

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