sexta-feira, dezembro 13, 2019

A nova potência regional


Barack Obama chamou um dia “potência regional” à Rússia, uma expressão cujo impacto deve ter medido bem, porque, ao contrário do seu sucessor, ele conhece o peso das palavras. O antigo presidente queria significar que, não obstante se tratar de um poder nuclear, com forças convencionais nada desprezíveis, a potência sucessora da União Soviética sofre, nos tempos que correm, de fortes constrangimentos económicos e tecnológicos, que a colocam muito longe dos anos áureos em que se afirmava como um poder geopolítico global, concorrencial com os Estados Unidos, com uma forte capacidade de proselitismo, atração e influência. Acresce ainda, no caso da Rússia, ser atravessada por uma tendência demográfica trágica, que não parece facilmente reversível e pode ter consequências muito sérias no futuro do país.

A expressão de Obama, que encerrava uma inegável verdade, esconde, contudo, uma ironia: para “potência regional”, a nova Rússia de Vladimir Putin mostra uma vitalidade muito apreciável, uma capacidade de ser estrategicamente relevante no seu “near abroad” e mesmo, por vezes, de ir um pouco mais além, como se tem visto em alguns arroubos na Venezuela.

Não cabe aqui analisar o poder do “czar” desta nova Rússia, que dirige com mão forte e evidente apoio popular um país que continua a sentir-se muito maltratado pela História recente, que considera que os seus imediatos antecessores foram incapazes de negociar um final mais honroso para a clamorosa derrota sofrida na Guerra Fria. 

O alargamento das fronteiras da NATO até uma escassa distância de Moscovo, bem como de uma União Europeia que integra hoje países que olham para a Rússia quase como um Estado inimigo, deu a Putin um argumento para testar as “linhas vermelhas” do mundo ocidental. A travagem da deriva ocidentalizante na Geórgia, a resposta firme ao “golpe de Estado” que a Europa e os EUA estimularam em Kiev, garantindo a retomada da Crimeia e o hábil “congelamento” do conflito no Donbass, suscitam hoje em alguns a dúvida sobre se o líder russo pode ser tentado a ir mais longe. Em particular nos Estados bálticos, essa questão está bem viva.

Se os vizinhos da Rússia tivessem votado nas eleições americanas, Hillary Clinton estaria hoje na Casa Branca. A disposição confrontacional face a Moscovo demonstrada pela antiga chefe da diplomacia de Obama era objeto de reverência e confiança em vários países que desconfiam da Rússia. Embora a bravata inicial de Trump face ao futuro da NATO tivesse tido uma forte regressão, a certeza no empenhamento absoluto de Washington no automatismo do tratado que leva o seu nome enfraqueceu bastante desde então. Para isso contribuiu ainda o mistério, que só a História um dia esclarecerá, sobre o que há de concreto na cumplicidade de Trump com Putin.

É dessa bizarra parceria que deriva a nova importância que Moscovo ganhou no Médio Oriente. Os erráticos movimentos dos americanos naquela região, a partir da confusa retirada do Iraque, concederam por ali à Rússia um papel nunca antes igualado, passando de quase simbólicos pontos de apoio militar a uma presença “on the ground“, com uma capacidade de interlocução fortíssima, sendo ela hoje o suporte e o garante do poder de Assad na Síria e um fator de ponderação incontornável para os americanos, em quaisquer movimentações de natureza militar que possam vir a pensar contra o Irão. Além disso, Moscovo, que sempre manteve um “jogo de sombras” nunca bem explicitado com Israel, conseguiu, depois de alguns equívocos, estranhamente ultrapassados, gizar uma relação operativa e funcional com a Turquia, que dia a dia se revela mais um “joker” dentro da NATO, onde aliás, também se encontra o seu adversário histórico, a Grécia ... com o qual a Rússia tem uma parceria privilegiada!

Tenho para mim que Barack Obama, quando chamou “potência regional” à Rússia não estava necessariamente a pensar no Médio Oriente, onde ela hoje distribui algumas cartas que usa como importantes trunfos no seu jogo de retoma de poder.

2 comentários:

Luís Lavoura disse...

Tal como a diplomacia israelita, a diplomacia russa evidencia grande habilidade em costurar boas relações simultâneamente com países que entre si não têm boas relações. Por exemplo, a Rússia tem relações de cooperação tanto com o Irão como com Israel.
Ao contrário dos EUA, cuja diplomacia se rege pela perspetiva de amigos ou adversários, preto ou branco.

Luís Lavoura disse...

Moscovo sempre manteve um “jogo de sombras” nunca bem explicitado com Israel

Há que ter em conta que mais de 15% dos judeus israelitas são russos. Falam russo e muitos deles mantêm ainda relações ativas com a Rússia. Tanto Israel como a Rússia têm bem consciência do peso desta comunidade.

Parabéns, concidadãos !