Em 1929, há precisamente 90 anos, o meu pai, recém-ingressado como jovem funcionário na Caixa Geral de Depósitos, frequentava com regularidade esta “casa de pasto”, a “Casa Liège”, situada no alto do elevador da Bica. Era uma tasca de galegos, que à época dominavam a restauração lisboeta. Na sua memória atenta, talvez atiçada pela solidão e pela saudade da sua Viana do Castelo, de onde saíra para trabalhar na capital, nesses seus então 19 anos, permaneceu para sempre a imagem de um empregado galego, de seu nome Ramón, que para dentro, para a cozinha, pedia “um péxe!”. Fixei isto, desde sempre.
Já por aqui contei uma história que ele testemunhou, passada na “Liège”, que envolveu gente da vida política, intensa e tensa, que se viveu nesses dias sombrios da Ditadura Militar. Um “duelo” físico, entre Dutra Faria, à época um propagandista do nacional-sindicalista Rolão Preto, e o republicano vila-realense Carvalho Araújo, viria a marcar, na memória do meu pai, a sua história pessoal com a “Casa Liège”, que fora criada em 1926, e que está hoje nas mãos da hospitaleira família Vieira.
Tenho pena de já não poder contar entre nós com o meu amigo José Sarmento de Matos, o olissipógrafo que ontem foi objeto de uma mais do que merecida homenagem no Museu da Cidade, para ele poder opinar sobre se a “Liège” não será, de facto, nos dias de hoje, um dos mais antigos restaurantes de Lisboa.
Nos anos 80, reverenciador da sua memória, levei o meu pai, numa “romagem”, a almoçar à “Liège”. Descreveu-me então a coreografia da luta a que ali tinha assistido, nesse final dos anos 20 do século passado. Já não me lembro o que comemos, mas o objetivo da nossa visita não era, definitivamente, de natureza gastronómica. O momento fez-nos bem a ambos!
Hoje, animado pelo sol, deu-me para passar por lá, para umas pataniscas (altas mas saborosas, talvez com um pouco de óleo a mais, como expliquei à cozinheira, que se teria evitado enxugando com papel absorvente), um vinho da casa bem razoável e uma conta, depois da sobremesa, a rasar uns bem aceitáveis dez euros. A casa, felizmente, não está descaraterizada e, ao que observei, vive entre a clientela tradicional e o turismo, inevitável e desejável, do lugar. Que se conserve assim!
Só posso desejar à Casa Liège cem anos mais de história e que, se possível, não venha a ser apanhada pela especulação imobiliária. Não sei, contudo, se não será pedir muito...