segunda-feira, janeiro 09, 2012

Acordo de cooperação

O ministro voltou-se para trás, para o adjunto do diretor-geral (era assim que, à época, se designavam, no MNE, os subdiretores-gerais), e perguntou:

- Não há nada para assinar?

Nesses anos 70, estávamos numa reunião entre delegações presididas pelos ministros dos Negócios Estrangeiros de Portugal e de S. Tomé e Príncipe, no palácio das Necessidades. A discussão tinha uma longa agenda, nesses tempos complexos de resolução do contencioso remanescente da transição pós-colonial e do início de alguns modelos de cooperação. Os trabalhos prolongar-se-iam pelo dia seguinte, culminando com uma conferência de imprensa.

A assinatura de um acordo, ou de um outro instrumento jurídico bilateral, ajuda sempre a "compor" uma visita oficial, produzindo, no imaginário público, resultados mais concretos. Durante muitos anos, quando não havia nada para assinar, era vulgar rubricar-se um "acordo de supressão de vistos em passaportes diplomáticos". Hoje, como esses acordos têm consequências mais sérias, é comum o recurso a "protocolos de cooperação", entre instituições da mais variada natureza. Alguns úteis, outros apenas inócuos.

O responsável diplomático, meu chefe, olhou para mim, que tinha o pelouro, passando-me implicitamente "a bola".

- Não, senhor ministro, não há nada para assinar, respondi.

Nos anos anteriores, tinha sido firmada uma montanha de acordos e protolocos entre os dois países. Estava praticamente tudo concluído. Contudo...

- Bom, há um texto que está em estudo no ministério da Saúde. É um protocolo de cooperação que permite prolongar, depois da independência, a possibilidade dos funcionários públicos de S. Tomé terem acesso ao antigo hospital do Ultramar, bem como outras facilidades. Mas não sei em que pé está essa apreciação...

- Veja isso já! Veja isso com o gabinete do ministro da Saúde! Era bom termos algo para assinar amanhã, disse o ministro, voltando-se para a frente.

O meu chefe, excelente amigo e magnífico diplomata, sorriu-me, como que a dizer-me: "já que 'abriu a porta', agora amanhe-se...". E eu fiquei com a "batata quente". Arranquei para o meu local de trabalho, falei com o ministério da Saúde (lembro-me bem de que o meu interlocutor foi um adjunto do ministro, chamado Paulo Mendo... que, bastantes anos mais tarde, viria a ser ministro da pasta!) e, por um milagre, o assunto estava já desbloqueado, com parecer positivo. Fui pessoalmente ao ministério buscar o texto e conferi-o com a embaixada santomense, a qual, sem problemas, anuiu a tudo, até porque praticamente só tinha efeitos unilaterais.

Mandei então dactilografar o acordo. Disse à senhora (as dactilógrafas eram, nesse tempo, todas mulheres) para fazer dois exemplares: um para nós, que abria com "A República Portuguesa e a República Democrática de S. Tomé e Príncipe..." e outro para S. Tomé, em que a ordem dos países era trocada. Para quem não saiba, a regra é que, num acordo, cada país fique com a cópia que começa com o seu nome. O mesmo se passa no lugar das assinaturas, na última página, onde, na nossa cópia, a assinatura do nosso responsável se situa à esquerda. Normalmente, cada país tem o seu próprio papel e capas para os acordos, bem como as suas próprias fitas coloridas, que entrançam as folhas, além de usar um sinete próprio, para firmar o lacre. Coisas da diplomacia universal...

Na tarde da cerimónia da assinatura, que antecedia a conferência de imprensa, tudo correu impecavelmente. Ainda tenho uma fotografia dessa cena publicada no "Diário de Notícias", comigo com um cabelo bastante comprido, largo bigode tipo mexicano e gravata com um nó imenso. A notícia do jornal fala de um "importante instrumento jurídico" assinado nesse dia. O pior foi, no entanto, o dia seguinte.

Nessa manhã, fui acordado bem cedo, em casa, pelo meu interlocutor da embaixada santomense, quase em pânico. É que, na cópia santomense, o nome do seu país não estava apenas trocado no início do texto: em vários pontos do articulado, onde, por exemplo, na cópia portuguesa, se lia que "Portugal compromete-se a facilitar o acesso às suas unidades hospitalares aos funcionários públicos de S. Tomé e Príncipe", surgia "S. Tomé e Príncipe compromete-se a facilitar o acesso às suas unidades hospitalares aos funcionários públicos de Portugal"... As "responsabilidades" para S. Tomé passavam a ser imensas!

O que acontecera? A dactilógrafa havia feito uma leitura "extensiva" da instrução que eu lhe dera para a troca dos nomes dos países, decidindo mudá-los ao longo de todo o texto do acordo. A culpa do que acontecera era, claro, totalmente minha, que, com a precipitação, não tinha tido o cuidado de fazer a verificação dos dois exemplares do acordo.

Levei algum tempo a acalmar o meu colega santomense, explicando-lhe que, mesmo depois de assinado pelo seu ministro, o texto só seria válido após publicado e, naturalmente, isso nunca aconteceria antes de estarem feitas as devidas correções. E, logo nessa tarde, fez-se um novo exemplar, que se pediu, já não sei bem com que argumentário, que o nosso ministro assinasse. E tudo se resolveu.

Ainda hoje guardo o "extraordinário" exemplar assinado pelo ministro Miguel Trovoada, onde S. Tomé se compromete, por exemplo, a "facilitar o envio para Portugal de medicamentos" e outras formas similares de "cooperação".

E só há uns anos, na mesa do "Procópio", ousei contar a história ao ministro português de então, de quem vim a tornar-me amigo. Riu-se a bom rir!

Diplomacia e economia

O site "Dinheiro Vivo", e as suas edições no "Diário de Notícias" e "Jornal de Notícias", trouxeram três respostas telefónicas minhas a outras tantas questões que me foram colocadas sobre o trabalho económico das embaixadas, que podem ser lidas aqui. O "seminário diplomático", ocorrido na passada semana em Lisboa, concentrou-se nesta temática e o ministério dos Negócios Estrangeiros está plenamente mobilizado para, neste tempo de grande exigência, dar o seu contributo para a recuperação económica do país. 

Os titulares das missões diplomáticas e consulares portuguesas são os primeiros interessados em ver valorizado o seu trabalho na área económica, correspondendo às orientações que lhes foram transmitidas pelo poder político. Julgo, aliás, que isso ajudará a alterar uma falsa perceção que existe, nomeadamente em alguma comunicação social, sobre aquilo que a diplomacia portuguesa tem feito, até agora, em matéria de apoio à atividade empresarial. Muitas empresas nacionais são boas testemunhas do grande empenhamento que os diplomatas de há muito colocam na ajuda à sua internacionalização. Sempre desafiei publicamente - e continuo a desafiar - aqueles empresários que possam ter razões concretas de queixa do trabalho das missões diplomáticas a exporem-nas de imediato às nossas autoridades, mesmo a denunciarem na imprensa os legítimos apoios pedidos à diplomacia e não correspondidos. Quem não deve não teme, e isso é válido para todos. O que é inaceitável é ver, por vezes, publicadas críticas de natureza genérica, que ofendem a nossa ética profissional e que mais não são do que meros preconceitos quanto à diplomacia e aos diplomatas.

As coisas podem e devem sempre melhorar, em especial através do reforço de uma cultura diplomática mais "business-oriented", em alguns casos através de uma mais eficaz relação das embaixadas com a AICEP. Tem de existir uma definição clara, por parte dos agentes económicos e dos organismos (associativos ou de promoção) que estruturam a sua intervenção externa, do que se pretende da atividade de cada missão diplomática ou consular. Até porque cada caso é um caso. O exigente ano de 2012 é talvez o tempo certo para levar à prática este esforço acrescido. 

Triplo A

A eventual perda da classificação "triplo A", que a França detém nos "ratings" das principais agências de notação, é uma questão que tem atravessado os debates neste país, nos últimos meses. A questão tem implicações económicas sérias, porque um eventual "downgrading" da França provocaria maiores custos no seu endividamento nos mercados. Outros observadores olham também para o aspeto político do problema, interrogando-se sobre o papel futuro da França como uma das vozes com maior autoridade nas grandes decisões europeias, se acaso a sua desqualificação se processasse. Este último argumento é desvalorizado por outros, que assinalam que a degradação da notação dos EUA não fez perder a Washington um papel central no quadro decisório global.

Uma coisa é certa: para além do efeito sobre a própria França, não seria uma boa notícia para a Europa em geral se as agências de notação viessem a baixar a sua classificação, eventualmente com as de outros países europeus que ainda detêm o "triplo A". Para além dos efeitos de mercado, as consequênciais globais sobre a imagem da Europa seriam muito negativas e teriam imediatas implicações na credibilidade da zona Euro. A somar-se a tudo isso, e se acaso essa degradação viesse a acontecer nas próximas semanas, ela teria um inevitável efeito de antecipado descrédito sobre os esforços em torno da fixação do novo tratado intergovernamental europeu, cuja única verdadeira razão de ser é a tentativa de mobilizar a confiança dos mercados.

Um reputado economista francês contava-me, há dias, uma conversa tida com um responsável de uma agência de notação, que o teria deixado perplexo. Esse responsável assumiu que muitas das decisões, em termos de notação, que a sua empresa fazia eram, não apenas constatações feitas na base de dados objetivos relativos à sustentabilidade financeira de empresas ou Estados, mas traduziam já uma espécie de antecipação daquilo que se podia qualificar como o estado de espírito dos mercados. Assim, para além de uma notação vir a influenciar os mercados, ela própria já "presume" aquilo que os mercados estariam predispostos a ouvir. Interessante e preocupante.  

domingo, janeiro 08, 2012

Anuário

A exemplo de outros países, o ministério dos Negócios Estrangeiros publica um volume intitulado "Anuário diplomático e consular português". A palavra "anuário" é apenas um "wishful thinking", porque, contrariamente ao que o nome poderia indiciar, a sua edição é aperiódica e de aparecimento irregular. Pode dizer-se que o nosso anuário é uma publicação essencialmente católica: só sai quando Deus quiser...

O anuário abre com as biografias das principais figuras de Estado, seguidas de um utilíssimo registo histórico de todos os titulares políticos na área das relações externas, antecedido de um texto, de mais de uma dezena de linhas, que não muda há décadas e que começa assim: "A reorganização da Administração pública, imposta pela experiência na primeira metade do século XVIII (...)". Tive um embaixador que sabia de cor quase todo esse texto...

Recordo-me que, num certo ano, um titular de um cargo político do MNE tinha no anuário, em vias de publicação, uma foto de que não gostava o que, somado ao facto de um seu influente assessor estar mal colocado na hierarquia do gabinete que nele era referida, levou à destruição de todos os exemplares dessa edição. Todos, não! Eu, pelo menos, guardo em exemplar, em cadernos ainda não costurados, dessa "raridade"...

O anuário traz também a composição, endereços e telefones das nossas missões e serviços internos. Porém, como não sai todos os anos, e porque no MNE as pessoas rodam com muita frequência, nunca temos a certeza sobre se estão atualizadas. Hoje existe uma versão informática do anuário, bem mais prática, mas que, por um mistério que nunca entendi, não incorpora as biografias dos pessoal diplomático, técnico e administrativo.

Ora o "sumo" do anuário são, precisamente, os currículos dos funcionários do MNE, que nos permitem ter um retrato do seu perfil e percurso. Durante anos, cada um escrevia a sua biografia como muito bem entendia. Foi um período em que apareceram, em alguns anuários, currículos desproporcionados, sem equilíbrio, em que alguns adidos de embaixada tinham extensões de texto idênticas à de embaixadores "chevronnés". Esse tempo acabou e hoje há uma espécie de "template" que torna as coisas bem mais simples e comparáveis.

Para a minha primeira entrada no anuário, creio que em 1976, enviei um texto em que colocava a minha qualidade de "adjunto do gabinete da Junta de Salvação Nacional, em 1974". O secretário-geral de então pediu a alguém do seu gabinete para me chamar, recomendando que eu retirasse essa menção, aparentemente pouco consentânea com o perfil que se considerava adequado para um diplomata. Com alguma coragem de que hoje me orgulho, recusei firmemente a sugestão e insisti que a minha pertença ao MFA ficasse no anuário. Na última edição, bem mais de três décadas depois, lá figura essa menção, pois claro!

Num qualquer ano da década de 80, foi-me pedido que conseguisse retpmar a edição do anuário, que já não se publicava há uns tempos. Descobri um técnico do MNE que estava desocupado e encarreguei-o da tarefa, dando-lhe algumas divertidas diretivas enquadradoras, que não agora vêm para o caso. Ele foi diligente e, em escassos meses, preparou o livro. Eu fui acompanhando a execução da tarefa, mas escapou-me um pormenor: chegado ao capítulo das biografias dos técnicos, o homem auto-atribuiu-se duas longas páginas, que contrastavam com as escassas linhas dos seus colegas...

Matraquilhos

Desde há dois dias que a "Eurosport" nos traz o "campeonato do mundo" de matraquilhos, a nível de seleções nacionais. Quem havia de dizer que aquilo que jogávamos na "União Artística", lá por Vila Real, ou nalgumas tascas da periferia, haveria de ter honras de transmissão televisiva internacional. Por este andar, um destes dias, ainda veremos os matraquilhos como modalidade olímpica. 

E assim se abre a esperança para a consagração, a prazo, do jogo das "caricas" (ou "latinhas", como se dizia na minha infância).

sábado, janeiro 07, 2012

A caneta

Entrou com um sorriso tão largo como a cabeça, a voz forte, conversa trapalhona e esforçadamente amigável. Estava a fazer um trabalho, lá para o jornal, precisava de umas estatísticas e de umas datas. Para encher o tempo e impressionar, deixou cair os nomes (próprios, claro) dos seus muitos conhecidos na casa, com ar íntimo. Vinha recomendado "do alto".

O diplomata conhecia-lhe a fama, hesitou, mas não teve outra opção: deixou-o só, no gabinete, enquanto foi buscar os tais dados. Minutos depois, quando regressou, notou que um determinado documento, que tinha sobre a sua mesa, tinha mudado de posição. Tratava-se de uma proposta sobre os possíveis integrantes numa visita oficial ao estrangeiro, a nível elevado, que deveria ter lugar dentro de algumas semanas, mas que o diplomata ainda nem sequer tinha feito seguir "para cima". O homem, grande, enchendo a cadeira de braços, continuava sentado em frente à sua secretária, de bloco e caneta (de ouro?) na mão. Disse mais umas coisas, agradeceu os elementos, despediu-se e saiu, ainda e sempre palavroso. 

Dias depois, sobre o motivo do contacto, o semanário nada trazia. Mas lá vinham, escarrapachados, como "furo", os supostos dados sobre a deslocação oficial. Os quais, na realidade, nem haviam sido ainda analisados, ou sequer lidos, por alguém. Excepto na "notícia" desse jornal, já desaparecido, pilhada do documento interno.

Às vezes, como os dias provam, o crime compensa.

sexta-feira, janeiro 06, 2012

Margaret Thatcher

Foi ontem a estreia no Reino Unido de "A dama de ferro", o filme em que Meryl Streep desempenha o papel de Margaret Thatcher, que foi, por mais de uma década, primeira-ministra britânica. Independentemente das críticas que o filme venha a merecer, pelo interesse que a figura política me desperta e pela admiração que tenho pela atriz, tenciono vê-lo, logo que possa.

Thatcher foi uma figura da maior relevância na vida política mundial dos anos 80, quaisquer que sejam as opiniões que a sua orientação ideológica "freemarketeer" possa suscitar. Sucedendo no poder à liderança trabalhista pouco hábil de James Callaghan, soube impor um estilo de governação bastante afirmativo, contrariando alguns poderes sindicais tradicionais, defendeu o Reino Unido em cenários tão extremos como o da guerra das Falkland, assumiu um constante euroceticismo que isolou Londres no contexto comunitário e levou a "special relationship" com os EUA a um tempo de glória para a projeção de Londres.

Adulada pelos conservadores e diabolizada pelos progressistas, entrou em declínio por evidente cansaço público do seu intenso e inflexível estilo, por algumas más decisões políticas e pelo facto de, a partir de certa altura, não ter medido bem a própria dinâmica interna que, contra si, se estava a gerar no seio do Partido Conservador. A sua substituição por John Major resultou de um golpe "palaciano" digno do melhor "thriller", que vária bibliografia descreve com pormenor.

(Sobre a ação de Margaret Thatcher, leia-se, com vantagem, o magnífico "One of us", de Hugo Young, e "Mrs. Thatcher Revolution", de Peter Jenkins. A seu favor, há as memórias de Nicolas Ridley, Norman Tebbit e Cecil Parkinson; contra, as de Michael Heseltine; explicando porque a "deixaram cair", as de John Major e Geoffrey Howe. Sobretudo, não se leiam as desinteressantes memórias da própria Thatcher.)

Fui colocado na nossa embaixada em Londres nos últimos meses do governo de Margaret Thatcher. Tive a inaudita sorte de poder assistir, da bancada dos visitantes da Câmara dos Comuns, na tarde de 22 de novembro de 1990, à sua última e histórica prestação. Recordarei, para sempre, o ambiente barulhento, simultaneamente divertido e tenso, interrompido pelos "order!" do "speaker", desse grande momento da história parlamentar britânica.

Num discurso anti-europeu quase de antologia, marcado por uma sectária identificação da ideia comunitária com o "socialismo", denunciou a "federal Europe through the backdoor" que chegaria com a moeda única (citando um Nigel Lawson, um tanto encurralado no "backbench", obrigado a anuir com a cabeça), demonstrando um ostensivo desprezo pelo líder trabalhista Niel Kinnock (que disfarçava, em conciliábulos com Roy Hattersley, quando Thatcher o acusava de querer "to run, or is it to ruin?, this country" ou quase o insultava abertamente, a propósito da moeda única: "the right honourable gentleman doesn't even know what it means").

Do lado conservador, já conquistado internamente para a queda de Thatcher, o "body language" não enganava: a cara impávida de Kenneth Baker, o esfíngico sorriso de John Major, o esgar afilado de Malcom Rifkind e a face hostil do antigo PM Edward Heath diziam já tudo.

Uma interrupção do seu discurso abriu o momento mais divertido da sessão. Ao ser perguntada se tencionava continuar a lutar contra um "independent central bank" europeu, depois de sair do poder, ouviu-se um sonoro "no, she's gonna be the governor!", dito pelo "maverick" radical trabalhista Dennis Skinner, com o seu blazer espinhado e cabelo à Tony de Matos. Toda a câmara caiu em gargalhadas, Thatcher reagiu com um galhofeiro "what a good idea!" e, na passada, repetiu uma frase que ficou famosa nesta sua derradeira "performance": "I'm enjoying this!". Quem quiser ver a memorável cena, pode consultar aqui.

A senhora Thatcher está hoje incapacitada e não verá, com certeza, o filme que motivou. Mas já faz parte da História. Como disse, pensemos o que pensemos sobre ela, foi uma figura que marcou fortemente uma época.

Politicamente correto

Ontem falou-se aqui de um neologismo do politicamente correto. Hoje conto duas histórias que andam por lá perto.

Há muitos anos, na embaixada em Luanda, confrontei-me com um funcionário que se recusava a fazer entrega de documentos entre os gabinetes, porque tinha deixado de ser "contínuo" e fora reclassificado como "operador de reprografia de 2ª classe". Perguntei-lhe então o que é que ele achava que deveria ser a sua atividade: "tirar fotocópias", respondeu-me. Não me contive: "Eu, se precisar de fotocópias, nunca lhe pediria a si. É que se é de 2ª classe, só deve tirar más fotocópias. Se tirasse boas fotocópias, era de 1ª classe...". 

Um dia, nos Estados Unidos, deixei dois americanos, brancos, um tanto chocados. A propósito de um empregado negro que passava, um deles utilizou, para o designar, o tradicional termo "afro-american". Não resisti e perguntei-lhes: "Digam-me um coisa: como é que eu os designo a vocês? Julgo que o termo WASP (white anglo-saxon protestant) é inconveniente. Posso chamar-lhes "euro-americans"? Não sei porquê, mas fiquei com a sensação de que não apreciaram... 

quinta-feira, janeiro 05, 2012

Nacionalismo económico

O nacionalismo económico é um reflexo normal em tempos de crise. A tendência para o argumentário protecionista, para o estímulo a consumir preferencialmente o que é "nacional" e, à la limite, a busca tendencial da autosuficiência (ouve-se muito isso, sob o conceito de "segurança alimentar", no debate sobre política agrícola), tudo isso faz parte de uma reação natural num tempo de medos e de incertezas.

Sem negar a importância de tentar reduzir, por todos os meios possíveis, o défice da nossa balança comercial externa, alguma prudência e racionalidade devem ser mantidas neste tipo de discurso: basta lembrar que, se todos os outros procedessem da mesma forma, ninguém consumiria um único produto português no estrangeiro. Ora é unânime o reconhecimento de que é na exportação que reside grande parte da chave para o nosso crescimento. Mas convenhamos que é um pouco irónico estar a apelar ao "patriotismo" dos consumidores quando - como se viu  nos últimos dias - há operadores económicos com uma noção de Pátria bem mais ligada à folha de lucros.

O debate sobre esta temática está muito aceso aqui em França, em tempos de campanha presidencial, com os vários candidatos a falarem nela, em tons diferenciados. Há dias, o presidente Sarkozy fazia uma importante distinção entre o conceito de "comprar produtos franceses" e o de "comprar produtos produzidos em França", dizendo ser favorável a que se privilegie a compra destes últimos (mesmo por empresas estrangeiras que aqui investiram e atuam - criando postos de trabalho, pagando impostos) ainda que em detrimento de que de produtos fabricados no estrangeiro por empresas francesas (fruto de deslocalizações, por virtude de regimes salariais e fiscais mais favoráveis e, eventualmente, de algum "dumping" social). Percebe-se a racionalidade desta tese mas, também ela, se confronta com uma realidade inescapável: muito daquilo que, na área industrial, é atualmente produzido, em França como em outras partes do mundo, nomeadamente nas áreas com maior valor acrescentado, obriga à utilização de componentes importados de países com custos de produção mais baixos, sendo de todo impossível garantir a sua substituição por produtos idênticos gerados em território francês.

A globalização (a que, em França, se chama "mundialização") criou uma lógica de funcionamento coletivo dos mercados que, na prática, limita hoje muito o recurso a medidas de "preferência nacional" através de decisões administrativas ou outras de sentido normativo. E a plena interiorização disso na filosofia da política externa da UE reduziu, também bastante, as possibilidades de recuo para a retoma da antiga "preferência comunitária", tanto mais que a justiça comunitária é de um irreversível rigor. O único espaço que hoje ainda existe, para os países que não queiram violar abertamente as regras a que se comprometeram na Organização Mundial de Comércio, é trabalhar nas margens de recuo que o fracasso do "ciclo de Doha" da organização acaba por dar. Basta ver as medidas que o Brasil tomou nos últimos dias para se perceber o que pode representar uma assumida agenda protecionista nos tempos modernos.

Mas é importante que cada um seja chamado a assumir as suas responsabilidades. Muitos dos que agora protestam contra as consequências negativas deste estado de coisas estiveram, com todo o entusiasmo, ao lado dos promotores das aberturas dos mercados nas liberalizações dos anos 80 e 90, quando isso lhes dava jeito para adubar as loas que faziam ao "internacionalismo dos mercado". Isso era então o salvatério para um mirífico bem-estar coletivo, um espécie de "amanhãs que cantam" do liberalismo, aprendido em MBA anglo-saxónicos ou que em Portugal se esforçam por passar por isso. São os mesmos, aliás, que endeusaram a desregulação "criativa" dos mercados financeiros internacionais, com as consequências que agora se viu. E gostaria de lembrar que quando, por essa altura, alguém se atrevia a falar das condições sociais de produção em certos espaços geográficos (trabalho infantil, regras laborais, limitações sindicais, "dumpings" diversos), era um "aqui d'el rei!" de que se estava a tocar na liberdade de comércio. Agora queixem-se...

Fatura

Não consigo encontrar um mínimo de racionalidade na decisão, hoje anunciada na comunicação social, de vir a punir com coimas quem não pedir recibo numa qualquer transação comercial e, ao mesmo tempo, instituir uma outra coima para quem não quiser emitir essa fatura.

Não seria muito mais simples determinar que toda e qualquer transação comercial deveria dar origem automática à emissão de uma fatura/recibo, sem que nunca houvesse necessidade de pedir esse documento? Em vários países onde vivi existe essa regra, pelos vistos inaplicável em Portugal.

Mas, com certeza, devo ser eu quem está a ver mal as coisas.

Neologismos

Hoje, passou-me pela mão um documento oficial em que se fala de "aprendentes" de cursos. 

Será que já faz parte do politicamente correto ter medo de dizer "alunos"?

quarta-feira, janeiro 04, 2012

Diplomacia desportiva

Ontem, durante o Seminário Diplomático, ao ministro francês dos Negócios Estrangeiros, convidado de honra para a ocasião, foi oferecida uma garrafa especial de vinho do Porto, testemunho da importância que tem, para Portugal, o mercado francês. Alain Juppé é "maire" de Bordeaux, onde se produzem magníficos vinhos de mesa, mas nada parecido com o néctar do Douro. 

Como tenho aqui repetido algumas vezes, a França é o primeiro destinatário mundial das exportações de vinho do Porto, embora haja ainda muito a fazer para garantir que possamos aqui vender quantidades significativas dos nossos melhores Portos. E - já agora, vale a pena dizê-lo - não foi fácil conseguir, há alguns meses, numa negociação que foi complexa, isentar o vinho do Porto de uma nova tributação fiscal, no orçamento francês para 2012.

Se a França é, atualmente, o maior consumidor, o Reino Unido foi, desde sempre, o seu mais tradicional destino de exportação. Por essa razão, e porque continua ainda a ser um mercado muito importante, a nossa diplomacia em Londres tem um particular e constante cuidado com a promoção do vinho do Porto e com a sustentação dos fluxos comerciais do produto.

O Porto faz parte, aliás, da tradicional cultura social britânica, quase tanto como o chá (aí introduzido por Catarina de Bragança, diga-se de passagem). Num jantar britânico, é de bom tom, no final da refeição, colocar sobre a mesa uma garrafa de cristal com vinho do Porto: cada pessoa serve-se a si própria e, após fazê-lo, pousa a garrafa sobre a mesa, colocando-a à sua esquerda, por forma a que o parceiro desse lado proceda de forma idêntica. É considerada má educação passar a garrafa diretamente para a mão do vizinho do lado: deve ser ele a levantá-la da mesa. Ah! e, sem exceção, a circulação da garrafa fez-se de acordo com esse sentido, o dos ponteiros do relógio.

Os britânicos têm, como regra, honrar também os seus convidados portugueses com uma oferta de um Porto, no final das refeições. Só que nem todos os portugueses entendem bem isto.

Em 1992, o Benfica foi jogar a Londres, com o Arsenal, e a direção dos "gunners" convidou a direção do clube português para um jantar, num restaurante de Regent Street. Simpaticamente, como encarregado de negócios, fui incorporado na delegação portuguesa. O jantar correu como é "normal" em ocasiões idênticas: os portugueses falaram com os portugueses e os ingleses entre si. Como diplomata, fiz as despesas das conversas com os anfitriões. Nada que não seja comum...

Chegado o final do jantar, assomou à mesa um "decanter" com o vinho do Porto, gesto maior de simpatia para com visitantes, ainda por cima portugueses. E aí, para surpresa imensa de quem nos convidava (e minha, também, confesso), nenhum - repito, nenhum - dos portugueses, com a exceção do diplomata presente, aceitou um cálice de Porto. Uns diziam abertamente que não gostavam, outros que lhes fazia mal e era "pesado", outros apelaram a uma alternativa, como um "malte" ou um cognac. A cara dos britânicos era indescritível. 

A "diplomacia desportiva" tem destas peculiaridades. E, por vezes, não ajuda à económica. Para a pequena história, e para azar dos britânicos, o Benfica ganhou, e bem!

terça-feira, janeiro 03, 2012

Seminário diplomático

Hoje, não vou estar presente no Seminário diplomático, onde o MNE reúne os seus chefes de missão, que estejam de passagem por Lisboa, com a hierarquia das Necessidades. E este era, precisamente, um ano em que haveria mais razões para eu por lá estar: o convidado de honra é o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Alain Juppé. Mas há, do meu lado, impedimentos temporários de saúde que não podem ser ultrapassados.

Este género de reuniões existe, creio, desde a primeira metade dos anos 90. Julgo ter sido em 1994 que assisti, pela primeira vez, àquilo que eram então chamadas as "reuniões de altos funcionários". Em seis desses encontros, entre 1995 e 2001, neles perorei regularmente sobre política europeia, quando as funções que então tinha a isso me chamavam. Creio que não estive presente no seminário por duas vezes: em 2003, porque alguém cuidou em não me convidar, e em 2007, por compromissos oficiais no estrangeiro.

É sempre importante para os chefes de missão ouvir de viva voz o seu ministro, bem como outros altos responsáveis setoriais, apontando as suas orientações para a nossa política externa, no ano que abre. Isso é ainda mais relevante num tempo como o atual, com um novo governo, num momento de excecional exigência, em que a malha diplomática e consular está sujeita a constrangimentos e a severas economias de escala. Perceber bem as nossas prioridades, aquilo em que devemos centrar a nossa ação, as mensagens que devemos transmitir àqueles junto dos quais estamos acreditados, enfim, tudo o que de nós se exige neste contexto muito particular, torna-se, assim, essencial. Essa é a principal razão - para além das que indiquei e do interesse em reencontrar amigos e colegas - pela qual lamento bastante não poder estar presente no Seminário diplomático de 2012.

Corgo

Ao longo da vida, fui aprendendo a não ter opiniões perentórias (é assim que se escreve, nos termos do novo Acordo Ortográfico, por muito que isso custe a alguns) sobre assuntos de que pouco sei. Posso ter sentimentos ou "feelings", posso emitir opiniões "de mesa de café", mas habituei-me a estudar os assuntos antes de sobre eles me pronunciar de forma categórica. E, quando não os conheço, assumo-o claramente. Fico mesmo surpreendido com a imensidão de "tutólogos" (os que falam e escrevem sobre tudo) que por aí anda, alguns, aliás, bem pagos "à peça". Que sabedoria!

Vem isto a propósito do anunciado termo formal da linha do Corgo, a ligação ferroviária entre a Régua e Chaves, passando por Vila Real, Vila Pouca de Aguiar, Pedras Salgadas e Vidago, que teve belas carruagens antigas (1ª, 2ª e 3ª classes) e, durante muitos anos, fumarentas locomotivas a vapor. Não faço ideia se há ou não razões sólidas para a decisão. Deve haver, pela certa.

Tenho no meu ouvido, desde a infância, a voz de um funcionário da CP a chegar à casa da minha família, em frente à estação das Pedras Salgadas, à procura do meu tio João Santos, secretário da Câmara municipal de Chaves: "o senhor chefe da estação manda perguntar ao senhor Joãozinho se ainda se atrasa muito, pois o comboio tem de partir...". E recordo-me que o mesmo responsável pela estação ia frequentemente buscar um banco de madeira para ajudar algumas senhoras da família a galgar a distância entre o cais e o último degrau do comboio. Penitencio-me por nunca ter feito o percurso entre as Pedras Salgadas e Chaves, com a gabada descida do Reigaz, a passagem em Oura e no Vidago, com vista para o Palace, até ao cruzamento com a linha do Tâmega, antes do fim da linha (cujo projeto de continuidade internacional para Verin ficou sempre no papel). Mas ficaram-me na memória, para sempre, apeadeiros com nomes tão sonantes como Nuzedo, Zimão, Tourencinho, Fortunho ou Cigarrosa.

A CP decidiu agora assumir a decisão de fechar a linha do Corgo, ao que parece por imperativas razões financeiras. Não sei quanto custaria manter, para efeitos turísticos, o percurso que ainda existia, entre Vila Real e a Régua. De uma coisa estou bem certo: custaria muito menos do que os oito milhões de euros que as greves dos maquinistas, só no ano de 2011, fizeram perder à empresa. Mas essas são outras contas. 

segunda-feira, janeiro 02, 2012

Os dias do movimento

Estes não são dias como os outros. Na carreira diplomática, as pessoas mudam de postos, de tempos a tempos. Uns transitam entre embaixadas ou consulados, outros passam de Lisboa (da "secretaria de Estado", no jargão da carreira) para lugares no estrangeiro ("para posto"), ou vice-versa. Às vezes, estas novas colocações acontecem caso-a-caso, espaçadas entre si no tempo. Outras vezes, as nomeações têm lugar para um conjunto mais ou menos largo de funcionários. Neste caso, ocorre aquilo a que se chama, na tradicional linguagem das Necessidades, "o movimento". São esses os dias que vivemos.

O movimento é um evento sazonal importante, uma reorientação dos destinos da casa pela tutela, com a atribuição de novas responsabilidades aos funcionários. Nunca se sabe, ao certo, quando o movimento tem lugar, pelo que é invariavelmente precedido de uma imensidão de boatos sobre a sua efetiva concretização ("dizem que já está para assinatura em São Bento"), com palpites diários sobre datas ("cheira-me que ainda sai esta semana. Já tem o OK de Belém"), sempre de "fontes fidedignas" ("uma senhora do 'quarto andar' garantiu-me que já está para publicação"). Umas vezes, as coisas vão-se sabendo ao poucos (fruto das fugas nas "consultas"), noutras permanecem "no segredo dos deuses" até bastante tarde.

Sobre a substância do movimento, a "cultura" do claustro e dos corredores cria, durante semanas consecutivas, "bocas", mais ou menos fundamentadas ("nem te passa pela cabeça quem vai para Bamako!" ou "já está tudo assente: o homem vai mesmo para Hanói. Até já tratou da escola para o filho..."). A coreografia também é vista à lupa ("o tipo já se passeia como se o lugar fosse dele" ou "dizem que o homem anda, há dias, a rondar o 'terceiro andar'" ou ainda "viram-nos a almoçar juntos nas 'Espanholas'; não é por acaso!").

Com a aproximação do seu anúncio, as informações sobre o movimento vão-se tornando mais fidedignas, sendo progressivamente preenchido o quadro virtual de vagas ("afinal, confirma-se que 'fulano' sempre vai para Kampala. O 'beltrano' bem tentou, mas não conseguiu o posto"). Há sempre uns "connaisseurs" frustrados, que depois procuram justificar os seus erros de avaliação ("estava para ser como eu te tinha dito na semana passada, mas houve acertos de última hora, garantiram-me! É sempre assim!"). Há, ainda, as desilusões ("'sicrano' está fulo! Tinha por certo ir para Dushambe e, afinal, fica na secretaria de Estado. Parece que está à espera de Ulan Bator, que só 'abre' em maio, com a passagem 'à disponibilidade' do outro").

E, por fim, há as surpresas. As surpresas são o verdadeiro "sal" dos movimentos, as nomeações de quem se julgava "não colocável" ou de quem se não esperava que viesse a assumir certas funções. Tanto podem emergir de postos atribuídos ("então não queres ver que aquele tipo, depois de tudo o que se passou, ainda conseguiu ser colocado em Cartum? Francamente!...") ou (caramba! Viste o "postaço" que o tipo apanhou, vindo de onde vinha?) como dos lugares "na secretaria de Estado" que foram objeto de preenchimento ("e o homem lá vem para o lugar que queria. Vamos ter que o aturar em Lisboa. Com o feitio dele, vai ser bonito!").

Frases mais ou menos parecidas com estas devem ouvir-se, por estas horas, nos claustros e corredores das Necessidades. Foi sempre assim! Os dias do movimento são sempre dias movimentados.

Lafaye e o fado da Amália

Nestes tempos em que o fado anda tanto por aí, julgo ser justo lembrar o muito que por ele fez, através da promoção de Amália, o escritor, artista plástico e jornalista francês Jean-Jacques Lafaye. 

Lafaye teve um significativo envolvimento na vida artística internacional da fadista, a partir dos anos 80. Mas foram os seus trabalhos sobre Amália, publicados em francês, que muito ajudaram a fixar o fado no imaginário francês, que quero destacar: "Le chant des paroles", "Amalia, le fado etoilé", "Amalia Florilège" e "Récital idéal: Amalia Rodrigues/Carlos" Gardel", entre uma imensidão de outros textos e trabalhos promocionais  

Agora que a UNESCO consagrou o fado, com a ajuda do mundo, entendo que Jean-Jacques Lafaye merece partilhar conosco este momento. Aqui fica o reconhecimento, com um abraço.

domingo, janeiro 01, 2012

Nathalie

Há dias, o programa dominical televisivo "Vivement Dimanche" foi dedicado a Gilbert Bécaud, que morreu já há 10 anos. Para quem, como eu, testemunhou a imensa popularidade que Bécaud teve em Portugal, foi interessante conhecer aspetos da sua vida e trabalho de que nunca tinha ouvido falar, bem como obras de um período em que a canção francesa já tinha deixado de ser popular no nosso país. Curioso foi também ouvir Charles Aznavour contar histórias daquele que foi um seu rival de audiências.

Uma das canções de Gilbert Bécaud que ficaram no ouvido de mais do que uma geração foi "Nathalie", uma música de ritmo pretendidamente russo, que referia episódios de uma estada em Moscovo e, em especial, a companhia de uma guia local, nesses tempos misteriosos de "guerra fria" (anos mais tarde, Elton John, num outro estilo, mas com a "distância" idêntica, faria uma "Nikita", de cariz tendencialmente similar).

À época, as letras das canções não apareciam escritas nas badanas dos discos. Por isso, os mais dotados para línguas lá as iam repetindo com algum rigor, enquanto que outros "seguiam" o som e repetiam coisas que apenas lhes pareciam similares (o caso mais "trágico" eram as, então populares, canções italianas, que eram trauteadas de forma ridícula, muitas vezes sem se ter a noção do que se estava a dizer).

Numa tarde, na mesa vila-realense da Pastelaria Gomes, assisti a uma divertida discussão a propósito da letra da "Nathalie". Um teimoso colega, já um tanto esquerdista, insistia que Bécaud, no texto que cantava, se referia ao "temps beau de Lénine", em glória da Revolução de outubro (que, por acaso, foi em novembro...). Essa "revelação" deu origem a uma gargalhada imensa, até o convencermos (nesse tempo não havia Google nos telemóveis, para acabar imediatamente com as teimas) que a canção fala simplesmente do "tombeau de Lénine", o túmulo do fundador da União Soviética, na Praça Vermelha...

Sensatez

Com os anos, aprendi que uma das maiores provas de maturidade é fugir à tentação fácil, no primeiro dia de cada ano, de começar a fazer dieta, de organizar estantes e papelada, de escrevinhar com cuidado a nova agenda e lista telefónica, de procurar preparar, a tempo e horas, a vida lúdica (espetáculos, férias) para os meses que aí vêm e outras coisas assim ditadas pelas regras de uma efémera previdência, na lógica sergiana (não de António Sérgio, mas de Sérgio Godinho), de que "hoje é o primeiro dia do resto da tua vida". Se o Natal é quando um homem quiser, o ano novo também deve ser. Mudar de vida porque se muda de ano é entregar a nossa existência ao calendário. E isso é muito triste, a menos que ele seja da "Pirelli"

A grande sabedoria é ter coragem para continuar a fazer, no "ano novo", exatamente o que se fez no "ano velho". Nem mais nem ontem. Se há coisa a que é preciso resistir é ao "agora é que é!"  

sábado, dezembro 31, 2011

2012

Não quero começar este ano com uma nota pessimista. Por isso, deixo-lhes apenas uma nota realista.

Votos de um bom ano!

Como se diz na minha terra, "não há de ser nada"!

Última frase

De uma pessoa amiga, recebi, neste último dia de 2011, esta frase de Nietzsche:

"Uma das formas de disfarce mais subtis é o epicurismo e uma certa coragem ostentatória do gosto que assume ligeiramente o sofrimento e se defende de tudo o que é triste e profundo. Há homens serenos que se servem da serenidade porque essa mesma serenidade os torna incompreendidos. E que querem ser incompreendidos."

Acabo o ano com esta frase, de que gostei.

Conhecimentos

Na carreira diplomática, conhece-se muita gente. Esse é apenas o efeito colateral de uma profissão que, pela sua natureza, implica imensos contactos. Quando colocados no estrangeiro, os diplomatas acabam por ter um conjuntural acesso a pessoas, instituições e círculos sociais que estão vedados, em regra, a muitos outros cidadãos. Nas suas próprias capitais, dependendo das funções exercidas, muitos diplomatas são cortejados pelas embaixadas estrangeiras, sedentas de apoio para a obtenção de facilidades.

A primeira regra que um diplomata deve aprender é que esse seu estatuto pseudo-social é limitado no tempo e deriva apenas, ex officio, das funções que transitoriamente ocupa. E que, em regra, isso acaba com o termo dessas mesmas funções. Quando vivi em Londres, ia todos os anos ao "garden party" oferecido pela raínha, que sempre saudava pessoalmente os diplomatas numa receção de gala em Buckingham. Porquê? Apenas porque eu trabalhava então na nossa embaixada. Agora, quando vou a Londres, se um dia quiser visitar o palácio real, compro um bilhete e sigo o guia turístico. E raínha, nem vê-la!

Perceber a naturalidade disto é sintoma de mero e proverbial bom-senso. Mas, infelizmente, nem todos os diplomatas o têm. Conheci colegas, felizmente poucos!, que ficaram convencidos que, pelo facto de terem tido fortuitos contactos com personalidades públicas, passaram a beneficiar de um imediato "social upgrading".

Recordo uma jovem adida de embaixada que, tendo acompanhado o seu ministro dos Negócios Estrangeiros numa delegação a um determinado país, durante a qual o governante foi simpático e "quebrou" alguma distância, se sentiu autorizada, de regresso a Lisboa, a convidar o ministro para a sua festa de aniversário. E ficou ofendida com a "nega" que recebeu...


sexta-feira, dezembro 30, 2011

Prendas

Na vida internacional, recebem-se frequentemente algumas prendas que consideramos bizarras. As mais das vezes, isso deve-se ao facto dos critérios estéticos de certas culturas serem muito diferentes dos nossos. Por isso, ficamos frequentemente "sem graça" ao ser confrontados com ofertas que, de imediato, concluímos que não irão nunca ter um lugar nas nossas casas. Se as oferecemos a terceiros, para além disso poder representar uma ofensa a quem no-las deu se se acabar por se saber desse desvio, também ficamos com a obrigação de explicar o que estamos a dar e a razão por que isso acontece. É sempre um problema, até porque, não raramente, se trata de peças caras, não tendo nós o direito de não reconhecer a gentileza do gesto.

Recordo-me que, há uns anos, a minutos de sair de um hotel de um riquíssimo país do Golfo, para o qual tinha apenas levado uma mala de mão e uma pequena pasta, cheiíssimas já com roupa e papelada, fui surpreendido pela oferta de uma imensa - mas horrorosa! - e muito pesada peça de cristal. Nem eu tinha como a transportar, numa viagem que iria ter duas escalas, nem aquilo poderia alguma vez ser exposto em sítio algum. Optei, em desespero de causa, por oferecê-la ao motorista que tinha andado comigo nos dias anteriores, não sem antes passar uma declaração escrita, garantindo que se tratava de uma oferta da minha parte... Espero que o homem não tenha tido problemas e, em especial, que não tenha contado nada às suas autoridades!

Há dias, pelo Natal, recebi, de um colega de um país onde os critérios estéticos divergem muito dos nossos, uma dessas peças "impossíveis". Comentando o assunto com um amigo, ele notou que também as instituições internacionais são, às vezes, alvo de ofertas que, não podendo ser recusadas, criam problemas para a sua exibição. É que, na decorrência de publicitadas e públicas ofertas, as instituições ficam naturalmente obrigadas a expô-las, sob pena de criarem incidentes diplomáticos.

Isso fez-me recordar uma questão que era objeto de muitas piadas, ao tempo em que estive em Nova Iorque. Tratava-se da famosa estátua de um elefante em metal, oferecida à ONU pelo Nepal, Namíbia e Quénia, uma obra de um artista búlgaro.

O secretário-geral da ONU decidiu colocar a estátua no jardim da organização, entre a 1ª avenida e a rua 48ª. Só que logo surgiu um problema: a expressão hiper-avantajada de um certo órgão do animal suscitou, quase de imediato, um escândalo na cidade, com uma romaria de visitantes a apreciar aquilo que ficou conhecido como a "endowed elephant statue" (estátua do elefante bem dotado). 

Para grandes males, grandes remédios. Com a ajuda de jardineiros hábeis, as Nações Unidas lá conseguiram fazer crescer uma sebe junto ao animal, que lhe tapa as "partes" exageradas e torna mais aceitável a exposição da obra de arte. Consta, além disso, que aquela área do jardim da ONU já não admite visitas, apenas sendo possível ver a estátua de longe. A eficácia deste "cover-up" é tal que na net não se consegue encontrar nenhuma foto do elefante sem a sebe.

A diplomacia foi sempre a arte de resolver grandes problemas. Ou problemas grandes...

Gastronomia

A toda a largura da primeira página do suplemento "Culture & Idées", do "Le Monde" de amanhã, lê-se "La gastronomie vote à droite", esclarecendo-se, em subtítulo do longo artigo (não acessível por link), que "nascida nos meios conservadores, a arte da boa vida faz culpabilizar as pessoas de esquerda".

Não sabia. Será que a direita é pantagruélica ("eles comem tudo e não deixam nada", dizia o Zeca Afonso) e a esquerda é famélica (daí o "de pé, ó vítimas da fome"?) ?

Presidências rotativas

O futuro dirá se 2011 ficará na história da União Europeia como o ano que consagrou o verdadeiro fim da importância das presidências rotativas.

Elemento tido outrora por essencial para a ligação de cada país ao projeto integrador, por suscitar uma mobilização nacional e promover a diversidade de agendas e sensibilidades, a presidência rotativa esteve sempre sob fogo por parte de alguns, que consideravam o modelo como cada vez mais fragilizante da continuidade do trabalho comunitário. Com a passagem da União a 27, foram claras e públicas as dúvidas sobre a capacidade de alguns Estados assumirem as responsabilidades decorrentes da presidência. O tratado de Lisboa, ao criar a figura de presidente do Conselho Europeu e ao retirar à presidência rotativa muitas das suas competências, terá sido a machadada formal no modelo.

Em tempos mais recentes, as coisas foram, porém, muito mais longe. A circunstância de países que assumiam as presidências estarem afastadas do projeto da moeda única, sendo que esta está no centro das preocupações da União, tornou ainda um pouco virtual a sobrevivência do modelo. E esse facto, por outro lado, abriu caminho à emergência dos poderes fáticos dentro da UE, o que, não sendo uma novidade, nunca tinha sido expresso publicamente de forma tão ostensiva.

Como irão evoluir as coisas a partir daqui? A Dinamarca, que assume a presidência no primeiro semestre de 2012, é um país que não adota o euro e tem um "opting-out" no quadro da União Económica e Monetária consagrado nos tratados. Seguem-se Chipre, com um conflito interno que tem repercussões importantes nas relações externas da UE, a Irlanda e a Lituânia. Trata-se de um conjunto de pequenos Estados, numa Europa em que o papel dos grandes Estados parece estar a afirmar-se de modo flagrante. Mas, por exemplo, a Dinamarca e a Irlanda são países com muito forte identidade comunitária, que, no passado, levaram a cabo presidências com grande sucesso. Deixar-se-ão menorizar no seu exercício? Contestarão a preeminência a que alguns se habituaram?

Ironicamente, pode hoje dizer-se que as presidências rotativas estão hoje "protegidas", em ultima ratio, pelo tratado de Lisboa, que foi quem conduziu ao seu enfraquecimento. O facto de, como recentemente se viu, ser muito difícil obter um consenso a 27 para alterar aquele acordo, como que garante que o modelo, pelo menos no plano formal, vai continuar a subsistir.

Jornalismo

Há algumas semanas, em Lisboa, num agradável almoço com Baptista Bastos e João Paulo Guerra, muito se falou das "calinadas" do jornalismo contemporâneo. Mas ambos os meus interlocutores lembraram uma imensidão de histórias passadas, que ficaram gravadas na memória de gozo coletivo.

A melhor das frases foi citada pelo João Paulo Guerra, quando recordou esta "pérola" que abria uma reportagem: "Era meia noite e, no entanto, chovia..."

quinta-feira, dezembro 29, 2011

Havel e Corvacho

Neste final de ano, morreram Václav Havel e Eurico Corvacho.

Visitei Havel em Praga, acompanhando António Guterres, no final dos anos 90. Conheci pessoalmente Corvacho, em 1974/75, nos tempos do MFA.

A morte de Václav Havel mereceu grandes e merecidos títulos. O herói da Revolução "de veludo", um humanista e um democrata, concitou loas de todos os quadrantes. Contrariamente a Alexander Dubček, Havel escapou à habitual tragédia das figuras-charneira da História e viu, em vida, consagrado o seu papel. Intelectual e escritor, apoiou o caminho do seu país em direção à União Europeia, depois da partilha da Checoslováquia. E morreu em glória.

Muito menos leitores deste blogue ouviram falar de Eurico Corvacho. Foi um militar de abril, próximo da "esquerda militar", o grupo que então mais se ligou ao Partido Comunista Português. Foi comandante da Região Militar Norte e a sua imagem surgiu pela primeira vez aos portugueses, pela televisão, a denunciar a atividade de um grupo de extrema-direita que se opunha à Revolução, o ELP - Exército de Libertação de Portugal. Foi membro do Conselho da Revolução. E morreu esquecido.

Havel e Corvacho tinham pouco a ver um com o outro? O discurso maniqueu, tão no "l'air du temps", dirá que Havel quis a democracia para o seu país e que Corvacho apenas queria implantar uma nova ditadura. Eu digo que, cada um, à sua maneira, teve uma ideia de liberdade para o seu país. A História favoreceu aquele que, afinal, tinha razão. Ainda bem.

Nadir Afonso

O "Diário de Notícias", que hoje comemora 147 anos (parabéns!) traz na primeira página esta magnífica obra de Nadir Afonso, o arquiteto e pintor flaviense, com mais de 90 anos. Achei que valia a pena reproduzi-la.

Sentimentos

Deveria merecer o maior respeito de todos nós o sentimento da população da Coreia do Norte, expresso nos últimos dias, pela norte do seu "líder" Kim Jong-Il. 

Quando vejo alguns comentários medíocres e jocosos, na imprensa e nos blogues, a propósito do sofrimento público daquela gente, sinto a obrigação de lembrar que os norte-coreanos vivem uma dupla tragédia.

Por um lado, são vítimas inocentes de um dos mais fechados regimes do mundo, que, há mais de 60 anos, lhes cerceia qualquer informação, os policia intelectualmente e os faz serem meros figurantes num gigantesco "trompe l'oeil" que edulcora a tristíssima realidade do mundo que habitam. E, por outro, esse mesmo condicionamento psicológico indu-los a serem muito genuínos na expressão dos seus sentimentos, porque os conduz a tomar como uma irreparável perda a desaparição de um dos obstáculos à sua própria libertação.

A solidariedade que nos deve merecer a tragédia que afeta os norte-coreanos obriga a que respeitemos a sinceridade da sua dor.

Direitos humanos

O ministério dos Negócios Estrangeiros russo publicou, pela primeira vez, um relatório sobre o cumprimento dos direitos humanos no mundo. 

Nesse texto, Portugal é criticado por não ter transposto uma diretiva comunitária sobre direito de livre circulação e residência. A diplomacia russa considera também que 24% dos brasileiros são discriminados em Portugal.

Abre imensas e legítimas expectativas o facto de Moscovo manifestar a sua preocupação com o tema dos direitos humanos.

quarta-feira, dezembro 28, 2011

Túnel do Marão

Desde há vários meses, as obras do túnel que um dia atravessará o Marão estão suspensas. 

Há uns anos, um empresário de águas (e já então feliz proprietário de um "franchising" das Pousadas de Portugal, a quem comprou por-tuta-e-meia uma das mais carismáticas pousadas do país, conferindo-lhe hoje uma decoração digna de uma "pensão da Tia Anica"), conseguiu mobilizar, por muito tempo, a justiça de Penafiel, para tentar ser compensado por alegados (e, depois, não provados) prejuízos ambientais ao seu negócio, causados pelas obras do túnel. Com o tempo ganho, a estrada se não afastou da tal "pensão". Surgiu depois um novo aliado: os constrangimentos financeiros do país. E assim está bloqueado um dos projetos mais importantes para a diluição da interioridade transmontana, uma terra onde, note-se, nunca se construíram autoestradas ao lado umas das outras. O túnel, incompleto, por lá está, com as estruturas a estragarem-se no inverno e os ex-empregados desempregados. Quem tem culpa? Sei lá! Só sei quem a não tem...

Não tarda muito e ainda ouço a gente da minha terra a cantar a velha canção: "quem me rouba, quem me rouba, quem me rouba é ladrão. Ai, ai, ai, inda ontem fui roubado, ai, ai, ai, nas voltinhas do Marão".

A data

Leio nos jornais que a Samoa vai mudar de data nesta sexta-feira. Isto é, ao final do dia de quinta-feira passará diretamente para sábado. Como é que isto é possível? É muito simples. Por essa zona do mundo existe o meridiano da chamada "linha internacional da mudança da data" e a Samoa "muda-se" para o lado mais ocidental desse meridiano, para alinhar com o ritmo de vida da Austrália e Nova Zelândia.

Há mais de duas décadas, tive de ir a uma reunião internacional (de trabalho, acreditem!) às ilhas Fidji e, no percurso, que fazia na direção EUA-Austrália, tinha de atravessar aquela linha imaginária. Ao pedir as "ajudas de custo", no "4º andar" do MNE, as simpáticas senhoras minhas interlocutoras fizeram-me notar que estava a pedir um dia a menos do que aqueles a que tinha direito. Com efeito, a certo passo, eu saía de Honolulu ao final da tarde de, por exemplo, terça-feira e, meia-dúzia de horas depois, chegava ao aeroporto de Nadi, nas Fidji, já de quinta-feira. Lembro-me bem da pergunta: "mas afinal, o senhor doutor, onde é que dorme na 4ª feira?". Foi complicado fazer perceber que, devido à deslocação de leste para oeste, os meus dias anteriores iriam ser cada vez maiores, ao ponto de um deles ser simplesmente eliminado à chegada à "linha internacional", atravessada a qual se "saltava" um dia.

Sempre imaginei a "tragédia" que teria sido explicar essa viagem ao mundo administrativo das Necessidades, se acaso ela se tivesse feito em sentido contrário...

terça-feira, dezembro 27, 2011

Líbia

No fim deste ano que viu o mundo árabe passar por convulsões cuja resultante final está muito longe de estabilizada, lembrei-me desta história, que contei já algumas vezes a amigos. Mas que nunca tornei pública. Agora, já posso fazê-lo.

Naquele dia, na longa estrada de Misrata para Tripoli, o carro em que eu seguia era conduzido por um engenheiro líbio, formado no Reino Unido. Havíamos feito um desvio para visitar as magníficas ruínas de Leptis Magna (na imagem), a majestosa cidade de colonização romana, situada a mais de uma centena de quilómetros da capital líbia.

Íamos os dois sós, no carro. Falámos bastante, da vida e do mundo, com ele sempre a mostrar-se orgulhoso do seu país e das suas realizações. Não tinha um discurso apologético àcerca de Kadafhi, mas não se lhe notava qualquer pendor para a dissidência. À passagem pela cidade de Homs (homónima da da Síria, da mesma forma que há outra Tripli no Líbano), a densidade de cartazes e "outdoors" com a face do líder líbio, legendados em árabe, tornava-se muito evidente. Ousei então perguntar: "Kadafhi é mesmo popular? As pessoas gostam dele?".

O meu interlocutor, cujo nome devo ter ainda em alguma parte, mas de quem nunca mais tive notícias, ficou silencioso por alguns instantes, olhando a estrada. Depois, retorquiu:

- Se gostam de Kadafhi? Gostam de quem lhes dá casas, como Kadafhi lhes dá. Gostam de quem lhes dá escolas para os filhos, como Kadafhi lhes dá. Gostam dos novos hospitais, que Kadafhi está a construir, bem como destas estradas, que antes não tínhamos. Já andou de avião dentro da Líbia, não andou? Os pobres agora viajam de avião.

De facto, as minhas duas ou três experiências nas linhas internas da Libyan Airlines tinham-me mostrado que os aviões estavam transformados numa espécie de autocarros de província, com imensos beduínos, transportando mesmo gaiolas com galinhas!

Estava a chegar à conclusão que o meu condutor, homem com mundo e um excelente inglês, era, afinal, um fiel apoiante do coronel Kadafhi.

- Kadafhi dá muita coisa ao povo. Paga tudo com o petróleo e há muita gente contente com ele. Você já leu o "Livro Verde"? 

Fiquei num certo embaraço. De facto, havia passado os olhos por aquela "obra", escrita num estilo delirante, de quem tinha "descoberto a pólvora" política, desenhando uma terceira via entre o comunismo e o capitalismo. Kadafhi era uma espécie de "genérico" de Nasser: abolira uma monarquia corrupta, afastara os americanos da base americana de Wheelus (eu estava alojado no "Beach Hotel", ao lado da antiga base, antes frequentado pelos militares dos EUA) e julgava-se fadado a ser um federador do mundo árabe. Mas estava muito longe da dimensão histórica do líder egípcio. O "Livro Verde" havia aparecido em Portugal pela mão de um jornalista já desaparecido, Cartaxo e Trindade, que cheguei a encontrar, numa outra ocasião, em Tripoli.

Sobre o "Livro Verde", eu não sabia o que dizer ao meu interlocutor. Não queria hostilizá-lo, nem parecer complacente. Devo ter dito uma coisas "redondas" sobre a "originalidade" das ideias expressas no livro. Mas também não era preciso, como verifiquei pelo que me disse a seguir, sempre olhando a estrada em frente:

- Kadafhi é um fanático que se acha mais inteligente que todos os outros. O povo líbio não tem grandes queixas materiais, mas não tem, nem percebe que não tem, uma coisa importante que vocês já têm: a liberdade. Mas se "eles" sonhassem que lhe estava a dizer isto, eu seria preso.

Calou-se. Percebi que tinha ido tão longe quanto lhe era possível. Ficámos longos minutos em silêncio. Voltei a encontrar esse engenheiro líbio em algumas reuniões técnicas posteriores. Todas já há muitos anos. Que será feito dele?

A Rússia e o mundo árabe

Muito se tem falado das dificuldades de alguns países do ocidente para encontrarem um modus vivendi com as instáveis decorrências políticas das "primaveras árabes", depois de, durante décadas, terem tido os ditadores derrubados como amigos públicos. E ainda "a procissão vai no adro". O caso líbio absolveu parcialmente as culpas de alguns e a realpolitik, que não tem apenas cultores deste lado, vai fazendo o resto.

Mais intrigante tem sido a posição russa em todo este contexto. A Rússia é um parceiro histórico na região, desde os tempos da União Soviética. Mesmo num período em que a sua debilidade económica era mais notória, o seu estatuto no Conselho de segurança da ONU, bem como as relações que mantinha com certos atores problemáticos da região, justificaram a sua permanente cooptação para os quadros de diálogo, de que o "quarteto" (com os EUA, a UE e a ONU) sobre a questão israelo-palestiniana é caso mais notório.

É sempre interessante acompanhar a linguagem de Moscovo no tocante ao Médio Oriente alargado. Por ela perpassa uma preocupação em evitar a sedimentação de uma presença intrusiva dos países ocidentais nos diversos processos, na tentativa de contrariar o que lhe parece ser um desequilíbro geopolítico que se possa criar em seu desfavor. Esse cuidado é historicamente matizado por algumas notas de adesão, embora frequentemente em moldes algo equívocos, a temáticas tidas como de interesse comum ou já consagradas no "politicamente correto": o combate ao terrorismo, a não-proliferação nuclear, o livre acesso à rotas de fornecimento petrolífero. Sem surpresas, muito menos enfático é o seu apoio ao "empowerment" democrático dos povos árabes e à preservação, sem relativismos culturais, dos direitos humanos.

O caso sírio é aquele onde a posição russa se revela em todo o esplendor da sua ambiguidade. Colocado perante um caso trágico de violência e repressão, num dos cenários onde tem ainda algum "leverage", Moscovo tem vindo a deixar passar os dias e os mortos, numa frieza descredibilizante do seu papel à escala global. O inaceitável "wording" do seu projeto de resolução na ONU, equiparando o que não é comparável - as ações violentas de setores da oposição com a barbaridade da repressão governamental -, revela bem que o poder russo continua tentado por reflexos de meros jogos de poder.

É pena. Por razões de outros grandes equilíbrios à escala global que não vêm para o caso, o mundo precisava de uma Rússia mais aderente e construtiva de uma agenda multilateral e normativa de princípios, que potenciasse a sua influência e se revelasse bastante menos dependente de uma mercantil lógica de fins, evitando a colagem a regimes a que o destino aponta a inexorável direção do caixote do lixo da História. O que se passou, há precisamente duas décadas, em Moscovo, deveria servir de lição. A Moscovo. 

segunda-feira, dezembro 26, 2011

Ping-pong

Se os leitores deste blogue quiserem ter o cuidado de revisitar, um pouco mais abaixo, o post "À esquina da Gomes", sobre o café mais carismático de Vila Real, poderão verificar na fotografia que, sobre as suas instalações. há uma série de janelas, que aparentemente pertencem agora aos escritórios da seguradora francesa Axa. Mas nem sempre foi assim: nesse andar, por muitos anos, situava-se a "urbanização", um serviço chefiado pelo engº Barreto, pai do conhecido sociólogo António Barreto, um dos membros de um avantajado rancho de filhos, alguns dos quais cruzei nos tempos de liceu.

Com um deles, o também sociólogo José Barreto, fui co-autor de uma bem sucedida patranha (numa cidade que sempre teve uma história de grandes "partidas"), algures em meados dos anos 60. 

Sabedores que o Sport Club de Vila Real tinha organizado, ao longo do dia, um torneio de ping-pong, instalámo-nos os dois na "urbanização" (o Zé Barreto deve ter subtraído a chave ao pai), ao final da tarde, e, em nome do "Norte Desportivo", um jornal "azul" de referência nortenha, contactámos telefonicamente a organização do torneio. Explicámos que, lamentavelmente, não havia sido possível ao jornal enviar um repórter, pelo que pedimos que nos fossem transmitidos os resultados do torneio pelo telefone. "Todos?", perguntou o nosso interlocutor, abismado, lá da sede do Sport Club, na Rua Direita. "Todos, claro! Queremos dedicar uma página completa ao torneio". E foi assim que, durante aí uns 20 minutos, o pobre do homem (que sabiamos bem quem era, esperando que o contrário não fosse verdade!) lá ilustrou, com abundantes números, a "reportagem" a "sair" no dia seguinte: "José Fraga/Claudino Areias: 21-12; 19-21; ganhou José Fraga "à melhor", com 23-21". E por aí adiante, com dezenas de outros jogos. 

O Zé Barreto tinha, entretanto uma função vital: como a chamada era supostamente "interurbana", havia que fazer "bip" a cada três minutos, o que se tornava progressivamente difícil, com a "barrigada de riso" que íamos tendo. Quanto tudo acabou, para além de um sentimento de pena pelo nosso esforçado interlocutor, perpassou-nos algum temor sobre o que se iria passar no dia seguinte. Mas logo se veria!

Na tarde desse dia, colocámo-nos estrategicamente numa mesa da Pompeia, o café em frente à tabacaria do Bragança, onde o Fernando "Choco" traria, na sua motorizada, o rolo dos jornais, chegados no comboio da tarde. Por essa hora, notava-se uma pequena multidão na rua, pelos passeios entre a loja do Chico "americano" e a funerária do Zézé. Imagina-se que, derrotados ou campeões, muitos participantes do torneio da véspera estariam ansiosos em ver o seu nome em letra de forma. Arribado o "Choco", vimos os escassos "Norte Desportivo" disputados com ânsia, com aquelas folhas enormes, cuja tinta sujava as mãos, a serem percorridas... em vão!

Lembro-me de me ter safado pela porta que a Pompeia tem para a avenida, temente aos impactos da desilusão. Nunca percebi quantos, com o tempo, nos identificaram como autores da "partida". Uma coisa tenho a certeza: o meu interlocutor dessa noite ainda hoje, mais de quatro décadas passadas, cruza-se comigo com cara pouco amigos. Ó Sr. Mário, deixe lá, já foi há tanto tempo!

Em tempo: dedico este post ao meu amigo Zé Barreto, leitor do blogue, que deixou um comentário no "À esquina da Gomes", onde éramos companheiros de mesa.

Notícias do défice

Neste "boxing day" (no Reino Unido, o dia de hoje é um feriado em que se davam prendas aos mais pobres e em que agora se vai aos primeiros saldos), as notícias do Google trazem-me isto, em destaque de um matutino, sob o chocante título "Filipa de Castro termina noivado": "Filipa de Castro estava noiva de Pedro Tabuada e, no Verão, chegou a dizer que se iriam casar no próximo ano. Mas algo correu mal entre o casal e a relação terminou há algumas semanas".

Devo dizer que sinto um perfeito embaraço, como representante diplomático português, por ser incapaz de titular externamente esta parte - pelos vistos, bastante relevante - do nosso país. É que eu nunca ouvi falar nem na senhora (que está, aparentemente, "destroçada", mas, felizmente, a "aguentar-se firme") nem no cavalheiro. Ora, não se explicando o que cada um faz ou a razão pela qual neles se fala, presume-se que isso é uma evidência que só ignaros sociais desconhecem. Ora, já no verão, a acreditar no jornal, Filipa ("de Castro", será parente da Inês?) já tinha falado em casamento (onde? à CNN? à Bloomberg? à "Flash"?), o que prova ser figura conhecida (o jornal fala em que é "empresária"), que justificou essa entrevista sazonal. Mas também não conhecia (ainda) Pedro Tabuada, sobre cuja atividade não são dados pormenores (o que é ainda mais amesquinhante para mim, porque, como aqui se diz, "cela va sans dire") com o qual "algo correu mal" (o jornal, com certeza, não deixará, oportunamente, de explicar o quê), o que justifica que a relação já tenha terminado "há algumas semanas". 

"Há algumas semanas?" E então a imprensa deixou passar todo esse tempo sem reportar o evento? A nossa comunicação social já não é o que era. 

domingo, dezembro 25, 2011

Anónimos

Não, este post não é sobre os prudentes comentadores deste blogue que, por modéstia, não nos privilegiam com os nomes e apelidos, obrigando-nos a um esforço de imaginação sobre quem poderá estar por detrás dos seus judiciosos textos.

A história é do tempo da velha Emissora Nacional e foi-me ontem contada por um amigo.

Uma locutora, com aquele serenidade das gerações em que a "locução ofegante" ainda não fizera escola e se não transformara em pandemia, apresentava uma obra de música clássica. Melhor: duas obras, que se iam suceder, na emissão, uma à outra. E, desta forma, iluminou os "senhores ouvintes":

- Seguidamente, senhores ouvintes, vamos ter oportunidade de ouvir uma obra musical de um anónimo do século XVIII. Logo de seguida, do mesmo autor, porque segundo a nota que aqui tenho é também de um anónimo, ouviremos uma outra sua obra. Esperemos que gostem.

"Vim a pé!"

Fiquei gelado, quando ouvi a frase: "Vim a pé!".

Era uma noite de inícios de 2009, em Montfermeil, uma cidade na periferia de Paris, onde há hoje fortes tensões étnicas e em que vive uma significativa comunidade portuguesa, felizmente alheia a essa triste realidade. Vínhamos a sair da "mairie" em direção a um pavilhão gimnodesportivo, onde iria ter lugar uma recolha de fundos para um ação social, organizada por um cidadão português, que eu tinha decidido apoiar com a minha presença.

No trajeto entre os dois espaços, ia casualmente acompanhado de um simpático casal português, já idoso. Como muitas vezes acontece neste tipo de circunstâncias, perguntei-lhes de onde eram e há quanto tempo estavam em França. O marido disse-me ser da Beira, creio que de Sabugal, e que tinha chegado a França em 1967. Comentei a coincidência desse ser precisamente o ano da minha primeira deslocação a este país. Lembrava-me bem que saíra de Lisboa, da "rotunda do relógio", à boleia, no final de julho, chegando a Paris no dia 4 de agosto.

"E o meu amigo como veio?, perguntei.

"A pé. Vim a pé", respondeu-me, com grande serenidade, sem qualquer dramatismo.

"A pé? Desde Portugal? Não apanhou nenhuma boleia? Não fez parte do caminho de comboio ou de autocarro?

"Não, vim a pé, todo o caminho, da minha terra até Champigny, com uns amigos. Demorei algumas semanas a chegar", adiantando-me um número de dias que não fixei, mas que era impressionante. Explicou-me então que dormiam nas bermas das estradas e que cantavam, para se animarem. "Rebentavam-nos os pés, mas tinha de ser", explicou, com um sorriso de total naturalidade.

Intimamente, sem o deixar transparecer, eu estava chocado. Tinha ouvido falar muito das trágicas condições em que os portugueses saíam do país nesses anos 60 e 70, das passagem da fronteira "a salto", dos "passadores", da exploração de que eram objeto por parte de outros seus compatriotas, das condições quase infra-humanas do seu transporte para França e Alemanha, mas - imperdoável desconhecimento meu! - nunca ouvira dizer que alguns haviam palmilhado todo o caminho em direção a um futuro em que colocavam toda a esperança.

Hoje, dia de Natal, lembrei-me desse nosso compatriota de Montfermeil. Na pessoa dele, desejo o melhor Natal possível às centenas de milhar de portugueses que, com dificuldades muito diversas, foram forçados a abandonar o seu país e que aqui ajudaram, com o seu trabalho e com a sua dignidade, a tornar a palavra seriedade um sinónimo de Portugal. Nunca lhes agradeceremos demais por isso.

sábado, dezembro 24, 2011

À esquina da Gomes


Sabem o que é a Gomes? A maioria dos leitores deste blogue não sabe, estou certo. Tal como acontece em todas as cidades, Vila Real tem um café de culto. Neste caso, a Pastelaria Gomes.

Porquê a Gomes? Porque sim. Distinguiu-se sempre da antiga Pompeia, do meu desaparecido amigo Neves, por ser mais cosmopolita; da Rosas, do sr. Rosas, por ser mais intimista e dispensar as bizarrias do Toninho; do Excelsior, por ser mais elitista, por esconder os bilhares e não ter dominó; do Clube, por não ser habitual por lá ver comerciantes de gado de samarra e cajado; do Imperial, do sr. Lima, por ali não ser hábito ver o patrão a bater nos clientes; da Brasileira, logo em frente, porque, c'os diabos!, nunca custou nada atravessar a rua.

A Gomes começou na "Gomes velha", onde ainda me recordo de ver, à porta, o sr. Gomes e onde hoje se vai pelo bolo-rei, pelas "cristas de galo", pelos "jesuítas" ou, sazonalmente, no S. Brás, pelas "ganchas" e pelos "pitos" de Santa Luzia, embora a concorrência doceira do Lapão seja cada vez mais feroz. Foi depois construído o novo edifício, que teve a imensa novidade de possuir um elevador... que nunca ninguém viu funcionar. E que tinha, no alto de um mastro, uma misteriosa lâmpada que se mantinha acesa enquanto a casa estivesse aberta à noite, sinal de que podiam ser servidos, se se apressassem, os "connaisseurs" que viessem do Porto, pela estrada velha, logo que chegados à "curva do espanto", em Arrabães, primeiro lugar de onde, no Marão, se vislumbravam as luzes da cidade.

Se a memória me não falha, a Gomes foi, em Vila Real, o primeiro café onde as mulheres podiam ir, com naturalidade, sozinhas. Dizia-se, nesses anos, que receber um convite para tomar chá na Gomes ("em cima", sempre "em cima") com a dona Irene Viana (mulher do dentista e meu professor de ginástica) era o passaporte para a entrada das senhoras na sociedade local. E, glória das glórias!, embora poucos se lembrem disso, a Gomes foi talvez o único lugar público do género onde, que me lembre, nunca entrou uma infernal televisão.

Na Gomes sempre houve zonas geográficas mais ou menos consagradas, que não revelo para não identificar alguns dos seus regulares ocupantes. Entre eles, há os que afivelam sempre um ar "grave", de "polícia da Régua", que parece fazer parte da condição necessária para serem levados a sério. Outros falam para serem ouvidos nas mesas ao lado, num dispensável, por ineficaz, esforço de proselitismo. Os mais discretos, mas, nem por isso, os menos atentos, ficam-se pela mesa mais misteriosa de todo o café, com dois lugares, que está perto da porta interior, o único poiso onde se consegue ter uma conversa "tête-à-tête", sem risco de penduras.

A disposição física do espaço torna a Gomes uma espécie de plateia de um antigo teatro francês, com o "coté cour" e o "coté jardin" a ser dado pelas entradas - seja pela antiga máquina do fiambre (sede clássica de pouso do Zé Araújo), seja pelo antigo balcão dos "furinhos" dos chocolates, onde se colocavam jornais com suporte de madeira e onde, durante muito tempo, esteve o telefone preto. Essas duas entradas do proscénio (o Achilles explicaria isso, mas quem não for de Vila Real sabe lá quem era o Achilles) induzem uma visível timidez em certos visitantes ocasionais, atarantados pelo infalível escrutínio, seguido de cochicho. No verão, tirado o vetusto "estrado", a saída para a avenida muda o cenário, que se prolonga então pela esplanada. Obter por aí um café, em dias de enchente, é um privilégio que obriga a meter cunhas.

Foi pela Gomes que eu comecei a parar, ainda nos tempos de liceu, com mesa marcada "em cima", ao canto esquerdo de quem entra, com o brandy L34 a acompanhar o café, erro que sinto, para sempre, na memória do meu fígado. Por aí passei muitas horas a discutir coisas fúteis da vida e, cada vez mais, da política. Para as caves da Gomes fui cooptado, ritual de iniciação a que atribuí grande importância, para a visualização de alguns filmes heterodoxos, trazidos da estranja por ousados viajantes locais, sobre cujo conteúdo a moral deste blogue me não deixa elaborar. Foi na Gomes que, com alguns outros, fui, em 1969, interpelado pelo comandante da GNR, por comentários entendidos como "subversivos", que, sem consequências de maior, nos conduziram ao Governo civil.

A Gomes, honra lhe seja!, foi sempre um espaço plural, nunca foi grandes políticas sectárias, por lá pararam, serenamente, todas as tendências, da Situação ou da Oposição - e eu estive, ao longo dos tempos, em ambas, e não necessariamente por esta ordem. Em várias décadas, nunca deixei de "ir à Gomes", nas minhas estadas aperiódicas por Vila Real. E por lá passo, com gosto, em férias, sempre que posso, para rever amigos e conhecidos. E, claro, para comer um covilhete ou uma fatia de bola de carne.

A Gomes dos dias de hoje está diferente da dos velhos tempos. Às vezes, vejo-a um pouco desleixada, o pessoal, embora simpático, tem um ar um tanto errático e demasiado "casual" para o meu gosto - eu venho dos tempos clássicos do João, do "Sapo", do Gonçalo, do Fernando ou do José. Mudaram agora de traje, depois de uns balandraus que usaram, pretendidamente de côr laranja, muitas vezes já a justificarem uma visita aos sucessores do Alarcão (se não é vila-realense, passe para o parágrafo seguinte). Prova de uma mudança radical da Gomes é o facto de, julgo que pela primeira vez na sua história, "A Voz de Trás-os-Montes", no ano passado, não trazer um anúncio natalício que já havia ficado histórico na cidade: ao canto de um grande espaço em branco, havia uma nota que dizia: "se a Pastelaria Gomes necessitasse de publicidade, utilizaria este espaço"*. As instituições - e a Gomes é uma instituição - fazem-se de simbolismos. E estes devem respeitar-se, sem o que a identidade se esvai. Atenção, ó gente da Gomes!

Hoje, dia de Natal, a Gomes estará fechada, creio eu (com a crise, sabe-se lá!). Mas há um lugar que, com toda a certeza, não "fecha" e à volta do qual a cidade gira. Esse lugar é a esquina da Gomes, um marco geográfico, charneira entre a avenida Carvalho Araújo e o largo do (regressado) Pelourinho. Por lá nos encostávamos, na adolescência, para ver sair o "pequename" da missa da Sé, logo em frente. Nos invernos, a esquina é sede de ventanias sem par, onde confluem grupos que atiram uns aos outros um indizível "Méixiôres!" (que do vila-realez apressado se transcreve como a saudação "Meus senhores!", enviada de um grupo de passeantes a outros), nesta época natalícia logo seguido do clássico "Continuação!", expressão que se utiliza até aos Reis. Por lá se passeiam, nos dias 25 de dezembro, com sol ou sem ele, as camisolas-de-losangos e os cachecóis que "saíram" nas prendas da véspera, vestindo amigos e conhecidos, mais ou menos "graves", que, do percurso do liceu ao "cabo-da-vila" (desistam aqui os não-vilarealenses), calcorreiam, devagar, a memória sedimentada desde a infância. Como aqui agora fiz, "preso", este ano, a Paris.

Em tempo: o anúncio regressou a "A Voz de Trás-os-Montes". Ainda bem! Um vila-realense amigo mandou-me esta imagem do antigo anúncio. Veja-se a evolução semântica de "reclame" para "publicidade"

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...