segunda-feira, janeiro 02, 2012

Os dias do movimento

Estes não são dias como os outros. Na carreira diplomática, as pessoas mudam de postos, de tempos a tempos. Uns transitam entre embaixadas ou consulados, outros passam de Lisboa (da "secretaria de Estado", no jargão da carreira) para lugares no estrangeiro ("para posto"), ou vice-versa. Às vezes, estas novas colocações acontecem caso-a-caso, espaçadas entre si no tempo. Outras vezes, as nomeações têm lugar para um conjunto mais ou menos largo de funcionários. Neste caso, ocorre aquilo a que se chama, na tradicional linguagem das Necessidades, "o movimento". São esses os dias que vivemos.

O movimento é um evento sazonal importante, uma reorientação dos destinos da casa pela tutela, com a atribuição de novas responsabilidades aos funcionários. Nunca se sabe, ao certo, quando o movimento tem lugar, pelo que é invariavelmente precedido de uma imensidão de boatos sobre a sua efetiva concretização ("dizem que já está para assinatura em São Bento"), com palpites diários sobre datas ("cheira-me que ainda sai esta semana. Já tem o OK de Belém"), sempre de "fontes fidedignas" ("uma senhora do 'quarto andar' garantiu-me que já está para publicação"). Umas vezes, as coisas vão-se sabendo ao poucos (fruto das fugas nas "consultas"), noutras permanecem "no segredo dos deuses" até bastante tarde.

Sobre a substância do movimento, a "cultura" do claustro e dos corredores cria, durante semanas consecutivas, "bocas", mais ou menos fundamentadas ("nem te passa pela cabeça quem vai para Bamako!" ou "já está tudo assente: o homem vai mesmo para Hanói. Até já tratou da escola para o filho..."). A coreografia também é vista à lupa ("o tipo já se passeia como se o lugar fosse dele" ou "dizem que o homem anda, há dias, a rondar o 'terceiro andar'" ou ainda "viram-nos a almoçar juntos nas 'Espanholas'; não é por acaso!").

Com a aproximação do seu anúncio, as informações sobre o movimento vão-se tornando mais fidedignas, sendo progressivamente preenchido o quadro virtual de vagas ("afinal, confirma-se que 'fulano' sempre vai para Kampala. O 'beltrano' bem tentou, mas não conseguiu o posto"). Há sempre uns "connaisseurs" frustrados, que depois procuram justificar os seus erros de avaliação ("estava para ser como eu te tinha dito na semana passada, mas houve acertos de última hora, garantiram-me! É sempre assim!"). Há, ainda, as desilusões ("'sicrano' está fulo! Tinha por certo ir para Dushambe e, afinal, fica na secretaria de Estado. Parece que está à espera de Ulan Bator, que só 'abre' em maio, com a passagem 'à disponibilidade' do outro").

E, por fim, há as surpresas. As surpresas são o verdadeiro "sal" dos movimentos, as nomeações de quem se julgava "não colocável" ou de quem se não esperava que viesse a assumir certas funções. Tanto podem emergir de postos atribuídos ("então não queres ver que aquele tipo, depois de tudo o que se passou, ainda conseguiu ser colocado em Cartum? Francamente!...") ou (caramba! Viste o "postaço" que o tipo apanhou, vindo de onde vinha?) como dos lugares "na secretaria de Estado" que foram objeto de preenchimento ("e o homem lá vem para o lugar que queria. Vamos ter que o aturar em Lisboa. Com o feitio dele, vai ser bonito!").

Frases mais ou menos parecidas com estas devem ouvir-se, por estas horas, nos claustros e corredores das Necessidades. Foi sempre assim! Os dias do movimento são sempre dias movimentados.

21 comentários:

Anónimo disse...

"O movimento acaba por ser mais importante do que o próprio objectivo"

(Eduard Bernstein)

a) Feliciano da Mata, empreendedor de si próprio

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Feliciano da Mata: no meu tempo, aprendi (de ouvido, porque sempre me recusei a ler o "Socialismo Evolucionário", nas edições Zahar)) que a frase do Bernstein (de que, julgo, o meu amigo não gostava, mas essas são outras guerras) era "o movimento é tudo, o fim é nada!". Num dia como o de hoje, a frase tem ainda mais sentido.

Anónimo disse...

Senhor Embaixador, sou homem de poucas letras e o Bernstein que tenho foi policopiado pela JSD em 1974 (o stencil, lembra-se?). Eu era jovem, mas com ideais!

a) Feliciano da Mata

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Feliciano da Mata: haja tento! Não se atreva você, neste espaço, a trazer memórias inconvenientes. Olhe a Alsácia!

Anónimo disse...

Refere-se Herr Bortschaft a Die Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie ?

a) You are leaving the Portuguese sector

Banda in barbar disse...

mobimentos brownianos
All of them crooks
Rooking the guests
And cooking the books
Seldom do you see
Honest men like me
A gent of good intent
Who's content to be
Master of the House
Doling out the charm
Ready with a handshake
And an open palm

Anónimo disse...

O Senhor Feliciano da Mata é bué da fixe! Sendo homem de poucas letras, mesmo assim foi da Jota. É obra!

Eu, mais modesto e mais inculto, só sabia dos movimentos de rotação e de trasladação. Ops, e da translação.

Isabel Seixas disse...

Hum!!! Que aliciante.

Santiago Macias disse...

Em nenhuma das cidades mencionadas temos embaixada. Ser diplomata é, também, evitar ferir suscetibilidades. Imagino eu, que não sou diplomata.

Anónimo disse...

Parece que tudo é escolhido a dedo! E as habilitações e competencias no meio de tanto movimento?
José Barros

Anónimo disse...

Distinga, por favor, o movimento, a mouvance e a movida.

O examinador de embaixadores

a) D. Luis da Cunha

Anónimo disse...

Bem… Do que o Sr. Embaixador fala, passa-se apenas nos meandros do poder…
Nós, por cá, aquilo que ouvimos é:
Fechar-nos-ão a “tasca” e teremos o “movimento” para a mobilidade especial?

Anónimo disse...

Eppur si muove... Aaaaa, lasciatimi!!!

a) Galileo Galilei

Tininha.Fina disse...

Todos esses comentários de ilusões e desencantos aqui fielmente reproduzidos, são apenas a expressão de um genuino sentido de profissional e patriótica missão, visivelmente a pensar em todos nós e no nosso bem.
Haja calhandrice, e calhandreiros não faltam. Mesmo que sejam diplomatas.

Gil disse...

Hillary Clinton, a propósito de um movimento diplomático lá na terra dela:

"In my testimony before the Senate Foreign Relations Committee, I spoke about the use of smart power. At the heart of smart power are smart people, and these talented individuals are among the smartest I know. Along with the entire State Department team, I will count on and turn to these individuals for their expertise, experience, and creative vision to make good on the promises of this new Administration."

PS (ou JSD...)- Viva Feliciano da Mata, não há posto que o abata.

Helena Sacadura Cabral disse...

Os comentários a este post, para quem como eu, fez carreira por outras "casas", constituem um manjar celestial...
Feliciano da Mata, Anónimo das 00:52, Banda in Babar, D. Luís da Cunha e Galileo Galilei conhecem todos os meandros das "Necessidades" e fascinam-me com as suas oportunas intervenções.
Claro que, depois do nosso anfitrião que, espero, permaneça na cidade luz, Feliciano da Mata merece a minha especial atenção. É que mordomos tão sabedores e polivalentes - até tratam de antenas parabólicas - são já raros. Eu que o diga, que ando já há imenso tempo à procura de um buttler de confiança, certa de que ele será peça essencial nesta minha necessidade de oportuna promoção social.

Anónimo disse...

As carreiras em Portugal passam por muitos estádios, mas o melhor de todos eles são as intrigas para chamar a atenção.

Anónimo disse...

Senhora Dona Helena e Senhor Gil, as vossas bondades confundem-me. O meu próximo emprego (já que o restaurante popular que eu abri perto do metro Jaurès foi encerrado, por falta de clientela) será o de limpar ninhos de cegonhas numa pequena cidade das províncias francesas reconquistadas aos boches. O meu espírito empreendedor encara este ofício como um grande desafio e uma oportunidade a não perder. Parto cheio de esperança e de alegria. Quanto ao Senhor Alcipe, nunca mais se viu dele nem uma poesia nem uma intervenção com pés e cabeça. O pobre diabo sem mim não é nada!

Reconhecido a Vossas Excelências

a) Feliciano da Mata

PS - Continuo no ramo das parabólicas. Penso propor às cegonhas instalar antenas nos ninhos para partilharmos os lucros. Nós, modernos empreendedores, somos assim inventivos.

Anónimo disse...

E o Senhor Embaixador não nos diz nada ? Aqui se ficou a saber que, além de Paris, agora fica com a Unesco ? Isto de ser superembaixador tem muito que se lhe diga. Vai ter tempo para o blog ou deixa de dormir de vez ?

Anónimo disse...

Helena Sacadura Cabral, Exma. mãe do Sr. MNE?

Já saberia?

Eu só adivinhava...mas também foi com muito agrado que fiquei a saber.

Anónimo disse...

A forma como o seu Ministério anunciou a remodelação dos embaixadores pareceu uma eutanásia. Não acha ?

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...