segunda-feira, dezembro 27, 2010

O "malho"

Desde que me conheço que me vejo rodeado de dicionários. O meu pai, em Vila Real, tinha dicionários de tudo e mais alguma coisa, de diversos franceses do século XIX (do Gregoire e os Vapereau ao excelente "de la Politique", de Block) aos clássicos Cândido de Figueiredo e Torrinha, passando pelos Lellos (ilustrados ou não). No meio dessa inumerável coleção, havia lá por casa dicionários espanhóis, ingleses, muitos de tradução entre línguas (algumas que nunca falei) e outros cuja utilidade prática verdadeiramente nunca descortinei. 

Com toda a certeza por via dessa saudável influência, desde cedo que comecei a ter os meus próprios dicionários. Lembro-me que ganhei o meu primeiro "Porto Editora" num concurso de cruzadismo e que foi a (depois) minha mulher quem me ofereceu, há bem mais de 40 anos, um fac-simile do "Littré". Aprendi a andar com eles sempre à mão (até nos carros), espalhados por todas as mesas onde trabalhei (e continuo a fazê-lo, porque ainda não acredito nos "on-line" e, muito menos, em alguns imbecis corretores ortográficos). Tenho dicionários um pouco de tudo: de verbos, de sinónimos, etimológicos, onomásticos, de provérbios e incontáveis volumes temáticos (muitos em inglês, francês e espanhol), para além dos óbvios Larousse e Michaelis. Trouxe, do Brasil, o Aurélio (o "Aurelião"), o Houaiss e, claro, o Caldas Aulete. Também tenho as dezenas de volumes da Encyclopaedia Britanica e a Luso-Brasileira  (mas não a da Verbo, com que, desde sempre, embirro), com as respetivas atualizações (até que o bom-senso e a falta de espaço me levaram a parar). E tantos, tantos outros dicionários, enciclopédias e quejandos.

Mas toda esta conversa vem a propósito do "malho". Na minha família o "malho" designa os 12 volumes do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de António de Moraes Silva, na sua 10ª edição, que o meu pai assinara em fascículos durante mais de uma década. Desde miúdo que me habituei a consultá-lo, para ajudar o meu pai e o meu avô nos exercícios de palavras cruzadas, nas noites antigas, em que a televisão nos não monopolizava. Quando a dúvida se instalava sobre um determinado significado, o meu pai dizia, em jeito de desempate definitivo: "vamos ao malho". E eu, impante, encarregava-me com ardor dessa tarefa - de um modo que me levou mesmo a saber de cor as palavras iniciais e finais de cada um dos volumes, inscritas nas lombadas. O "malho*", na sua bela encadernação de couro com ferros dourados, continua a ser o dicionário-rei da minha casa, por mais novos dicionários de língua portuguesa que por aí apareçam - mas que eu não deixo nunca de comprar, sempre...

Mas o (agora) meu "malho" remete para uma historieta curiosa. O meu pai havia mandado encadernar os primeiros seis volumes do "malho" ao sr. Morais (homónimo do autor do dicionário), um dos escassos (mas o melhor dos) encadernadores de Vila Real. Saíu "obra asseada", porque o artesão era excelente, embora um tanto lento.

Uns anos mais tarde, acabada que foi a publicação da totalidade dos fascículos, o meu pai informou o sr. Morais de que estavam prontos para ser encadernados os restantes seis volumes. E aí surgiu uma surpresa desagradável: o homem disse que já não se dedicava a trabalhos tão elaborados, que há muito que havia deixado de utilizar os "ferros" da anterior encadernação e, pedindo embora muita desculpa, informou que não podia levar a cabo a tarefa. O meu pai ficou desolado. Que poderia fazer? A obra ficaria incompleta e não conhecia ninguém capaz de substituir o Morais. Estávamos nos anos 60 e recordo bem do desgosto com que o meu pai falava do assunto em casa.

Na tertúlia diária da Pastelaria Gomes, curiosamente a escassos metros da (então) loja do sr. Morais, o meu pai contou um dia o seu problema a um grupo de amigos. Desse cenáculo fazia parte o comandante da PSP de Vila Real, que logo se prontificou a ajudar: "Não se preocupe. O meu amigo vem comigo ao Morais e o assunto resolve-se já". E lá partiram, o meu pai e o comandante da PSP, rumo ao encadernador. 

A cena que se segue é edificante e bem reveladora dos tempos de então:

- Ó Morais, então o meu amigo não quer acabar a obra que começou?

- Sabe, senhor comandante, já me deixei desses trabalhos mais pesados. Agora estou mais nas revistas e nas encadernações simples.

- Essa agora! Ao iniciar uma obra, um profissional compromete-se a acabá-la. Isso é uma falta grave, ó Morais. Olhe que pode vir a ter problemas...

E, perante o espanto (e o deliciado constrangimento) do meu pai, e graças a este método de (pouco subliminar) convicção, o Morais lá acedeu a acabar o trabalho. Dizia-me o meu pai que ele acabou por se vingar... no preço. Mas o "malho" ficou completo.

* E na pag. 422 do VI volume, lá está a definição de "malho" como"coisa certa, infalível".

domingo, dezembro 26, 2010

Lula e o futebol

Eu tinha chegado ao Brasil há poucos dias. A apresentação das minhas cartas credenciais ao presidente Lula estava muito atrasada, devendo aguardar ainda meses.

Um dia, para minha surpresa, o "Cerimonial" (o nome brasileiro para Protocolo) convidou-me a estar presente no almoço oficial que o presidente Lula oferecia ao presidente do governo espanhol, José Luiz Zapatero. Era um gesto de inusitada simpatia para com o representante diplomático português, porque um embaixador não "existe" oficialmente, perante um chefe de Estado, antes de apresentar as credenciais. Mas as relações luso-brasileiras têm destas simpáticas sublitezas.

No final do almoço, o chefe do Cerimonial, Ruy Casaes, quis ter a acrescida amabilidade de me apresentar ao presidente e ao seu convidado. Lula da Silva deu-me as boas-vindas, de forma bastante calorosa e logo inquiriu:

- Embaixador, qual é seu "time", em Portugal?

- Sou de um clube essencialmente católico, presidente. 

Deixei passar uns segundos e, perante a perplexidade dos presentes, expliquei que era do Sporting, "um clube que só ganha quando Deus quiser".

Lula deu uma gargalhada e disse que conhecia melhor o Benfica e o Porto.

Nesse ponto da conversa, Zapatero - que não me pareceu muito conhecedor de futebol - puxou o assunto para Pélé, afirmando a grande admiração que tinha pelo jogador, que tinha visto jogar em seleções brasileiras.

Lula comentou então:

- O presidente Zapatero sabe que Pélé não fazia parte daquele que é, ainda hoje, considerado como o melhor "time" que o Brasil alguma vez teve?

Aí, eu intervim:

- Está a referir-se ao "time" do Chile, em 1962, presidente?

Lula fez uma cara de quem estranhava bastante que eu soubesse esse preciosismo e retorquiu:

- O embaixador lembra-se do "time" do Chile?

- Muito bem, presidente. E, por acaso, o presidente recorda-se dos jogadores que compunham esse "time"'?

Lula deve ter achado algo impertinente a minha observação, mas lá adiantou:

-  Tinha o Zózimo, o Amarildo, o Garrinha...

Agarrei a oportunidade e "arrasei":

- Presidente, talvez valha a pena começar pelo princípio: Gilmar; Djalma Santos, Mauro e Nilton Santos; Zito e Zózimo; Garrincha, Didi, Vává, Amarildo e Zagalo.

Zapatero estava sem perceber nada. Lula exibia um sorriso espantado e, por um instante, deve ter pensado que Portugal teria decidido mandar para o Brasil um técnico de futebol, em lugar de um embaixador.

- Mas como sabe isso, embaixador? Por que conhece todo esse "time" brasileiro?

Expliquei então ao presidente Lula uma coisa que ele provavelmente desconhecia, mas que, estou seguro, não esqueceu mais:

- Sabe, presidente, a minha geração, em Portugal, quando a nossa seleção nacional não estava numa "copa" do Mundo, tinha o Brasil como a "sua" seleção. E, por isso, eu conhecia muito bem todo o vosso "time", porque o "time" do Brasil era o meu "time".

(Não disse ao presidente Lula que esse "time" do Chile era, por mero acaso, o único que eu sabia totalmente de cor...).

A partir daí, e nos quatro anos seguintes, várias vezes conversei com o presidente Lula sobre futebol, a maioria delas sobre a errática sorte do seu Corinthians. E, infelizmente, nunca encontrei uma boa razão para lhe voltar a falar no meu Sporting...

sábado, dezembro 25, 2010

No topo

O jovem diplomata tinha chegado àquele posto há poucos meses. O seu chefe era uma figura da velha escola das Necessidades, algo severo, um pouco ácido e nada dado a confianças com os subordinados. Recebia-os o mínimo tempo necessário e não criava um ambiente propício a conversas. Apesar de tudo - havia que reconhecer -, não se podia queixar: era tratado por ele com atenção e, profissionalmente, a experiência estava a ser interessante.

Um dia, o chefe chamou-o: deveria, nos três dias seguintes, acompanhar um velho embaixador vindo de Lisboa, que fora destacado para executar uma missão especial naquela cidade, ligada a uma qualquer estrutura internacional. Pela forma como o seu chefe lhe referiu o assunto, percebeu logo não se tratar de alguém com quem ele tivesse uma relação de simpatia muito forte. Aliás, o visitante nem sequer tinha prevista, no seu programa, uma deslocação à Embaixada.

O contacto com o diplomata chegado de Portugal revelou-se, para o nosso jovem, uma surpresa muito agradável. Era um "gentleman" - cordial, falador, contador de histórias interessantíssimas sobre a carreira e a vida diplomática. Estava a ser um prazer acompanhá-lo.

Uma noite, no bar do hotel onde o velho embaixador estava instalado, e talvez abusando um pouco da familiariedade com que estava a ser tratado, o jovem diplomata ousou perguntar:

- O senhor embaixador vai-me desculpar mas, dado o seu profundo conhecimento da nossa carreira diplomática, gostava de lhe colocar uma pergunta um pouco delicada...

- Ó homem, esteja à vontade!, diga lá o que quer saber - responde-lhe, condescendente, o colega mais antigo.

- Como sabe, estou há poucos meses neste posto. Tenho uma boa relação com o meu embaixador, mas já deu para perceber que tem um feitio complicado e dizem-me que está longe de ser uma pessoa consensual na nossa carreira. Tinha, por isso, alguma curiosidade em saber como é que ele é, de facto, cotado no âmbito do MNE.

- Mas isso é muito fácil, caro colega: o seu embaixador está, sem a menor sombra de dúvida, qualificado no topo dos nossos colegas!

- Ah! sim? É tido como um dos nossos melhores embaixadores?

- Não, homem! Nada disso! Está no topo dos maiores estupores da nossa carreira, claro!

Não tenho registado o historial de conflito que terá existido entre os dois velhos diplomatas. Mas coisa séria deve ter sido...

sexta-feira, dezembro 24, 2010

A colher

O diplomata ia a sair do jantar, em casa de um amigo, no posto onde estava colocado. Já perto da porta, o empregado da casa, que ele conhecia de há muito, revelou-lhe a sua indignação: tinha acabado de ver um determinado convidado meter ao bolso uma colher de prata do serviço de café. Valia a pena dizer ao patrão, com o risco de ir criar um escândalo?

Não, não valia a pena, aconselhou o diplomata. E, para surpresa do empregado, pediu-lhe uma colher idêntica, meteu-a no bolso do casaco e regressou à sala, onde a festa  ainda ia animada.

A certo passo, aproximou-se do indivíduo que surripiara a colher e, em tom de cumplicidade, disse-lhe, mostrando discretamente a colher que acabara de meter ao bolso: "Meu caro, dizem-me que "eles" já sabem que fomos nós quem sacou as duas colheres que faltam. Vou pôr a "minha" discretamente naquela mesa ao fundo. Quer lá pôr a "sua" também?"

quinta-feira, dezembro 23, 2010

E agora, José?

Os novos embaixadores tomam assento no banco traseiro daquele que, por alguns anos, vai ser o seu carro oficial, na capital a cujo aeroporto acabam de chegar. 

Minutos volvidos, do banco de trás, a embaixatriz inquire do seu novo motorista:

- Desculpe. Não fixei o seu nome. Como disse que se chamava?

- Mário, senhora embaixatriz, responde o homem.

Segue-se um silêncio, após o que a embaixatriz retorque:

- Ó Mário, dado que o meu marido também se chama Mário, e para evitar confusões, vou passar a tratá-lo por outro nome. Pode ser José?.

- Pode, senhora embaixatriz, diz o motorista, entre o tímido e o assarapantado.

E assim foi, durante mais de quatro anos. Quando, finalmente, chegou o dia em que aqueles embaixadores partiram definitivamente do posto, durante o regresso à cidade, o "José" voltou-se para o diplomata que com ele viajava no carro e perguntou:

- O senhor doutor acha que eu, agora, já posso voltar a ser tratado por Mário?

Diplomatas

Tenho grandes dúvidas sobre a eficácia informativa das peças jornalísticas que, ontem e hoje, o "Diário de Notícias" publicou sobre a diplomacia portuguesa. Nem me quero pronunciar sobre o rigor do que foi escrito, até porque há por ali dados que eu próprio desconhecia.

A condição diplomática tem "nuances" de vida que se torna muito difícil explicar, em particular porque há aspetos menos claros e menos óbvios para quem tem um quotidiano  profissional mais sedentário.

De qualquer forma, quero louvar o esforço de quantos procuram, dentro da estrutura sindical que agrega os diplomatas - e de que já fui vice-presidente, com responsabilidades na negociação do estatuto da carreira -, defender os nossos interesses profissionais, sublinhando junto do poder político os direitos de uma das poucas carreiras públicas que nunca fugiu aos seus deveres e que, nesse âmbito, tem dado constantes provas de um elevado e não ultrapassável sentido de Estado. 

Sei que falo em causa própria, com tudo o que isso diminui a autoridade do argumento, mas é o que sinto.

quarta-feira, dezembro 22, 2010

António Patriota

Quem o conhece, conhece-lhe bem as qualidades. E eu julgo conhecê-lo. O futuro ministro das Relações Exteriores do Brasil, António Patriota, é um homem sereno, ponderado, profundamente habilitado para liderar a face externa de um país que já não é "emergente" porque, de há muito, emergiu já como um "global player" no cenário internacional.

Em Brasília, trabalhámos com grande proximidade durante alguns anos e, em certos momentos mais delicados, soubémos descobrir soluções para o tipo de problemas que a profissão nos ensina a tratar de forma discreta, sem recurso à "diplomacia do megafone".

Boa sorte e um forte abraço, António!

Nomes

A carreira diplomática portuguesa é, de há muito, uma escola de convivência bem disposta, onde se trocam graças, "nicknames" e humor, este às vezes um pouco ácido, na maioria dos casos inóquo. É com essa ironia que se conserva um ambiente e uma "cultura" muito próprios, que alguns não entendem, que outros invejam.

Quando entrei para a carreira, ouvi histórias ligadas a dois "nomes", que nunca esqueci. Diziam respeito a colegas antigos, figuras respeitadas da nossa profissão. Só conheci pessoalmente o primeiro.

Esse primeiro era o embaixador Braga Condé, trasmontano como eu. Qual era a graça que lhe dizia respeito? Era o facto de alguns colegas, ao referirem-se-lhe, falarem do "nosso colega Draga". Porquê "Draga"? Porque era "Braga com 'dê'..."

A outra história refere-se a Carlos Lemonde de Macedo, que não julgo ter conhecido. Ao que me dizem, dado tratar-se de alguém de pendor bastante conservador, havia colegas que se lhe referiam como "Carlos Le Figaro de Macedo"...

Sem a ironia, a diplomacia tem muito menos graça!

terça-feira, dezembro 21, 2010

A "Seara" e o padre*

O grupo "Seara Nova" foi, sem dúvida, a mais fecunda escola de pensamento crítico nascida durante a primeira República portuguesa. Dentre os seus objetivos figuravam o aprofundamento de temáticas culturais, cívicas, pedagógicas e económicas, para o que congregou figuras de relevo da intelectualidade portuguesa de então. Criado em 1921, dando origem a uma revista com esse nome, o grupo "seareiro" representou, a partir de 1926 e durante toda a ditadura, um polo alternativo em matéria de reflexão em torno das ideias e da sociedade, com regular acolhimento de textos de muitas personalidades desafetas ao regime, o que lhe valeu ser alvo cíclico da repressão, com uma constante perseguição por parte da censura.

Muitos recordarão a imagem histórica do grupo "Seara Nova", que adiante se reproduz:
Os seus integrantes são nomes sonantes do grupo. Sentados, da esquerda para a direira. estão Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro e Raul Brandão. De pé, pela mesma ordem, veem-se Teixeira de Vasconcelos, Raul Proença e Câmara Reis. Dos fundadores da "Seara", faltarão, na foto, António Sérgio e Augusto Casimiro, se não estou em erro.

Para quem, como eu, tem a coleção da "Seara Nova" desde os anos 50 (adquirir as décadas anteriores é difícil, embora não impossível, mas não tenho espaço para tal), esta fotografia faz parte da minha memória eterna dos "seareiros".

Um dia, porém, nos anos 70, ao analisar um número comemorativo dos 50 anos da "Seara", atentei melhor na fotografia do grupo que essa publicação apresentava. Por uma razão que na altura não identifiquei, achei nela algo de estranho. Fui então à procura de outras imagens do famoso grupo de 1921 e - supresa das surpresas! - verifiquei que as fotos não coincidiam. 

Querem saber porquê? Vejam:
Como se diz nos passatempos: observe as diferenças!

E a principal dentre elas é a existência de um padre no canto superior esquerdo desta segunda foto - esta que é, de facto, a foto original.

Ao que reza a pequena história, "não daria jeito" ter o padre na fotografia. E quem era ele? Trata-se do anónimo pároco de Coimbrão, localidade perto de Leiria onde, em casa de José Leal, teve lugar a reunião fundadora da "Seara" e onde foi tirada a foto. Porque  ninguém terá querido afastar o padre da ocasião, foi decidido apagá-lo mais tarde, historicamente, da fotografia do grupo. 

Como se vê, nem só Estaline tirava Trotsky das fotografias. Mais ou menos pela mesma época, aliás...

* Uma amiga que, neste Natal, esteve na casa onde a foto foi tirada, esclareceu que o "apagado" pároco se chamava Horácio Biu. Finalmente, o homem recuperou o nome...

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Óquei

Uma curta notícia num jornal dava ontem conta da morte de Correia dos Santos. Mas quem era Correia dos Santos? - perguntará a maioria dos leitores, para quem este nome nada dirá.

Pois fiquem sabendo que foi uma das grandes figuras do óquei português, lado a lado com o seu primo Jesus Correia (na foto, à esquerda, em baixo, e que também pertenceu aos "cinco violinos", esse ataque mítico do futebol do Sporting). Correia dos Santos, com o seu inconfundível cabelo de risca ao meio, está à frente, à direita. Entre ambos, está Raio, que, há anos, fui encontrar a chefiar uma unidade hoteleira em Sintra. De pé, ao lado do selecionador José Prazeres, figuram, da esquerda para a direita, Sidónio, Emídio e Edgar. 

Este foi um "dream team" dos anos 50, que antecedeu outras magníficas equipas do nosso óquei, com jogadores da qualidade de Livramento, Adrião, Rendeiro, Cristiano e tantos outros. Quantas noites passei, agarrado ao rádio, a "imaginar" o deambular dessas nossas equipas por rings do mundo, em especial nessa que era a "catedral" de Montreux, na Suíça, onde as grandes "batalhas" tiveram lugar.

O óquei em patins era, no tempo do Estado Novo, a modalidade que trazia para Portugal a maioria das muito escassas vitórias que o nosso desporto internacional conseguia obter. A qualidade do nosso óquei era indiscutível e, por muitos anos, apenas se nos opunham, com algum êxito, a Espanha e a Itália. 

Honra, assim, a Correia dos Santos!

domingo, dezembro 19, 2010

Contra-informação

Confesso que nunca fui, em nenhuma das suas fases, um espectador regular do "Contra-informação". Depois de ter sido uma novidade, o modelo cedo me cansou, porque a criatividade dos "gags" era, por vezes, escassa, com a "magia inicial" do programa a perder-se com rapidez. Verdade seja que isso me aconteceu, da mesma forma, com modelos similares, como o britânico "Spitting image" ou com os "Guignol" franceses. Mas sempre continuei a atentar, a espaços, aquela forma, que às vezes ainda era divertida, de caricaturar o quotidiano luso. 

Por ser verdade, quero dizer que, frequentemente, discordei do caráter arbitrário do perfil atribuído a algumas dessas caricaturas, por entendê-lo injusto e, mais do que isso, pelo facilitismo que se traduzia em "fazer coro" com difusos e orientados sentimentos prevalecentes no seio da opinião pública. Não sei se, muitas vezes - quer à esquerda quer à direita, diga-se, ao longo da década e meia do programa -, esse sublinhar a traços mais "grossos" de algumas figuras não terá contribuído, num país em que a capacidade de absorver com rigor a informação não é uma característica generalizada, para confundir e reforçar alguns estereótipos. Repito, de forma injusta.

Mas, dito isto, será melhor ficarmos sem o "Contra-informação", como agora foi decidido? Confesso que, no seu saldo final, acho que o programa tinha uma função positiva, por conseguir manter uma permanente leitura de humor sobre a sociedade política, dessacralizando-a, o que é sempre muito importante em todas as democracias. Assim, acho que o fim do "Contra-informação" não constitui uma boa notícia para o país.

sábado, dezembro 18, 2010

Duhamel

Alain e Patrice Duhamel são duas figuras de relevo do mundo audiovisual francês. Com um percurso na rádio, na televisão e no jornalismo que não esteve isento de polémicas, algumas bem fortes, estes dois irmãos simbolizam, de certo modo, um estilo de jornalismo que não pode ser indiferente a quem se interessa pela vida francesa.

Há dias, saiu um livro em que os dois Duhamel são entrevistados no Renaud Revel. Embora, por vezes, entrando num detalhe de "name dropping" um tanto complexo para um leitor fora do meio ou que por França não viveu nas últimas décadas, essas conversas são um percurso fascinante pelo mundo das relações entre os políticos e o jornalismo, desde os tempos de Giscard d'Estaing até à atualidade, com referências muito curiosas a diversos momentos anteriores. Um livro muito útil.

sexta-feira, dezembro 17, 2010

Procópio

No ano passado, tínhamos perdido o Raul Solnado. Este ano, vai-nos faltar o Jorge Fagundes. Nestas coisas da morte, apetece dizer "é a vida", utilizando a expressão de um certo engenheiro.

Talvez por isso mesmo, hoje, no restaurante da Ordem dos Engenheiros, lá estaremos muitos, no jantar de amigos em que a tertúlia da "mesa dois" do bar "Procópio" se junta, anualmente, numa rotina que, desde há seis anos, eu teimo em não deixar cair. E a que espero chegar a tempo.

Começámos há seis anos na "Marítima de Xabregas" (como contraponto a uns "pontos" que antes se haviam ajuntado, de gravata liberal, lá p'ró Beato), passámos pelo "Manel" do parque Mayer (para ver in loco o andamento das obras do Frank Gehry), demos uma de "finaços" no "Vírgula", até que este se finou (por obra e graça dos sábios administradores da nossa estiva) e, agora, vamos mudar para o restaurante de uma estimável corporação. Mas todos acabamos, cedo ou tarde, no "Procópio".

Olá, Alice!

quinta-feira, dezembro 16, 2010

Festas

Em princípio, a partir de hoje e nos tempos mais próximos, este blogue vai entrar num registo de alguma acalmia "postal". Mas como a realidade é, às vezes, mais imaginativa que os homens, não se admirem se assim não acontecer.

E, desde já, ficam os meus votos para quem por aqui passar: Bom Natal e um ano de 2011 bem melhor do que aquele por que todas estamos à espera.

Voos (2)

Confesso que, num primeiro momento, pareceu-me que podia havia pessoas legitimamente confundidas. Agora acho que já estamos do domínio da pura desonestidade. Na imprensa, nos blogues e em alguns comentários que por aí se produzem.

A mistura da questão dos voos da CIA para Guantanamo com os voos de repatriamento, vindos de Guantanamo, é uma atitude que releva da mais sofisticada má fé e de uma clara opção pela política do "vale tudo". Tenho muita pena de ver pessoas que estimo entre quantos continuam a procurar explorar, sem  qualquer pudor, esta confusão. A chicana política deveria ter a decência como limite. Mas não tem. Pelo menos em Portugal.

E deixem-me que lhes diga, acho uma suprema ironia ver figuras que sempre demonstraram, por doutrina de vida, a maior desconfiança na palavra dos americanos virem agora tomar à letra, como doutrina de fé, os relatos dos telegramas das missões dos EUA por esse mundo fora.

quarta-feira, dezembro 15, 2010

Carlos Pinto Coelho (1944-2010)

... e assim, "acontece"! Morreu Carlos Pinto Coelho, um homem que tinha em si todo o entusiasmo do mundo e que, por muitos anos, com aquele sorriso aberto, ajudou, diariamente, a divulgar a cultura portuguesa.

Alguns recordarão também aquela forma tão característica de apresentar o "Jornal" da RTP2, que levou Herman José a criar um "boneco" nele inspirado, sem que o Carlos com isso se ofendesse. E outros reterão para sempre aquele que foi o eterno homem da rádio.

Lembro-me do curioso dialogo que uma noite estimulou, na RTP, entre o embaixador Calvet de Magalhães e eu próprio, sobre a diplomacia e as suas histórias. O que me deu algumas ideias...

Um dia, quando uma patetice de alguém o afastou de fazer o que gostava e fazia bem, o Carlos Pinto Coelho disse-me que ia para o Alentejo. Depois, voltou, creio para a TSF e para a sua eterna RTP. E agora, partiu. "Acontece"...

Até sempre, Carlos!

Ensino

Podia ter graça, se não fosse triste, o tom, entre o chocarreiro e o complacente, com que alguma imprensa e muita blogosfera olhou para os resultados educativos em Portugal anunciados pela OCDE. 

Para quem se compraz no aprofundar dessa arte bem lusitana que é dizer mal de Portugal, talvez não fizesse bem (pelo menos, aos que ainda aprenderam francês) lerem o que o "Le Monde" de hoje traz sobre o assunto, ressaltando, com admiração e muito destaque, os resultados do nosso país. 

Mas eu sei que isso vai a contraciclo de "l'air du temps" e que, para muitos - ao escrever o que escreve -, deve tratar-se de um jornal "vendido"...

terça-feira, dezembro 14, 2010

Richard Holbrooke (1941-2010)

A morte de Richard Holbrooke é uma perda importante para a diplomacia americana. Embora alguns discutam a eficácia efetiva da ação que recentemente vinha a desenvolver no Afeganistão e Paquistão, o seu passado de cidadão da diplomacia revela uma vida de intenso trabalho, com papéis importantes em vários cenários geopolíticos. No seio da administração democrática americana foi sempre um defensor do uso ponderado da força, atitude que, algumas vezes, não soube gerir com total equilíbrio. Mas ficam-se-lhe a dever os acordos de Dayton-Paris, sobre a Bósnia-Herzegovina, que permitiram estancar uma tragédia que já parecia eterna, embora eu saiba, por antecipação, que entre os leitores habituais deste blogue há quem não coincida comigo na avaliação da "bondade" desta ação diplomática.

Conheci-o pessoalmente num interessante almoço, em Nova Iorque, em 1999, ao qual, enquanto membro do governo português de então, acompanhei o presidente Jorge Sampaio e José Ramos Horta, que era amigo de sua mulher. Estávamos num tempo muito complexo da vida de Timor Leste e essa refeição fazia parte de uma estratégia de abordagem da diversificada da administração americana, essencial para alguns aspectos entendidos como vitais para uma solução positiva do problema. Holbrooke era então chefe da missão americana junto das Nações Unidas, função que ocuparia até Janeiro de 2001. Por pouco mais de um mês, não coincidi com ele em funções no "palácio de vidro".

A biografia de Holbrooke está hoje por todos os jornais. O seu papel de grande negociador foi central na sua vida pública e - disse-me quem o conheceu bem - Richard Holbrooke era uma homem de palavra firme, o que lhe garantia uma grande credibilidade nos momento complexos de decisão.  O facto de representar uma grande potência e de se saber adepto de soluções musculadas também deve ter ajudado à eficácia prática de alguns dos seus êxitos. Fica a sensação que Holbrooke esperaria ter uma função nesta administração americana muito superior à que acabou por ter. Isso ter-se-á ficado a dever à escolha de Obama, em detrimento de Hillary Clinton.

Gostaria de destacar um dos seus "feitos", que pode parecer lateral mas que teve uma importância decisiva na facilitação do funcionamento da máquina da ONU: a resolução do diferendo que envolvia as contribuições americanas para a organização, a que ele ajudou a pôr termo, no final de 1999. Com habilidade, utilizou nessa difícil negociação a contribuição dada por Ted Turner, o patrão da CNN, que assim financiou parte da dívida, através de uma milionária doação às Nações Unidas. A convite pessoal de Kofi Annan, tive o prazer de ser um dos dois embaixadores escolhidos para integrar o "board" executivo do "United Nation Fund for International Parnerships", que selecionava os projetos a financiar por esse fundo. Indiretamente, fico a dever a Holbrooke essa magnífica oportunidade.

Finalmente, gostava de mencionar que Holbrooke deixou um livro muito interessante, que vivamente recomendo: "To end a war", sobre a sua experiência na Bósnia-Herzegovina.

Cimeiras

De há muito que penso que a pulsão para a frequente realização de cimeiras a alto nível acaba por banalizar este tipo de encontros e, as mais das vezes, por não estar à altura das expectativas de presenças. 

Há hoje, claramente, uma "summit fatigue" no mundo internacional e os chefes de Estado e de governo evitam, muitas das vezes, deslocar-se a esses eventos, na perceção antecipada que, dos seus resultados, pouco sairá com impacto útil e operativo. E, atendendo à intensidade das agendas nacionais, muitas vezes fazem-se representar.

Dois exemplos recentes.

Na cimeira entre a União Europeia e a África, na Líbia, entre 54 países africanos, apenas estiveram presentes 31 chefes de Estado ou governo. Dos 27 países da União Europeia estiveram, em Tripoli, 13 líderes.

Na cimeira da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, em Astana, entre 56 Estados membros, contaram-se 34 chefes de Estado ou Governo.

segunda-feira, dezembro 13, 2010

Piris

Sempre considerei Jean-Claude Piris um verdadeiro génio da arquitetura jurídica europeia. Desde há décadas que a feitura dos tratados passou muito por ele, como jurista-chefe do Conselho de ministros comunitário. Inventivo, conhecedor ao pormenor do tecido legislativo da União, Piris soube sempre descobrir soluções para ultrapassar dificuldades que pareciam insuperáveis. Todas as presidências da União lhe devem ajudas fundamentais, a que não escaparam as que foram tituladas por Portugal.

Contrariamente a outras figuras do espaço burocrático da União, que afivelam carões para sublinharem a sua suposta importância, testando os limites possíveis da sua arrogância junto dos interlocutores, Jean-Claude Piris é um homem de sorriso franco, com uma grande cordialidade, com que apetece estabelecer relações de confiança e amizade. Como as que com ele tenho, desde que o conheci.

No passado sábado, aqui em Paris, e a pretexto da passagem à reforma de Jean-Claude Piris, que parte agora para os EUA, para escrever e dar aulas na New York University, um grupo dos seus amigos diplomatas aqui residentes reuniu-se com ele num agradável jantar, onde trocámos historietas e revisitámos gentes e acontecimentos que nos foram comuns.

Mas, para mim, um ponto importante desse jantar foi ter recolhido de Piris uma surpreendente e  elaborada avaliação de otimismo sobre o futuro do projeto europeu. Vindo de quem vem, esta opinião é muito importante e, devo confessar, "recarregou-me as baterias" do entusiasmo no processo integrador.

Casa de Portugal

A Casa de Portugal (residência André de Gouveia), na Cité Universitaire de Paris, celebrou ontem o período natalício com um excelente espetáculo musical, com a soprano portuguesa Ana Paula Russo e o guitarrista argentino (mas residente em ortugal há 30 anos) Carlos Gutkin-Prast. Um repertório variado, onde conviveram música portuguesa e espanhola, lado a lado com sons do mundo alusivos à época, com os "encores" a serem preenchidos por espirituais negros.

Está de parabéns a nova diretora, Ana Margarida Paixão, que assim prossegue o excelente trabalho de ligação da Casa à cultura portuguesa que foi levado a cabo pelo seu antecessor, Manuel Rei Vilar.

domingo, dezembro 12, 2010

WikiLeaks

Ao olhar para alguns dos "telegramas" americanos que têm vindo a ser divulgados, sou levado à conclusão que o estilo de sua escrita acaba por ser bem mais "solto" do aquele que marca a grande maioria da cultura diplomática tradicional. Sem perder o "template" daquilo que é a liturgia da profissão, nota-se que essa escrita largou já o "colete de forças" formal, saindo do modelo de textos muito enxutos, quase tecnocráticos, que faz parte de uma certa tradição britânica e que tem o seu auge na "telegrafia" das missões junto das organizações multilaterais. 

Naquilo que o WikiLeaks tem revelado, é visível uma espécie de escrita quase jornalística, que marca, por exemplo, muitos dos retratos de personalidades produzidos pelos diplomatas americanos, o que não deixa facilitar a sua leitura pelos decisores políticos, a quem, em última instância, o resultado desse trabalho se destina. Contrariamente a uma velha escola, felizmente em progressivo desuso, os textos são corridos e sonoramente adjetivados, abandonando o refúgio em bordões e ambiguidades. Não quero elaborar muito sobre isto, mas quem conhece a escrita diplomática tradicional sabe bem aquilo a que me refiro. 

Num outro registo bem diferente, ao ler alguma dessa "telegrafia" americana sou levado a concluir que a diplomacia dos EUA desenvolve hoje um excelente trabalho de pesquisa e análise, muito mais "nuancé" e muito menos maniqueísta do que se poderia, à partida, esperar. Além disso, e não excluindo que algumas surpresas possam ainda surgir, a verdade é que, com escassíssimas exceções, vejo muito clara a linha distintiva entre aquilo a que os meus colegas americanos se dedicam e o trabalho da "intelligence" - esse sim, muitas vezes estereotipado e reduzido a caricaturas funcionais. Devo dizer - porque é verdade - que essa foi uma positiva surpresa para mim.

Finalmente, lidos e relidos muitos comentários na imprensa e na blogosfera sobre o tema do WikiLeaks, julgo que é de meridiana honestidade concluir que muito do "gozo" sobre esta falha séria no secretismo do governo de Washington deriva, essencialmente, da permanência de um sentimento residual de anti-americanismo, aqui e ali adubado pelo "voyeurisme" deslumbrado de quem acha que o mundo se defende com pombas, até ao dia em que na sopa lhe caiam umas bombas. Só o tempo e as más experiências ajudará essa gente a perceber que a diplomacia discreta é, muitas vezes, a melhor forma de evitar a guerra.

sábado, dezembro 11, 2010

Schussel


Ontem à noite, no hall da residência do embaixador austríaco em Paris, dei de frente com o antigo primeiro-ministro desse país, Wolfgang Schussel. Há mais de uma década que nos não víamos. Conversámos, embora de forma breve – eu estava quase de saída, ele ia a entrar -, sobre coisas comuns de “maratonas” europeias em que havíamos participado, por mais de cinco anos.

Wolfgand Schussel é um homem cordial e agradável, sendo embora um negociador firme e determinado.  Uma noite, durante a presidência austríaca da União, era ele ministro dos Negócios Estrangeiros, foi-me difícil preservar interesses portugueses num acordo europeu com a Suíça, que a Áustria teimava em querer fechar, um pouco à nossa custa. Usava então, por regra, um vistoso “papillon”, adereço que largou, vá-se lá saber porquê, quando assumiu a chefia do governo austríaco. E é a propósito dessa ascensão que vou lembrar uma pequena, mas julgo que divertida, história, se bem que ligada a um tempo bastante complexo.

No início do ano de 2000, e após umas eleições legislativas na Áustria, Schussel foi indigitado para formar governo. Decidiu então coligar-se com um partido tido como de extrema-direita, o FPO, dirigido por Jorg Heider. Essa decisão provocou uma celeuma por toda a Europa comunitária, porque, para muitos, funcionava como um perigoso precedente, ao colocar um grupo extremista à mesa democrática da União Europeia. Recordo que esse “branqueamento” preocupava, em particular, os dirigentes franceses e belgas, que viam nisso uma caução à possível subida interna, respetivamente, do Front National e do Vlaams Blok. Mal sabíamos nós, à época, o que estava aí para vir, nos anos seguintes, em matéria de radicalismo conservador em alguns governos europeus…

Portugal tinha acabado de assumir a presidência da União Europeia e, quase imediatamente, fomos chamados a titular a pressão sobre a Áustria, em nome dos restantes “catorze” países, os quais, com “nuances” entre si, não se reviam na opção austríaca. A coligação acabou por concretizar-se, mas o governo de Viena não deixou de ser mantido sob forte pressão dos seus pares. Um dia se contará, com mais pormenor, o que foi esse complexo período e o modo como ele acabou por condicionar todo o arranque da nossa presidência.

A história que agora aqui anoto passa-se em Paris, no palácio do Eliseu, no gabinete do presidente Jacques Chirac, já em Março de 2000, quando a nossa presidência estava a finalizar os preparativos para o Conselho Europeu de Lisboa.

(Por uma mera curiosidade, e para mostrar o que pode ser a “deliciosa” vida negocial europeia, gostava de registar que essa escala em Paris fez parte do seguinte percurso de três dias: na véspera, eu tinha saído de manhã cedo de Dublin, para juntar-me ao nosso primeiro-ministro, António Guterres, na Haia, para uma reunião, à tarde, com o seu homólogo holandês, Wim Kok. Daí, saímos de carro para Bruxelas, para um jantar de trabalho com o primeiro-ministro belga, Guy Verhofstadt. Ainda nessa noite, fomos, de Falcon, dormir a Paris. De manhã, acompanhei António Guterres a um encontro com o presidente Jacques Chirac, onde se passa a cena adiante relatada, e tivemos um almoço oferecido pelo primeiro-ministro Lionel Jospin. A “coabitação” obrigava a esse duplo encontro em França. Depois do repasto de trabalho, zarpámos para Roma, onde reunimos, durante cerca de uma hora, com o chefe do governo, Máximo d’Alema. Logo de seguida, partimos para Madrid, tendo um jantar na Moncloa, com o presidente do governo espanhol, José Maria Aznar. Chegámos a Lisboa, no estado físico que imaginam, cerca da uma hora da manhã. António Guterres, que tem uma imensa resistência, estava “desfeito”, o que não impediu que tivéssemos revisto cuidadosamente, durante os voos, com Maria João Rodrigues e outros acompanhantes, o avanço negocial produzido por cada contacto. À chegada do Falcon ao aeroporto de Figo Maduro, eu disse a Guterres que ainda ia “beber um copo” ao bar “Procópio”: “Você é doido! Não está cansado?”, atirou-me, surpreendido. Respondi-lhe: “Claro que estou, por isso é que preciso de descontrair um pouco…”. E lá fui passar uns minutos pela minha vetusta tertúlia lisboeta.)

Jacques Chirac havia sido dos mais acérrimos defensores do regime de retaliações contra o novo governo austríaco. Desde o fim de Janeiro de 2000, o presidente francês por várias vezes interpelara telefonicamente António Guterres, incentivando-o a radicalizar a atitude dos “quatorze” contra a solução governativa engendrada em Viena. Por isso, apelava a uma grande pressão sobre os austríacos e queria que ela se projetasse em todos os atos públicos em que eles estivessem presentes.

Não nos pareceu, por isso, estranho que, naquela manhã de Março de 2000, nos cadeirões dourados que revestiam a sua sala de visitas do Eliseu, Chirac quisesse saber pormenores do primeiro-ministro português quanto ao modo como este iria gerir a “coreografia” do próximo Conselho Europeu de Lisboa, em especial a inevitável presença do chanceler austríaco Wolfgang Schussel no evento.


António Guterres não desejava, manifestamente, entrar em pormenores, contando, para isso, com a consabida capacidade portuguesa de improviso para salvar as aparências e o acto solene correspondente. Mas Chirac insistia: “António (soava: Antòniô), tu vas pas nous créer l’embarras de nous trouver sur la même photo avec Schussel !?”, como se o primeiro-ministro austríaco não fosse, desde há anos, um dos seus mais antigos companheiros de imagem em todas as cimeiras europeias. Guterres teimava, inteligentemente, em mudar de conversa e derivava para as virtualidades da Estratégia de Lisboa, que pretendíamos ver aprovada no Conselho Europeu. Mas Jacques Chirac teimava e acabou por concluir que, desta vez, não queria a tradicional “foto de família”, que recorda este tipo de reuniões.

Foi então que, a contraciclo com a obstinação presidencial, uma voz surgiu: “Monsieur le Président, il y a une solution très facile: on le met dérrière vous au moment de la photo. Comme ça, il vas sûrement pas aparaître dans l’image”, sugerindo implicitamente a manifesta diferença de altura física entre Chirac e Schussel.

A frase era de um assessor do primeiro-ministro português. Por um momento, a sala bloqueou. Chirac, cara fechada, voltou-se para a zona de onde o comentário surgira e inquiriu, com o olhar, quanto à identidade do respetivo autor. Recordo-me que, nesse curto segundo, olhei para António Guterres, um tanto à procura implícita de instruções sobre como reagir. O primeiro-ministro português deu então uma gargalhada forte e Chirac afivelou um condescendente sorriso, acabando por legitimar a abafada vontade da onda coletiva de riso que se seguiu. O assessor português havia descoberto a fórmula mágica, se não para nos resolver definitivamente o problema, pelo menos para nos vermos livres dele para o resto da reunião com Jacques Chirac.

Para a pequena história, diga-se que as coisas acabariam por correr em Lisboa sem quaisquer sobressaltos, com Jacques Chirac e Wolfgang Schussel a surgirem na mesma fotografia, através de um hábil “truque”, bem lusitano, que consistiu em incluir o presidente mexicano, Ernesto Zedillo, convidado para a abertura da cimeira, a quem Jacques Chirac não faria a "desfeita" da sua ausência. Daí não veio qualquer mal ao mundo... e nem foi necessário aproveitar a sugestão hábil do assessor português.

sexta-feira, dezembro 10, 2010

Deolinda

Há dias em que nos podemos sentir felizes.

Saber que "Dois selos e um carimbo", o segundo disco dos "Deolinda", foi qualificado entre os dez melhores álbuns do ano pelo "Sunday Times", na categoria de "world music and jazz", é uma excelente notícia.

Aqui fica um som desse trabalho.

No reino de Sherwood

Ponderando embora, com indulgência e simpatia, os corporativos argumentos que apresentei sobre o caso WikiLeaks, o meu amigo e deputado europeu Miguel Portas, com a sua compreensível, mas não convincente, vertigem jornalística, considera hoje, no "Sol", que Julian Assange é uma espécie de "Robin dos Bosques", destas novas eras do reino de sombras da informação.

Não tenho a autoridade moral de um frei Tuck ou a autoridade física de Little John para me colocar ao lado de Assange, mas, diga-se, também não sinto o tropismo do sheriff de Nottingham para o meter na cadeia. A menos que as queixas de Lady Marian e das suas amigas, sobre os alegados arroubos agressivos da personagem, tenham algum fundamento.

Françafrique

Foi simplesmente notável o documentário, de que a "France 2" ontem apresentou a primeira parte, dedicado à "Françafrique" - essa relação complexa da França com as suas antigas colónias africanas. 

Desde o final dos anos 50 à atualidade, o elaborado sistema de articulação entre a antiga metrópole e os novos países africanos, com as ligações pessoais e o tecido de dependências económicas, ficou exposto com clareza e frontalidade, apoiado em testemunhos credíveis e insofismáveis. Não é possível compreender a história contemporânea da França sem se conhecer esse magma, determinado por profundas razões de natureza estratégica.

Preso por ter cão...

A agência de notação "Moody's" colocou sob vigilância alguns bancos portugueses. O argumento foi a adoção de "medidas de austeridade por parte do governo e o seu impacto na qualidade dos ativos bancários".

Quererá isto dizer que, se não tivessem sido introduzidas as medidas de austeridade, o "rating" desses bancos se manteria? 

A economia cada vez se parece mais com a astrologia.

Craveiro Lopes (2)

A graça de um blogue está muito para além daquilo que um post acolhe. Às vezes, os comentários acabam por ter uma densidade própria e servir de valioso complemento informativo.

Em Agosto passado, publiquei um post sobre Craveiro Lopes (na foto, com a raínha Isabel II, em Fevereiro de 1957), que foi presidente da República entre 1951 e 1958. Ontem, um seu familiar juntou elementos interessantes, em jeito de comentários. A quem se possa interessar pelo assunto, recomendo uma visita aqui.

quinta-feira, dezembro 09, 2010

Haia ?

Foi há menos de 10 anos, em Sarajevo, a martirizada capital da Bósnia-Herzegovina. Era um jantar a que estava presente, como convidado e amigo do nosso representante diplomático, um membro do governo daquele país.

O equilíbrio político na Bósnia-Herzegovina, um país resultante da fragmentação da antiga Jugoslávia, é muito difícil, dado que, do executivo, fazem obrigatoriamente parte representantes de três diferentes etnias, com um complexo historial de conflito entre si: bósnios, croatas e sérvios. Não quero recordar a qual dos grupos étnicos pertencia o convidado local dessa noite.

O jantar tinha um carater relativamente informal, no jardim da residência. Como não podia deixar de ser, a conversa cedo derivou para a política.

A certa altura, veio-me à memória que, anos antes, numa das minhas visitas a Sarajevo, nos anos 90, tinha conhecido um membro do governo da Bósnia-Herzegovina, pertencente a uma dessas minorias. Era um homem agradável e cordial, com quem eu havia criado uma forte relação de simpatia. Voltaria a encontrá-lo mais tarde, por duas vezes, na Grécia, onde ambos tínhamos ido a convite pessoal de Georgios Papandreou, atual primeiro-ministro, de quem éramos amigos. Perguntei por esse antigo ministro da Bósnia-Herzegovina.

Notei que o nosso convidado ficou um pouco embaraçado, mas respondeu:

- Está na Haia.

Ao meu lado, uma pessoa menos dada a interpretar, com a rapidez da nossa profissão, este tipo de informações, perguntou:

- Como embaixador?

Não sei se fui eu que me adiantei ou se foi o ministro que esclareceu que "estar na Haia" significava estar detido sob ordem do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia, que julga os crimes de guerra e que tem sede na capital dos Países Baixos.

Como dois diplomatas portugueses presentes bem se lembrarão, mudámos logo de conversa... 

Strauss-Kahn

A propósito da crise económico-financeira, o diretor-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn, numa conferência em Genebra, afirmou que "a situação na Europa continua muito preocupante".

Aqui está um exemplo do que pode ser uma boa ajuda do FMI à imagem da economia europeia perante os mercados.

quarta-feira, dezembro 08, 2010

Lennon

Passaram ontem 30 anos sobre a data em que, como algumas vezes aconteceu na História, um louco matou um génio.

John Lennon foi, mais do que Paul McCartney, a grande figura dessa aventura musical sem par que foram "The Beatles". Eu sou dessa geração, já não pertenço à dos "Rolling Stones", que, a meu ver, ficam "anos luz" atrás dos "quatro" de Liverpool.

Porque não sou musicalmente sofisticado, revejo-me muito mais na simplicidade do tempo de "The Beatles" e muito menos no elaborado, embora sempre magnífico, Lennon posterior. Por isso, aqui fica o imortal "A hard day's night", um êxito de 64 da dupla Lennon-McCartney.

Mariza

A genialidade de Mariza foi premiada pela França, com a atribuição à cantora, através do meu colega francês em Lisboa, Pascal Teixeira da Silva, do grau de "Chevalier des arts et des lettres". 

Esta decisão do ministro da Cultura, Frédéric Mitterrand é um gesto que importa sublinhar. A voz de Mariza, bem como o nosso fado, já fazem hoje parte integrante do cruzamento de culturas que enriquece a diversidade francesa.

Para recordar a nova "cavaleira", aqui deixo o seu magnífico "Cavaleiro Monge".

terça-feira, dezembro 07, 2010

"Hard times"

No dia em que a revolucionária ideia do ex-futebolista Éric Cantona, de provocar uma corrida aos bancos franceses, se terá saldado por um  previsível insucesso, o centro cultural da Fundação Gulbenkian em Paris ouviu com atenção a palavra do vice-presidente do Banco Central Europeu, Vitor Constâncio.

Apresentado pelo presidente do BPI, Artur Santos Silva, Constâncio deixou claro que não parece haver espaço para uma reforma profunda do sistema financeiro internacional, atenta a continuidade previsível do dólar como principal moeda de referência. Contudo, o mundo entrou num novo tempo do processo de globalização e assiste-se hoje a uma sensível mudança do equilíbrio de poderes, favorecendo os países emergentes, que parecem fadados a anos de crescimento bem mais sustentado que o das economias dos mundo industrializado. Não obstante, o paradigma essencial do sistema de Bretton Woods não parece suscetível de ser subvertido.

No tocante à Europa, as perspetivas que Vitor Constâncio nos deixou, a médio e longo prrazos, em termos de crescimento económico, de saldo demográfico e de produtividade não foram de moldes a sossegar ninguém na sala, muito embora o conhecido europeísmo do orador procurasse dar uma nota de otimismo, na fase final da sua conferência.

Ao meu lado, o antigo diretor-geral do FMI e ex-presidente do BERD e do Banco de França, Jacques de Larosière, dizia-me, no final, que Constâncio "teve a coragem de ser realista".

Estes vão ser, de facto, "hard times", para utilizar a expressão de Dickens.

Acolhimento

Era uma Embaixada longínqua, não muito grande. O embaixador, acompanhado por toda a família, deslocava-se a Portugal uma única vez por ano, pelo que a sua partida e a sua chegada eram momentos marcantes na vida daquele posto.

Tradicionalmente, toda a embaixada se deslocava ao aeroporto, para se despedir. À chegada, repetia-se o mesmo tipo de presenças. Nessas ocasiões, quase por rotina, o embaixador, ao agradecer a deslocação do pessoal, deixava cair uma frase do género: "Mas para que se estiveram a incomodar?...". Via-se bem, contudo, o agrado com que aceitava o gesto coletivo.

Uma madrugada, o nosso embaixador regressava de Lisboa, depois de mais de um mês de ausência e, cumprindo a tradição, toda a Embaixada o esperava. Toda, não! O Albuquerque, o homem do arquivo, não aparecera, por uma qualquer razão.

O embaixador foi acolhido pelos funcionários, que saudou com simpatia. Como de costume, foi dizendo: "Ora essa! Então os meus amigos tiveram a maçada de vir ao aeroporto? Não deviam..." Um segundo volvido, lançou, para o encarregado de negócios: "O Albuquerque está bem de saúde?"

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Sobre a crise

Algumas vezes, a pontual notoriedade dos embaixadores só emerge por motivos que nós próprios bem dispensaríamos. Mas que, nem por isso, deixam também de ser a razão pela qual estamos em posto e nele nos compete defender a imagem e os interesses do país. É o caso de "prestações" televisivas como a que fiz, há dias, na BFM Business, o canal de televisão económico-financeiro, e, ontem, na LCI, uma espécie de SIC-Notícias francesa.

Como não podia deixar de ser, foi a difícil posição portuguesa no quadro da crise internacional que esteve no centro dessas duas aparições. No somátório de ambas, tive oportunidade de reiterar:

- a intenção do governo português de não recorrer aos mecanismos europeus de ajuda financeira;
- o carácter muito rigoroso das medidas orçamentais recentemente aprovadas;
- o facto dessa aprovação ter sido feita depois de um acordo que envolveu as duas principais forças políticas do país;
- o facto de, entre 2005 e 2007, já termos feito uma contração do nosso déficite de 5,9% para 2,8%, isto é, mais de 3% - a comparar com os 2% que nos propomos fazer entre 2010 e 2011;
- a realização atempada de uma profunda reforma no nosso sistema de segurança social, que lhe assegura condições de sustentação no tempo;
- a circunstância do nosso défice face ao PIB, da nossa dívida face ao PNB e da nossa taxa de desemprego não terem divergências dramáticas das médias europeias e, em especial, das de outros países que ainda aparecem poupados pelo nervosismo dos mercados;
- o anúncio de um ambicioso plano de privatizações entre 2011 e 2013, com impacto importante sobre a redução da dívida e, por consequência, sobre o peso do serviço da dívida no défice;
- o não sofrermos das "doenças" financeiras (estatísticas pouco fiáveis ou disfarçadas, "bolha imobiliária", crise bancária) que afetam outros países que também sofrem dificuldades de financiamento.
- os sinais positivos da nossa balança comercial recente.

Em ambas as entrevistas, foi-me colocada a questão, bem francesa, sobre se as medidas de austeridade aprovadas podem vir a gerar desregulações sociais difíceis de controlar. Embora sem poder prever o futuro, e não deixando de reconhecer que o desemprego e as dificuldades económicas conduzirão naturalmente a algumas situações de tensão social, fui de opinião que a experiência histórica portuguesa não aponta no sentido de convulsões com impactos políticos diretos.

Uma coisa tenho deixado claro: não alimentamos teorias conspirativas e entendemos que os mercados se movem pela raiz natural da sua lógica - o lucro, seja a que preço for. Teríamos gostado, no entanto, de ver a atitude desses mercados - e das agências de "rating" que, frequentemente, os antecipam - basear as suas avaliações em números e em factos, não em perceções algo impressionistas. Mas, provavelmente, isso seria querer demais.

domingo, dezembro 05, 2010

Carta de Paris

1.
Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia,

tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo

campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas; apenas em delírio vejo

Anaïs de capa negra bebendo como Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean Paul nos Elysées, Gene dançando à meia luz com Leslie fazendo de francesa, e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio da manhã e pensa na Força de trabalho que desperta,

na fuga da gaiola, na sede no deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada,

talvez bichos que falam, ou exilados com sede que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés

o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio.

2.
Paris muda! mas minha melancolia não se move. Beaubourg, Forum des Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa como pedra.

Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno, que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você,

minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem do disk jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e desperta teus sonhos de noiva protegida, e penso em você,

amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trêmulas dos trópicos, o fim dos sonhos deste exílio, as aves que aqui gorjeiam, e penso enfim, do nevoeiro,

em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste parque

onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda!

(Poema de Ana Cristina César (1952-1983), poeta brasileira)

sábado, dezembro 04, 2010

Debré

O nome Debré está fortemente associado à memória do gaullismo. Michel Debré foi primeiro-ministro do general e é considerado o "pai" da constituição da V República, que ainda hoje rege a vida política francesa.

Jean-Louis Debré, o actual presidente do Conselho Constitucional, é filho de Michel Debré e foi ministro do Interior do presidente Jacques Chirac, de quem é considerado uma das personalidades mais próximas. Do seu currículo consta igualmente a importante presidência da Assembleia nacional francesa.

Anteontem, num programa de rádio (e agora também de televisão) que, por vezes, raia o "politicamente incorreto" - o histórico "Grosses têtes", de Philippe Bouvard, de que já aqui falei - Debré foi entrevistado. Aí demonstrou como é possível conciliar a presença num lugar de responsabilidade institucional com o culto de um humor saudável, com uma liberdade de espírito de quem está de bem com a vida. Durante hora e meia, foi sujeito ao escrutínio irónico de grandes profissionais da "blague" e saiu-se desse exercício com garbo e "panache".

Além de outros livros, Jean-Louis Debré "ousa" ser escritor de romances policiais e possui uma graça refinada. Independentemente das ideias políticas que professam, confesso que me agrada ver as figuras políticas mostrarem-se capazes de sair para o mundo exterior e aproveitarem o melhor desse mesmo mundo.

Amaro da Costa

Adelino Amaro da Costa morreu há precisamente 30 anos, em 4 de dezembro de 1980, na queda do mesmo avião que vitimou o então primeiro ministro, Francisco Sá Carneiro.

Era ministro da Defesa do governo da Aliança Democrática e era considerado uma das mais brilhantes figuras da sua geração política. "Número dois" do Centro Democrático Social (CDS), era tido como o grande estratega da área conservadora portuguesa de então.

Foi agora publicada uma sua biografia, assinada pela sua irmã, Maria do Rosário Carneiro, e pela jornalista Célia Pedroso. Nela são acolhidos depoimentos de pessoas que privaram com Amaro da Costa, que o acompanharam desde os seus tempos de especialista em matéria de educação e de militante de grupos católicos até à sua ascensão ao poder político, passando pela difícil aventura que foi a implantação do CDS, no período posterior ao 25 de abril.

Não é uma biografia com a riqueza da que desenhou o percurso, pessoal e político, de Sá Carneiro, de que já falei aqui. Mas é um livro interessante - e até complementar do anterior - que ganha em ser lido no cruzamento com alguns outros testemunhos da época.

Na tese de quantos acham que o desastre de Camarate foi um atentado e não um acidente há uma quase certeza: o alvo seria Adelino Amaro da Costa e não Sá Carneiro, que apenas tomou a decisão de viajar no fatal avião muito pouco tempo antes. De acordo com essa leitura, o ministro da Defesa poderia estar a tocar em matérias sensíveis - desde a venda de armas a recursos financeiros confidenciais - que poderiam pôr em causa alguns importantes interesses. Será isso verdade? O livro fala do tema, mas não nos traz dados novos sobre o tema.

Pena é que a imagem de Portugal tenha ficado manchada pelo facto de nunca se ter conseguido provar, de forma incontroversa, as razões da morte de dois dos mais proeminentes políticos dessa época, bem como de seus familiares e outras pessoas. Entre os quais, aproveito para notá-lo, uma pessoa por quem tinha grande estima, António Patrício Gouveia.

Tarde do dia de Consoada