Sabe-se hoje que o MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado), que o país político conheceu bem, nos anos que imediatamente antecederam e sucederam ao 25 de abril de 1974, nasceu em 18 de setembro de 1970. Embora a sua existência efetiva, nos dias que correm, seja pouco mais do que teórica, emergindo apenas nos períodos eleitorais, diz-se que com vista a recolher a significativa subvenção pública anual a que vai tendo direito, a verdade é que, historicamente, o MRPP pode gabar-se de ser o segundo mais antigo partido político português, depois do PCP.
Há horas, ao olhar a escada do Instituto Superior Técnico, na noite da Alameda Afonso Henriques, lembrei-me do MRPP. Em meados de dezembro de 1970, já bem dentro da madrugada, eu saía sozinho de uma reunião do associativismo universitário que tinha tido lugar na Associação dos Estudantes do Técnico, onde tinha estado a representar o ISCSPU (isso mesmo, com um “U”). Já não sei bem a razão pela qual as coisas se tinham prolongado, mas os debates inter-associações (chamados de RIA), tinham, por vezes, “serões” inesperados.
Tenho ideia de ter passado um portão lateral e de ter deparado com o que me pareceu ser uma resma de papel, arrumada junto à grade. Não era, eram vários exemplares de umas páginas de papel policopiado, de tamanho mais comprido do que era normal, agrafadas, com uma letra de máquina de escrever muito pequena, diferente do que era vulgar. O documento tinha um título: “Bandeira Vermelha”, identificando-se como “órgão teórico“ do MRPP. E indicava ser o nº 1. Tinha sido colocado naquele local claramente com o objetivo de ser apanhado, à saída, pelos representantes associativos que se sabia estarem ali reunidos.
Eu era então um curioso por todo o tipo de papelada clandestina, pelo que logo guardei, na minha velha pasta preta, três ou quatro exemplares. Confesso não me recordar se, à época, tinha já alguma vez ouvido falar no MRPP, embora um ano e tal antes, numa reunião oposicionista no Palácio Fronteira, anterior às primeiras “eleições” para a Assembleia Nacional organizadas por Marcelo Caetano, eu tivesse sido testemunha pública de um dissídio político que, como veio a provar-se, iria dar origem à criação da EDE (Esquerda Democrática Estudantil), que desembocaria no MRPP.
Desci as escadas, preparando-me para seguir Alameda abaixo, até à Almirante Reis, onde apanharia um autocarro para os Olivais, onde então vivia. Nesse tempo, na madrugada lisboeta, era vulgar conseguir viajar em autocarros que recolhiam a Cabo Ruivo, já de madrugada. Eram abertos atrás e os condutores, quase nem paravam, só abrandavam ao nosso aceno, por forma a que segurássemos o varão e apanhássemos boleia, sem necessidade de bilhete.
Foi então que vi dois carros, estacionados naquele deserto da noite, um de cada lado do Técnico, fazerem sinais de faróis, um para o outro. Era a polícia (ou a Legião, ou a Pide), pela certa (por essa época, a noite dessa área ainda não tinha o “colorido” que mais tarde a ilustraria...) E ali estava eu, com alguns exemplares de literatura clandestina na pasta, sozinho, indefeso. Lembro-me do relativo pânico em que entrei. Se me mandassem parar e me revistassem iam encontrar não um mas vários exemplares de um documento revolucionário que eu, por estúpido e incívico “açambarcamento”, decidira trazer para dar a amigos. E que nem sequer lera!
Tentei descer as escadas aparentando a maior calma do mundo, para não dar um ar acossado. Se fumasse, teria mesmo parado para acender um cigarro. Não sei se fiz a coreografia de apertar cordões nos sapatos. Mas devo ter assobiado, para espantar o medo e o frio que me corria pela espinha, a rimar com alguma taquicardia conjuntural. Desci “com calma” a Alameda, olhando frequentemente para trás, de soslaio. Lá chegado, cosi-me às paredes enquanto não surgiu um autocarro. E, finalmente, lá cheguei a casa, aliviado, no fim de uma “não história” em que, vendo bem as coisas, ninguém me perseguiu, talvez nem sequer tivesse estado em perigo e aqueles carros, afinal, não fossem da polícia e eu tivesse apenas andado por ali a atrapalhar um qualquer arranjo romântico. Ou não.
Mas tudo para dizer, lembrado pelas escadas do Técnico por onde há pouco passei, que, ainda hoje, sou proprietário de um velho exemplar desse histórico “Bandeira Vermelha” nº 1, que um alfarrabista, já há anos, me disse valer “bem para cima de cem euros”. Ou mais.