terça-feira, agosto 27, 2024

Saudades do frei Bernardo



Ontem passei na zona do Cristo-Rei, no Porto, e lembrei-me que, durante alguns anos, quando ia por ali, não deixava de lhe fazer uma breve visita. Chamava-se Bernardo Domingues. Era frade dominicano. 

Um dia, vivia eu em Paris, recebi um telefonema do Porto. Era uma das mais ilustres personalidades da cidade, por coincidência a mesma com quem, também ontem, por ali almocei. 

Era-me feito um pedido. Frei Bernardo Domingues, um religioso muito querido por imensa gente no Porto, tinha um gravíssimo problema de saúde. A delicadeza do caso e a avançada idade do doente levavam a que, em Portugal, hesitassem em operá-lo, pelo que se pensava que a solução seria fazê-lo no estrangeiro. 

O frade, que tinha feito voto de pobreza, não tinha bens materiais. Um grupo de pessoas tinha-se quotizado e juntado fundos suficiente para que ele pudesse vir ser tratado noutro país. Ora, segundo o meu interlocutor, havia em Paris um eminente cirurgião mundialmente reconhecido como especialista naquele tipo de intervenção. O recurso a esse médico seria talvez a hipótese de salvar a vida ao frade. Poderia eu tentar um contacto? 

Prontifiquei-me, naturalmente, a intervir, da maneira que pudesse. Solicitei o nome do cirurgião. Quando mo disseram, tive um sobressalto bom: esse médico, que era aliás presidente da Associação Francesa de Cirurgiões, tinha estado a jantar na residência da embaixada, a meu convite, 48 horas antes! Eu tinha organizado esse jantar para acolher, com outros convidados, o cirurgião português Eduardo Barroso, que recebera em Paris um prestigiante prémio, atribuído pelos seus pares franceses. E, de entre todos esses seus colegas presentes, o mais ilustre era, nem mais nem menos, o tal destacado especialista. Há dias de sorte! 

"To make a long story short": fiz o contacto, o frade deslocou-se a Paris por mais de uma vez, foi operado com imenso sucesso e, a partir daí, ficámos amigos. Frei Bernardo Domingues já morreu, entretanto, mas viveu ainda bastantes anos, durante os quais o visitámos, com alguma frequência, na igreja do Cristo-Rei. 

As nossas conversas, que me recorde, nunca derivavam para a temática religiosa, terreno que me é em absoluto alheio e onde ele sabia que eu não estaria à vontade. O frei Bernardo era, contudo, um "sábio" da vida, das relações humanas, tendo sobre isso escrito vários livros. Era delicioso ouvi-lo relatar o saldo dos muitos contactos que tinha tido ao longo da vida, com pessoas dos mais diferentes meios. 

Um dos seus grandes amigos tinha sido Francisco Sá Carneiro, de quem fora confessor, tal como o fora da primeira mulher do político. Contou-me que assistiu, com tristeza, ao modo como ocorreu o processo de separação de Sá Carneiro, esclarecendo, contudo, não ter intervindo na formulação da vontade das pessoas envolvidas. Um dia, Sá Carneiro levou-o a Lisboa, para conhecer Snu Abecassis. Foram os três almoçar ao "Gambrinus". Frei Bernardo contava, divertido, que aquele luxo gastronómico o fazia rir interiormente, ao compará-lo com a frugalidade espartana da sua vida religiosa. A certo ponto do almoço, numa ausência momentânea de Snu, frei Bernardo voltou-se para Sá Carneiro e, brincando, provocou-o: "Francisco, trouxeste-me aqui para eu abençoar o pecado?" 

Na passada semana, numa aldeia junto a Terras de Bouro, passei perto da casa onde o frei Bernardo nasceu, tal como o seu irmão frei Bento Domingues, de quem era evidente que divergia em certas perspetivas políticas. Fez-me bastante bem tê-lo conhecido e ter falado longamente com ele, com abertura e num ambiente sempre marcado pela serenidade e pela compreensão. Tenho saudades do meu amigo frei Bernardo.

7 comentários:

Às margens de mim. disse...

Recordar é viver. Parabéns por tão importante relato!

Luís Lavoura disse...

Um post muito bonito.

manuel campos disse...

Obrigado.

Flor disse...

Belo texto.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Viva a amizade, sempre!

Tony disse...

Sr. Embaixador. Este seu texto, comoveu-me, no meu intimo. Sei, e tem referido, que não é crente. Mas o Céu, a existir, será para pessoas, como o Senhor Embaixador.

Anónimo disse...

Quando leio textos como este, e alguns outros que tem vindo a partilhar nestes últimos dias, penso que é imprescindível um segundo volume de « Antes que me esqueça », onde poderia também incluir alguns textos mais antigos e que ficaram de fora do primeiro volume.

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