quinta-feira, agosto 29, 2024

Avós, bifes e memórias


É curioso que, quando me refiro ao meu avô, penso sempre e apenas no pai da minha mãe. 

O pai do meu pai morreu, em Viana do Castelo, 23 anos antes de eu ter nascido e só o visualizo em algumas fotografias do tempo da República, sempre com um fácies grave e um arrebicado bigode. Era maçon e tinha andado de armas na mão a defender a bandeira verde-rubra contra os "trauliteiros", na tentativa de implantação da "monarquia do Norte". Tenho, portanto, desse lado jacobino da família, alguém a quem sair, salvo no "avental" que nunca usei.

Já o meu avô materno, com o qual, com os meus pais, tive o fantástico privilégio de viver até aos meus 13 anos, era conservador, na atitude cívica e na opção profissional: foi, por muitos anos, conservador do Registo Predial, em Vila Real, depois de ter abandonado a magistratura, porque detestava ter de itinerar pelo país como juíz, optando por permanecer junto da família. Tinha nascido perto das Pedras Salgadas, em Bornes de Aguiar, sendo por lá proprietário da bela Casa do Pereiro, que felizmente continua na nossa família, onde se refugiava sempre que podia.

Não tendo carro próprio, o meu avô viajava bastante na linha ferroviária do Corgo, que ia da Régua a Chaves. Nela fazia, com alguma frequência, o percurso entre as Pedras Salgadas e Vila Real, num ronceiro comboio a vapor que julgo demorava muito mais de uma hora para percorrer o que, por estrada, não chega a 40 km. Essa linha acabou já há bastantes anos.

Creio que por uma boa dúzia de vezes, comigo nos anos de escola primária, o meu avô levou-me com ele a passar uns dias a Bornes e, recordado que estou do modo carinhoso como sempre tratou este seu neto, imagino o muito que me terá procurado ensinar sobre as terras por onde passávamos e as histórias que me terá então contado. Com pena, confesso lembrar-me muito pouco dessas conversas na infância. Contudo, recordo-me bem das viagens e de que, em alguns apeadeiros, se podia sair para colher fruta ou beber água nas fontes, sem o risco de perder o comboio, que arrancava com uma imensa lentidão.

Por que razão falo hoje aqui deste meu avô? Por causa de uma carne que comi ao jantar. 

(Este tipo é obsessivo com a comida!, devem estar a pensar alguns leitores).

Nas duas casas onde vivi uma infância muito feliz com os meus pais e e os meus avós maternos, tenho das refeições uma memória de serem momentos sempre agradáveis. O meu avô era uma pessoa alegre e conversadora, tinha uma magnífica relação com o genro que era o meu pai e o ambiente, a que muitas vezes outros familiares se juntavam, refletia o modo saudável como as pessoas por ali se entendiam. Não me recordo, em todos esses anos, de ter assistido, naquela família, a uma réstea de discussão. Mas admito que eu possa ter sido poupado a algum momento menos sereno.

A minha mãe contava algumas vezes que o meu avô, que tal como eu se chamava Francisco, um dia, à mesa da refeição, se voltou para mim e disse: "Lembras-te daquela vez em que eu e tu vínhamos das Pedras e, logo depois de Vila Pouca, entre Tourencinho e Zimão, te mostrei uma vitelinha que andava por ali a pastar?" Eu terei dito que me lembrava, com ele a complementar: "Essa vitelinha, se a tivessem matado mais cedo, tinha dado uma carne magnífica. Mas não, deixaram-na crescer, chegou a vaca e devem ser dela estes bifes muito duros que agora a tua avó nos dá para comer". A minha mãe disse que toda a gente caiu em gargalhadas, com a minha avó Olívia a prometer deixar uma palavra de queixa ao Lourenço do talho.

Há algumas horas, num restaurante aqui por Vila Real, reconheci, numa peça de cachena que me serviram, e que foi quase toda para dentro, uma parente distante da tal vaca que nunca devia ter passado da vitela que eu esperava ter podido comer. E, também por isso, lembrei-me do meu avô Francisco.

12 comentários:

LF disse...

Senhor Embaixador.
Acompanho o seu blog há já muito tempo.
Embora não concorde com algumas das suas posições políticas, devo confessar-lhe que é sempre com imenso gosto que leio as suas histórias e recordações, escritas num português magnífico, com alguns laivos queirozianos. E para mim, este é um dos maiores elogios que se pode fazer à escrita de alguém. Tenho, aliás, aprendido bastante com muito daquilo que escreve.
Este “post” de hoje, no qual confessa a sua falta de memória relativamente à convivência com o seu Avô, obriga-me, porém, a que lhe faça uma pergunta indiscreta. Espero que me perdoe a impertinência.
Como é que consegue descrever com tanta minúcia episódios da sua já longa Vida, alguns ocorridos à décadas e, por vezes, usando mesmo o discurso directo? É apenas a sua memória que o ajuda? Tem tomado apontamentos ao longo do tempo? Ou será que
a imaginação desempenha algum papel na matéria? “…O manto diáfano da fantasia…”
Sans rancune!
Um seu seguidor atento



Luís Lavoura disse...

O pai do meu pai morreu 23 anos antes de eu ter nascido e só o visualizo em algumas fotografias

Mais ou menos o mesmo é verdade do pai da minha mãe, que morreu 13 anos antes de eu ter nascido, quando a minha mãe era ainda adolescente, e do qual nunca vi nenhuma fotografia.
Sei somente o seu nome, e que foi um dos primeiros muito ricos "cavalheiros da indústria" do Norte.

Luís Lavoura disse...

É como os eucaliptos. Quando jovens têm uma madeira suave e fraca, que só serve para fazer pasta de papel e para mais nada é boa. Porém, se os deixam envelhecer, lá para os 100 anos de idade já têm uma excelente madeira, dura, que pode bem servir para edificar casas.

Francisco Seixas da Costa disse...

A LF. A resposta à pergunta é muito simples. Desde logo, não tenho o mais leve apontamento, notas ou coisas assim. Tudo o que escrevo é de memória, daquilo em que participei ou a que assisti, do que ouvi conta. No que toca ao discurso direto, imagino que, para expressar o que disse ou que alguém me disse eu possa frequentemente oralizar essa mensagem. No caso específico da frase do meu avô, que cito em discurso direto, ela era lembrada frequentemente pela minha mãe e todos, na família, a ouvimos várias vezes. Eu não escrevo ficção, tudo o que relato é, ou tenta ser, baseado em factos ou acontecimentos reais.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Haverá melhores pergaminhos familiares do que a afetividade da boa?
Claro que não!

Já os bifinhos que o meu avô comprava no seu Talho de sempre, nunca falhavam.

Ainda a propósito, estou a tratar das primeiras sardinhas deste ano aqui na brasa.

josé ricardo disse...

Desta vez os "seus" restaurante de Vila Real, não o trataram muito bem.
Infelizmente, para comer boa "chicha" tenho de ir para outras bandas.

disse...

Tem andado a escrever mais ultimamente. Obrigado. Gostamos dos seus posts longos :)

Luís Lavoura disse...

josé ricardo

para comer boa "chicha" tenho de ir para outras bandas

Há poucos dias almocei no restaurante 15, no centro de Leiria, uns medalhões de lombo de porco que estavam espetaculares, extremamente suaves e bons de comer.

Flor disse...

Adorei.

manuel campos disse...

Interessante a questão posta por “LF” e interessante a sua resposta.
Mas se o são é também porque nos levam à “crónica”, a forma mais interessante de literatura, precisamente porque baseada em vidas vividas, na realidade e não na ficção.
E a realidade ultrapassa sempre a ficção, Mark Twain já dizia que a ficção tem de ser credível e a realidade já o é.
Olho com desconfiança uma situação que nos é muitas vezes apontada como essencial para ver determinados filmes, a de que são baseados “em factos reais”.
Em última análise quase todos o podem ser, aquilo aconteceu ou podia ter acontecido a alguém, não é por aí que me deixo levar.
Mas mais do que esta razão talvez demasiado simplista para alguns, recordo que um estudo sobre o cinema americano, no qual foram analisados vários filmes nestas circunstâncias, levou à conclusão que “os factos reais” eram sempre uma pequena parte da história contada, como não podia deixar de ser.
Não se faz um filme sem meter nele da forma mais competente possível todos aqueles ingredientes que vendem bilhetes e esses, é bom de imaginar, não estiveram quase de certeza nos amores ou nos desamores dos heróis da história.
Como já tenho dito, gosto imenso de histórias de vida e de histórias do dia-a-dia.
E estas que por aqui nos traz são muito bem escritas, muito terra-a-terra como a própria vida o é por natureza, quem aqui vem com frequência sabe que não estou a dar graxa nenhuma pois eu também gosto mais de as escrever do que mandar palpites sobre assuntos que na maior parte das vezes se conhecem mal, quando não se desconhecem de todo, nisso estou totalmente consigo e com o “josé ricardo” noutro post seu que vem mesmo a propósito.

Aqui há uns 15 anos frequentei durante algum tempo uma espécie de blogue privado (do tipo “traz outro amigo também”), onde as pessoas me pediam histórias do dia-a-dia, isto quando andávamos todos ali pelos 60 aos 65 anos, muitos não as viviam ou, vivendo-as, não as sabiam contar mas gostavam de as conhecer, uma das grandes razões para isso é confirmarmos que afinal as nossas vivências têm muito mais em comum do que alguns julgavam.
Mais dinheiro ou menos dinheiro, mais saúde ou menos saúde, é muito mais o que nos une na nossa existência do que à primeira vista pode parecer.
A certa altura surgiram algumas situações patetas (não há outro termo) e o blogue foi esmorecendo até desaparecer, as relações humanas “à distância” quando dão para o torto já nunca se endireitam.

Com a idade é habitual as pessoas lembrarem-se melhor de eventos de quando eram novos do que onde foram passear anteontem (uma “imagem”,claro).
Não conheci nenhuma avó nem nenhum avô, talvez por isso ter sido avô cedo foi bom, ver os netos com a sua vida própria agora é um alívio, por esse lado posso morrer amanhã.
Mas há algo de que não digo que tenho inveja, não é bem o caso, é de não ter memórias de infância nenhumas, zero absoluto.
Quando tinha aí uns 14/15 anos tive aqui um problema qualquer ligado à “atenção voluntária” segundo os médicos.
Não sei se foi ou não, aquilo resolveu-se em 6 meses e no ano seguinte fiz uma secção do 5º ano e o 6º ano do liceu ao mesmo tempo, não cheguei a perder o ano (o nosso amigo Sousa Rodrigues sabe mais disto que eu).
O que sei é que a memória anterior a essa época apagou-se toda, “delete” total, conversas com os meus irmãos (todos mais novos) são surrealistas quando eles se põem com o “mas tu não te lembras mesmo?”.
Talvez por ter feito esse “delete” limpei memória porque, segundo as más línguas, sempre tive e ainda tenho uma boa memória, ao ponto de aqui há uns anos ainda me telefonarem da última empresa onde estive a perguntar onde estaria arquivado o assunto A ou o assunto B (até eu me fartar ao fim de uns 3 anos e começar a deitar “bolas fora” com uns “onde isso já vai!”).

PS- Meu caro Francisco Sousa Rodrigues, isso é sabedoria, as melhores sardinhas são as de Setembro, haveria que mudar as festas populares de trimestre.

Tony disse...

Mais um belo apontamento, da sua magnifica vida de infância. Venho aqui, sempre com prazer imenso, enriquecedor, pleno e fecundo. Sr. Embaixador. Vá juntando, a fim de nova Edição (Tomo 2). Manifesto-lhe a concordância e quase tudo o que aqui me trás, incluindo, já agora, sem equívocos, as posições políticas.

josé ricardo disse...

Obrigado pela fica, Luís Lavoura.

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