quarta-feira, abril 24, 2024

O meu dia 24 de abril


Saí de manhã de casa, em Santo António dos Cavaleiros, onde vivia, desde que casara, quatro meses antes. 

No meu carro, entrei na Escola Prática de Administração Militar (EPAM), na Alameda das Linhas de Torres, em Lisboa. 

Às nove horas, iniciei a primeira aula de "Ação Psicológica", ao meus instruendos. Era aquela a minha tropa.

Cerca de um ano antes, iniciara a recruta, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra. No termo desses três meses, foi com surpresa que constatei ter sido um dos nove soldados-cadetes escolhidos, entre os 900 colegas dessa incorporação, para integrar a especialidade de "Ação Psicológica", que era ministrada na EPAM.

Ao fim de mais três meses nessa especialidade, tive a sorte ou o engenho de sair como primeiro classificado do curso. O meu destino não ia assim ser África. Melhor, como prémio, iria ficar em Lisboa, como coordenador e instrutor do curso. 

Pelo meio-dia de 24 da abril de 1974, recolhi à biblioteca. Além de "oficial de Ação Psicológica" e coordenador do curso de formação de oficiais milicianos nessa especialidade era também bibliotecário e diretor do jornal da unidade, "O Intendente".

O António Reis bateu à porta. O António, miliciano como nós, mais tarde um consagrado historiador e professor universitário, era o nosso contacto com os oficiais do quadro, na clandestina articulação que, desde há meses, íamos mantendo com o setor profissional militar.

Conhecíamo-nos desde 1969, ao tempo da articulação da oposição democrática para o ato eleitoral desse ano. Ele tinha tido um papel destacado, como candidato oposicionista por Santarém, eu trabalhara ativamente na Comissão Democrática Eleitoral de Vila Real. Nessas últimas semanas, encontrávamo-nos regularmente na "Seara Nova", a revista oposicionista que, à época, acolhia várias correntes políticas.

Para espanto de muitos e do próprio, António Reis havia sido escolhido, meses antes, para a especialidade de Ação Psicológica, a tal que eu coordenava. A máquina das informações militares, na sua articulação com a PIDE (ninguém dizia DGS), tinha óbvias lacunas. Só há poucas semanas, o Exército mandara "reclassificá-lo", devendo regressar a Mafra, onde o esperava um destino como Atirador de Infantaria. Por esses dias, tentávamos atrasar os efeitos dessa transferência.

Notei que o António vinha com ar grave. Pediu-me para reunir o pequeno grupo de oficiais milicianos que estavam no segredo das movimentações. Não éramos muitos: além dele e de mim, eram o Alves Martins, o Otto e o Carneiro. Nenhum dos outros colegas nos merecia suficiente confiança para os envolvermos na conspiração. O António informou-nos que o golpe militar, de que há semanas falávamos, estava finalmente previsto para essa noite.

Ficámos tensos, confrontados com o peso da informação recebida. Aos pedidos de detalhes que colocámos, no tocante ao âmbito da nossa ação, adiantou explicações vagas. Ele próprio não tinha muitos mais pormenores. Sabia apenas que a unidade se iria sublevar às primeiras horas da madrugada. Não valia a pena nós estarmos presentes na unidade a essas horas, porque isso poderia ser considerado suspeito. Ficou assente que entraríamos no portão da EPAM às 7:30 da manhã, como veio a acontecer.

Ao final do dia, quando saí da unidade, não tive dúvida de partilhar a informação com o meu pai, que, vindo de Vila Real, estava de visita a Lisboa. Democrata dos sete-costados, alimentava, contudo, uma desconfiança persistente sobre a capacidade dos militares para derrubarem o regime que ele sempre detestara.

Jantei com os meus pais e com um tio. Foi uma ocasião estranha: se a operação militar que iria decorrer, horas depois, tivesse sucesso, o futuro desse meu tio - um imenso amigo de todos nós, a começar por mim - iria sofrer uma grande mudança. Ele era deputado, por Vila Real, à Assembleia Nacional...

À mesa, apenas eu, o meu pai e a minha mulher estávamos a par do que iria ocorrer, pelo que a conversa, para nós os três, não deixou de ter sempre isso como pano de fundo.

Acabado o jantar, deixei os meus pais na Feira das Indústrias, à Junqueira, onde havia uma exposição de antiguidades. À saída, ao deparar com o Rolls-Royce que transportara o presidente da República para a inauguração do evento, o meu pai disse à minha mãe uma frase enigmática, que ela lembraria até ao fim da vida: "Se uma coisa que o nosso filho me disse vier, de facto, a acontecer, amanhã o Américo Tomaz já não volta a entrar neste carro".

Nenhum de nós teve então a presciência de intuir que esse amanhã iria passar a ser conhecido como "o 25 de Abril".

6 comentários:

Unknown disse...

Nunca mais vi esse senhor, António Reis, que me parecia bem afável.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Quase consigo sentir o entusiasmo apreensivo que terá dominado essas horas últimas da longa noite do "Estado Decrépito".

Flor disse...

Boas memórias. Belíssimo texto. Viva o 25 de Abril.

Carlos Antunes disse...

Senhor Embaixador
Uma bela história de vida com a recordação de episódios que protagonizou nesse grande momento do 25 de Abril de 1974.
25 de Abril SEMPRE!

Anónimo disse...

Boa recordação. Esse dia e o 1º de maio de 1974 foram dias inesqueciveis!
O povo excedeu-se na festa. mas 50 anos passados. os ratos ainda andam por aí...

arber disse...

Viva o
25 de Abril, sempre!

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Chegou-me há dias um documento, assinado por algumas personagens de países do Leste da Europa em que, entre outras coisas, se defende isto: ...