quarta-feira, julho 06, 2022

Um prédio na memória


Fui esta manhã ao edifício que a imagem mostra, por motivo de trabalho. Ainda é, no estilo, um belo prédio, hoje ocupado pelo Ministério da Defesa. Foi construído para alojar o Ministério do Ultramar. Em 1974, passou a ser o Ministério da Coordenação Interterritorial. Foi também sede do efémero Ministério da Cooperação e veio a alojar o Conselho da Revolução, antes de passar a ser, nas últimas décadas, a “casa“ da Defesa.

Ao percorrer aqueles corredores forrados a madeira, tive a contida tentação de tirar uma fotografia ao cenário interior. É que trabalhei por ali, em 1975 e 1976, no então Gabinete Coordenador para a Cooperação, gerado na Comissão Nacional de Descolonização, da Presidência da República. O meu simpático gabinete tinha um imenso quadro de Malangatana. 

Mas a historieta que aqui trago é outra.

A alguns que andaram no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, no final dos anos 60 e na primeira metade dos anos 70, não são estranhos os episódios que, por essa época, me opuseram ao diretor da Escola, que veio a suceder a Adriano Moreira, após Hermano Saraiva, sob ordem de Marcelo Caetano, ter inventado um pretexto para afastar do cargo o incómodo antigo ministro do Ultramar. 

Quem era o cavalheiro? Não interessa, foi uma pessoa, “de cuyo nombre no quiero acordarme”, como escreveu Cervantes para um certo lugar da Mancha, no início de “El Quijote”. E que peço que ninguém refira o seu nome nos comentários, para não poluir este espaço.

Tratou-se de uma meticulosa perseguição pessoal. Começou por cinco “chumbos” consecutivos na prova escrita da disciplina de que aquele professor também era titular, precisamente a última que me faltava para acabar o curso, onde eu nunca tinha falhado um único exame. Abespinhou-se por eu ter contestado, cara a cara, a primeira reprovação. Somou-se a isso um processo por “indisciplina académica”, com a interdição prática da minha entrada nas instalações, por três anos. Culminou com informações escritas ao Ministério da Educação sobre o meu caráter de “agitador contumaz” (como citações de frases minhas, em intervenções públicas) que conduziram ao impedimento da minha tomada de posse como dirigente eleito dos estudantes. 

A minha vida mudou. Concorri a um banco, passei a aluno ”voluntário”, sem poder assistir a aulas, fazendo apenas as “frequências” e os exames finais, estes sempre com idêntico resultado. E, dois anos mais tarde, fui para a “tropa”, onde o 25 de Abril estava à minha espera.

Mesmo no quadro da ditadura, a situação dos meus “chumbos” consecutivos (época normal, época de outubro, época especial de janeiro, para última cadeira em falta), sendo “aluno de 14”, foi considerada tão estranha que o Ministério da Educação mandou instaurar um inquérito. O mesmo foi enviado, para lhe ser dada a devida sequência, ao diretor da faculdade, que era, nada mais nada menos … o próprio professor! Engavetou o assunto, sem lhe dar o menor seguimento, até ao 25 de Abril.

Com a Revolução, tudo se resolveu, num ápice. Fui chamado ao sub- diretor-geral do Ensino Superior do Ministério da Educação, que me propôs ser-me “dada”, por decisão oficiosa, a cadeira em falta, com a nota da média do resto do curso. Recusei. Fiz o exame (com outro professor, claro), acabei o curso e pude concorrer ao MNE.

Um dia, um ano e tal mais tarde, já diplomata, fui chamado à entidade, que funcionava no edifício de que hoje aqui falo, onde, ao que então soube, estava a ser preparado o “saneamento” do cavalheiro. Queriam que eu testemunhasse contra ele. O meu caso, por tão escandaloso, era uma das peças centrais do processo. Recusei. Disse que não o fazia, que não pretendia vingar-me. Ou melhor, que a minha vingança já estava feita: tinha sido o 25 de Abril.

Acabada a conversa, passei ao átrio central do andar (seria o quarto andar, diz-me a memória) e chamei um elevador. A porta abriu-se. À minha frente, saiu precisamente a tal personagem, que devia ir ali prestar declarações. Viu-me e hesitou um segundo. Deve ter pensado que lhe tinha acabado de ”fazer a folha”. Olhei-o bem de frente e fiz, deliberadamente, um largo sorriso. De imenso desdem.

Na manhã de hoje, lembrei-me da cena. E gostei do que fiz naquele dia.

1 comentário:

Anónimo disse...

O sucessor do dito senhor também fez coisas parecidas. E já nos anos 90. Uma casa em muitos sentidos esclerosada.

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