sexta-feira, julho 22, 2022

Lembrando o senhor Matos


Por algumas décadas, a portaria do MNE foi dirigida pelo Jaime Matos, que tratávamos como “o senhor Matos”. A sala de que mostro esta fotografia contemporânea era o seu local de trabalho. Ele vislumbrava-nos, pela larga janela, logo à entrada do pátio das Necessidades, lá ao fundo, e vinha cumprimentar-nos junto à gradeada porta de entrada. 

O Matos era demasiado mesureiro, de uma gentileza artificial, dizem os que dele não gostavam. O Matos, para mim, foi sempre um homem educado, disponível, uma figura que sempre tive por agradável, desde o dia em que entrei para a carreira até àquele em que se aposentou. Não tenho dele a menor razão de queixa, antes pelo contrário.

O ministério, por esse tempo, era uma casa quase familiar. Todos ou quase todos nos conhecíamos. Por muitos anos, ao olhar o Anuário, fui capaz de identificar visualmente cada um dos colegas. O Matos, então, era uma espécie de Anuário em pessoa. Seria dificil escapar-lhe alguém.

O Matos era também o mais prestigiado dos "procuradores", essa instituição de que um dia já aqui falei, que todos os diplomatas eram forçados a contratar, de entre o pessoal da baixa hierarquia da casa, e que, na realidade, facilitava muito a nossa vida e permitia resolver uma imensidão de problemas, em especial quando estávamos colocados no quadro externo.

Ter o senhor Matos como procurador era um verdadeiro "must" de prestígio. Enquanto muitos contínuos e motoristas batalhavam para representar os novos diplomatas chegados à casa, o senhor Matos dava-se ao luxo de selecionar aqueles que aceitava como seus representados. Eram os grandes e mais antigos embaixadores aqueles que faziam parte do “portfolio” do Matos. Não raramente, ele "cedia" mesmo alguns diplomatas, por falta de tempo, a colegas dedicados à mesma tarefa.

O senhor Matos tinha a peculiaridade de ir informando os seus representados, que estavam colocados no estrangeiro, por carta, dos rumores que circulavam sobre futuras promoções e nomeações, fosse para embaixadas fosse para lugares de chefia superior na casa. A isso chamava, nas missivas que enviava, "o movimento que se diz que vai haver". Raramente se enganava, tal a qualidade e a "reliability" das fontes de que dispunha.

Com os anos, com a experiência e tendo já ouvido muito, o senhor Matos chegou mesmo ao ponto de ousar ter opinião sobre a própria justeza de certas indigitações. Um dia, ficou famoso um comentário que, por carta, deu a alguns dos seus representados: "Dizem que o senhor doutor Fulano de Tal pode vir a ser o próximo diretor político. Seja o que Deus quiser!..." Noutra ocasião, depois de anunciar uma determinada colocação, acrescentou, eloquente na sua apreciação: "enfim!..."

Estive, há dias, no espaço que sempre qualifiquei como “a sala do Matos”, que é agora uma sala de espera, na entrada das Necessidades. Notei a ironia do nome da revista que ali estava pousada, numa casa em que as viagens são a regra do jogo. No caso desta nota, até de viagens por outros tempos.

5 comentários:

JPGarcia disse...

Caro Francisco,

O Senhor Matos foi meu procurador durante o tempo em que estive no activo e era exactamente como descreve. Resolveu com pleno sucesso todas as situações burocráticas em que lhe pedi para me ajudar, algumas delas aparentemente sem solução. E todos os meses, lá recebia em Paris uma das suas cartas em que raramente se enganava sobre pessoas e movimentos. Tenho saudades dele.

Um abraço

JPGarcia

Rui Figueiredo disse...

“…baixa hierarquia…” !?

Francisco Seixas da Costa disse...

Rui Figueiredo. Chefe dos contínuos não é isso?

Rui Figueiredo disse...

Aceito. No Liceu, anos 60, tinha direito a gabinete com placa esmaltada sobre a porta onde constava “Chefe do pessoal menor”

Anónimo disse...

Este senhor Jaime Matos, então parecia mais, era o sr. Jaime Ramos. Adivinhava tudo ..

O outro lado do vento

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