quarta-feira, julho 20, 2022

A tacada nórdica


A cidade era esta: Ålesund. Lindíssima, não é? Foram os noruegueses a escolherem-na para a realização da “comissão mista” entre Portugal e a Noruega, naquele ano de 1980, atenta a memória do bacalhau. Nessa ocasião, seria impossível tirar uma fotografia com esta luminosidade: estávamos numa época em que alguma claridade permanecia sempre, nas 24 horas do dia.

Eu estava então acreditado como ”primeiro secretário” da nossa embaixada em Oslo. Éramos ali só dois diplomatas: o embaixador, Cabrita Matias, e eu. E, claro, cabia-me a logística da ”comissão mista”, em ligação com os noruegueses.

Por razões que para aqui não interessam, a cooperação luso-norueguesa escapara, desde sempre, ao controlo do Ministério dos Negócios Estrangeiros: estava na mão das Finanças. Por isso, nesse ano, presidia à nossa delegação o ministro das Finanças do governo da AD, uma figura que, cinco anos antes, por coincidência, me tinha feito o exame de Economia Internacional, no meu acesso à carreira diplomática. Chamava-se Aníbal Cavaco Silva.

No ano anterior, eu já tinha estado em Ålesund, a tratar de um problema de pescas. Conheci então o nosso cônsul honorário, Bjørn Knutsen, um norueguês que eu tinha na memória como pessoa já idosa (afinal, constato, tinha então menos de 60 anos), casado com uma senhora seca de carnes, com quem eu só trocava amáveis sorrisos, por não a entender na sua única língua de comunicação. Knutsen, um homem simpático que se exprimia num inglês com um léxico muito limitado, era, creio, um comerciante local, como quase sempre acontecia com os oito cônsules honorários que Portugal tinha então no país, uma rede que me cabia coordenar, como chefe da Secção Consular em Oslo.

Bjørn Knutsen, que herdara o cargo do seu pai, como às vezes acontece com os cônsules honorários, tinha uma forte dedicação ao nosso país e dispunha de evidente prestígio local, o que havia sido de utilidade durante a minha anterior visita de trabalho, razão pela qual fiz questão de lhe dar todo o destaque possível na deslocação do nosso ministro. Havia-me feito um pedido: gostava que Cavaco Silva a sua mulher, com o embaixador, a minha mulher e eu, fôssemos almoçar a sua casa. Havia um “slot” durante o programa, o jovem ministro era uma pessoa que, à época, se revelou flexível, o embaixador deu-me carta branca para organizar o almoço e eu montei a “operação”.

Era uma belíssima e acolhedora casa antiga, com paredes de madeira, em que recordo uma imensa pele de um urso branco, numa parede da sala de estar. Na véspera, o penoso jantar oficial havia sido bacalhau fesco, servido em duas rodadas, exatamente idênticas, com surpreendente mudança total de pratos e talheres. Dessa vez, em casa do nosso cônsul, o almoço foi uma bela rena, creio que acompanhado de um “Porta de Cavaleiros”, uma da poucas marcas de vinho português então à venda no Vinmonopolet, única cadeia oficial onde, em todo o país, estavam à venda vinhos e “spirits”. Foi uma ocasião tão descontraída quanto a interlocução linguística comum permitiu, com o embaixador Cabrita Matias, ao que recordo, a fazer o essencial da despesa da conversa.

Acabada a refeição, o dono da casa desafiou o ministro para uma curta partida de bilhar livre, numa sala ao lado. Porque o espaço não era muito, havia, recordo, uns tacos mais pequenos, para operar em certas posições. Cavaco jogava bem, mas o dono da casa, sem surpresa, foi mais eficaz no jogo. E fomos à vida.

No dia seguinte, à despedida, no pequeno aeroporto de Ålesund, à nossa partida para Oslo, notei Bjørn Knutsen algo agitado. A certa altura, chamou-me à parte: “Estou desolado! Ontem, devia ter deixado o ministro ganhar. A minha mulher está furiosa comigo! Diz que fui de uma grande indelicadeza e que posso vir a ser culpado por uma eventual má impressão que ele leve dos noruegueses e da Noruega”. Sosseguei-o, claro. Eram assim, sempre patrioticamente preocupados com a imagem seu país perante os estrangeiros, os noruegueses que por lá conheci.

Esta bela fotografia de Ålesund, que há horas surgiu nas redes sociais, trouxe-me à memória esta história. E que dá para ilustrar, já agora, uma das poucas derrotas de Cavaco Silva.

4 comentários:

Portugalredecouvertes disse...

Foto e cidade certamente lindíssimas!
Algumas semelhanças com as fotos antigas do Rio de Janeiro
antes dos prédios em altura?
talvez pelo aspeto dos morros com o oceano tão próximo!

Luís Lavoura disse...

A fotografia que ilusta o post é muito bonita, mas tem cores um bocado irreais. Fico a perguntar-me em que altura do ano e altura do dia terá sido feita. Vai-se a ver e é mais uma pintura que uma fotografia...

Pereirinha disse...

Se me permite, uma das mais belas canções que conheço tem como título Alesund e é cantada e tocada pelos Sun Kil Moon. Não conheço a cidade mas fiquei ainda com mais vontade de a visitar depois de ler a sua história.

maitemachado59 disse...

Para mi, Oslo e a melhor cidae de todos os paises nordicos.

E o bife de baleia? Espectacular. E pena e o vinho ser tao caro.

maitemachado59

Maduro e a democracia

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