quinta-feira, julho 21, 2022

A legitimidade política na Europa


Há semanas, assistiu-se a uma romaria das principais lideranças europeias a Kiev. Ainda a montante do segredo de Polichinelo que ia ser a luz verde da Comissão Europeia à admissão do pedido de adesão da Ucrânia à União, as chefias políticas das três mais importantes economias europeias, membros do G7 - França, Alemanha e Itália - quiseram dar um sinal político positivo ao governo de Kiev.

Estava ali uma nova “troika” de poder? Ou tratou-se de um mero seguidismo impotente, face à anterior afirmação de presença da presidente da Comissão Europeia?

Em Kiev, Macron, Scholz e Draghi, antecipando com algum desplante a decisão que aos seus parceiros competia darem no Conselho Europeu, foram dizer à liderança ucraniana que a União entendia que aceitar que, formalmente, o pedido de Kiev constituía para eles um imperativo político.

Mas quem é que estava ali a falar em nome da União? Três países que, nos meses anteriores, também já muito afetados pelos efeitos de reversão das sanções impostas à Rússia, haviam visto as suas economias sob forte pressão, com consequências sociais não despiciendas para a autoridade política das respetivas lideranças.

Macron tinha acabado de perder, no parlamento, a vitória no Eliseu, tendo agora perante si uma penosa navegação à vista. Scholz chefia uma coligação que ainda não deu mostras de ele próprio conseguir liderar, numa Alemanha abalada por uma imposta mas corajosa mudança de rumo, embora com contornos ainda não estabilizados. Draghi, cujo futuro político não é claro no momento em que escrevo, revelou, se necessário fosse, a precariedade de um sistema político em que o caráter cíclico das crises parece fazer parte da respetiva matriz. Os titulares dos três mais importantes poderes europeus, num tempo excecional de crise, são, eles mesmos, afetados por fragilidades que limitam a afirmação do seu poder.

Alguns dirão: mas, nesse cenário, a líder da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, deu mostras de afirmar uma chefia da máquina da União que compensa a fragilidade dos Estados.

Nem sempre o que parece é, mesmo em política. A coreografia voluntarista da presidente da Comissão, por muito que possa fazer transparecer força, será sempre um gigante com pés de barro se não tiver por detrás a vontade política constante do Conselho de Ministros, onde se sentam os Estados, cujos governos respondem perante os eleitores.

São esses governos que vão ter de convencer quem neles vota de que conseguem pôr em prática medidas efetivas para combater a carestia de vida, de que as sanções à Rússia fazem parte de uma política “do bem”, que está em sintonia com os seus interesses estratégicos últimos, de que o custo das restrições energéticas é o preço justo a pagar pela libertação de uma dependência nefasta. E que a União, tal como fez durante a pandemia, é o espaço certo para a procura de soluções que vão para além das capacidades dos Estados membros.

A presidente da Comissão Europeia, salvo coisas imponderáveis, não cairá pelo voto democrático do Parlamento Europeu, instituição que, ela própria, vive no conforto de nunca poder ser dissolvida, pelos seus cinco anos de mandato.

Pelo contrário, os titulares dos governos europeus representam o sentimento de quem elegeu os seus parlamentos, em tempos diferentes, com resultados diversos e até contrastantes, estão sujeitos a uma “accountability” poderosa, respondem a quem paga os seus impostos. Não há comparação possível em termos de legitimidade - conceito que está muito para além da eficácia, ao contrário do que sucede nas autocracias.

A Europa não é nem será nunca um país, não terá um governo que responda diretamente perante os eleitores. O Parlamento Europeu tem uma legitimidade limitada, tal como a Comissão. A União é, a cada momento, a conjugação das vontades nacionais que nela decantam a determinação de prosseguir num determinado rumo. Ou de o alterar.

A Comissão Europeia não pode ter uma vontade política própria, independente do sentimento que o Conselho lhe transmitir como sendo a linha a prosseguir. Tendo o poder de iniciativa, não tem legitimidade para impor esse poder os Estados membros.

As coisas não deviam ser assim? Não sei, nem isso importa muito, salvo para os teóricos, a quem deve ser lembrado que, na prática, a teoria é sempre outra. Só sei que as coisas são assim, goste-se ou não de como são.

Esta é a Europa que temos e, olhando para o resto do mundo, com todas as suas insuficiências, não conheço melhor sistema de gestão internacional de vontades, sob um corpo ético-político que pede meças a quem quer que seja.

11 comentários:

Francisco disse...

Este "post" é uma construção engenhosa, de quem, andando por cá há muito tempo, conhece a filigrana de que se faz o rosário dos crentes. Para quem leu Hayek (e o Francisco Seixas da Costa, não duvido que o fez), a União Europeia constitui um mecanismo político cujos arranjos institucionais e cuja dinâmica funcionalista (o célebre spillover) é fundamentalmente um meio de afastar o centro da decisão política de qualquer escrutínio democrático dos cidadãos, tal como era, já nos idos dos anos 20 do século passado, o sonho e a proposta política do ultra-liberal Austríaco.
Poderia ser exaustivo na identificação das múltiplas raízes do défice democrático europeu, mas bastar-me-ia, no limitado contexto em que o faço, com a ausência do requisito da unanimidade nas deliberações do Conselho (esse órgãos cuja opacidade é também reveladora da seiva democrática que o alimenta), expondo assim os nacionais dos vários Estados-membros a decisões que lhe são alheias e até adversas, como também e de modo icnográfico para o célebre Eurogrupo, que apesar de não previsto nos Tratados toma decisões que diariamente impactam a vida de milhões de cidadãos, ao ponto de Pyketti e um conjunto de outros intelectuais franceses, terem até vindo clamar um Trata para a Democratização da Europa.
Naturalmente que a União Europeia não é má para todos nem deixou também de induzir, sobretudo num país periférico como Portugal, alguns efeitos de crescimento económico (desenvolvimento não, que isso por vezes gera maus hábitos), ao mesmo tempo que e sobretudo, constituiu e tem constituído para a burguesia capitalista, sobretudo um instrumento tampão, cuja invocação serve às mil maravilhas como contrapeso de peso às reivindicações das classes e camadas que continuam a empobrecer. Já agora e para que conste, segundo dados da ONU ascende neste momento a cerca de 92 milhões o número de pessoas em risco de pobreza na UE, sobretudo mulheres.
Entre a UE propagandeada e a efectiva, há um fosso abissal. Mas aos olhos de uma parte dos cidadãos, é dali que corre o rio que jorra leite e mel. Nada de novo em tudo isso. Afinal, entre uma classe em si e uma classe para si, o salto foi sempre complexo, apesar de obviamente inevitável.

Luís Lavoura disse...

os titulares dos governos europeus representam o sentimento de quem elegeu os seus parlamentos

Essa é a mentira política que está na base da União Europeia.

Na verdade, nunca, jamais, algum governante europeu é ou foi julgado pelos seus eleitores por aquilo que faz e defende dentro do Conselho Europeu.

As questões políticas perante António Costa, neste momento, são os incêndios, a saúde, a inflação, mas não as posições que ele toma ou deixa de tomar quando se reúne com os restantes presidentes europeus.

A União Europeia é uma construção totalmente a-democrática.

José Figueiredo disse...

Cheguei a pensar que o Embaixador começasse a ter dúvidas, mas o parágrafo final esclareceu a sua posição.
José Figueiredo

Luís Lavoura disse...

olhando para o resto do mundo, [...] não conheço melhor sistema de gestão internacional de vontades

É tudo uma questão de definição de "internacional".

Eu posso retorquir ao Francisco que a Índia é um país internacional. Tem muitas nações.

Em boa medida, a Suíça também é internacional - tem muitas nações.

Tanto a Índia como a Suíça são bons modelos de como a União Europeia se poderia tornar mais democrática.

Carlos disse...

A Sra von der Leyen protagoniza uma deriva perigosa que envolve as instituições europeias que do alto do Berlaymont e dos edifícios da rue de la Loi acham que têm como missão impor aos cidadãos da Europa o seu conceito de um mundo melhor, independentemente da opinião destes mesmos cidadãos e se necessário for contra a sua vontade. Durante algum tempo o poder desta burocracia de contornos vagamente tecnocraticos ainda invocava uma pretensa “evidência” em que se apoiavam as suas decisões. Todavia, perante as evidentes falhas deste “evidence-based policy making” passaram a usar (e abusar) de formas mais ou menos sofisticadas de manipulação da opinião pública, como ilustram as declarações da Sra von der Leyen sobre a Ucrânia na UE e mais recentemente o pacote de redução do consumo do gás.

Custa-me dizer isto, mas acho que há falta de escrutínio em relação às decisões das instituições europeias e em especial do seu braço executivo a Comissão Europeia. Dois exemplos: não é segredo que a propósito da resolução do BES e da venda do Novo Banco o governo português (quer com Passos Coelho quer com António Costa) foi colocado contra a parede sem qualquer margem de manobra. Mas a solução imposta pela Comissão Europeia, como alternativa á liquidação do banco revelou-se desastrosa para os contribuintes portugueses. Todavia, a Comissão nunca esclareceu em que dados se baseou para impor esta solução e vetou as propostas do governo português para que por exemplo o fundo de resolução tivesse um lugar na administração do banco ou a venda do Banco fosse adiada até se encontrar uma conjuntura mais favorável. Estas exigências vieram de burocratas sem rosto e cuja experiência e conhecimento do sector bancário estivessem claramente demonstrados. Face ao descalabro ninguém pede responsabilidades da DG COMP? E já não falo da forma igualmente questionável como foram diferentemente tratados o BES / Novo Banco e o Deutsche Bank ou o Loyds.

Também não é um acaso que Portugal esteja tão parcamente representado nos lugares de topo das instituições europeias nem a multiplicação das lideranças entregues a pessoas do leste da Europa com uma cultura de gestão e public accountability muito diferente das democracias liberais. Chega-se a um ponto em que quem não se dá ao respeito acaba por não ser respeitado.

Carlos disse...

A Sra von der Leyen protagoniza uma deriva perigosa que envolve as instituições europeias que do alto do Berlaymont e dos edifícios da rue de la Loi acham que têm como missão impor aos cidadãos da Europa o seu conceito de um mundo melhor, independentemente da opinião destes mesmos cidadãos e se necessário for contra a sua vontade. Durante algum tempo o poder desta burocracia de contornos vagamente tecnocraticos ainda invocava uma pretensa “evidência” em que se apoiavam as suas decisões. Todavia, perante as evidentes falhas deste “evidence-based policy making” passaram a usar (e abusar) de formas mais ou menos sofisticadas de manipulação da opinião pública, como ilustram as declarações da Sra von der Leyen sobre a Ucrânia na UE e mais recentemente o pacote de redução do consumo do gás.

Custa-me dizer isto, mas acho que há falta de escrutínio em relação às decisões das instituições europeias e em especial do seu braço executivo a Comissão Europeia. Dois exemplos: não é segredo que a propósito da resolução do BES e da venda do Novo Banco o governo português (quer com Passos Coelho quer com António Costa) foi colocado contra a parede sem qualquer margem de manobra. Mas a solução imposta pela Comissão Europeia, como alternativa á liquidação do banco revelou-se desastrosa para os contribuintes portugueses. Todavia, a Comissão nunca esclareceu em que dados se baseou para impor esta solução e vetou as propostas do governo português para que por exemplo o fundo de resolução tivesse um lugar na administração do banco ou a venda do Banco fosse adiada até se encontrar uma conjuntura mais favorável. Estas exigências vieram de burocratas sem rosto e cuja experiência e conhecimento do sector bancário estivessem claramente demonstrados. Face ao descalabro ninguém pede responsabilidades da DG COMP? E já não falo da forma igualmente questionável como foram diferentemente tratados o BES / Novo Banco e o Deutsche Bank ou o Loyds.

Também não é um acaso que Portugal esteja tão parcamente representado nos lugares de topo das instituições europeias nem a multiplicação das lideranças entregues a pessoas do leste da Europa com uma cultura de gestão e public accountability muito diferente das democracias liberais. Chega-se a um ponto em que quem não se dá ao respeito acaba por não ser respeitado.

Luís Lavoura disse...

Carlos

as evidentes falhas deste “evidence-based policy making”

O que acontece é que o “evidence-based policy making” foi totalmente abandonado.

No “evidence-based policy making”, comprava-se gás natural russo porque este era o mais barato disponível e porque a Rússia era uma fornecedora confiável. Ou seja, com base dos dados observados disponíveis (a evidence), o gás natural russo era a melhor opção possível.

Mas agora abandonou-se a “evidence-based policy making” e passou-se a comprar gás natural de acordo com ditames políticos e não de acordo com os dados observáveis disponíveis. Vai-se comprar gás natural a sítios longínquos como os EUA e o Qatar, transportado de formas complicadas e caras como os navios com gás liquefeito, apesar de toda a evidence indicar que isso é um disparate.

Joaquim de Freitas disse...


A Europa entregou-se nua ao poder capitalista, a Europa sem os povos, sem democracia, e para a classe trabalhadora um regresso à estaca zero, o de antes de 1848.

Sob o falso pretexto de espalhar "democracia" e "direitos humanos", os governos ocidentais espalharam o caos por todo o mundo, desde a América Latina ao mundo árabe-muçulmano.

Claro. Nos séculos passados, as desculpas usadas para justificar o colonialismo incluíam a necessidade de "civilizar os nativos" para os salvar de si mesmos, através da espingarda. Na realidade, o capitalismo, na sua infância, teve de subjugar estes povos para poder aceder aos seus recursos e abrir novos mercados para os produtos europeus.

Há vários países com registos terríveis em termos de direitos humanos que cometem numerosos abusos contra o seu próprio povo ou populações ocupadas, como Israel e a Arábia Saudita, e que são aliados da NATO.

Não só evitam críticas pela sua falta de democracia e direitos humanos, como também recebem dinheiro e armas dos Estados Unidos e dos seus aliados.

E quando penso que é a NATO que dirige hoje a UE...como vimos em Madrid.

manuel campos disse...


Um texto notável que o último parágrafo não destrói mas deixa em muito mau estado...

Francisco Tavares disse...

O comentário de Francisco terá dito o essencial sobre a não democrática e irreformável UE. Mas sobre o "... corpo ético-político que pede meças a quem quer que seja": há poucos dias foi divulgado o esquema de corrupção envolvendo a ex-comissária Nellie Kroes da equipa Durão Barroso, no favorecimento da Uber com o argumento de que criava empregos/postos de trabalho (precários, e muitos dos quais se encontram hoje endividados). Um exemplo entre outros. É também conhecido o esquema de impôr a substituição de governos que não aceitam seguir as diretrizes da UE (vd. caso de Berlusconi, sobre o qual existem declarações surpreendentes do ex-primeiro espanhol Zapatero), até por interposta estrutura "independente" como é o BCE. Os indicadores de pobreza na UE mostram que as ditas "meças" são como o "gato escondido com o rabo de fora": 20% da população (100 milhões) está em risco de pobreza ou exclusão, mas sabe-se que 30 milhões estão efetivamente em situação de grave privação material e 30 milhões representam hoje uma nova classe: a dos trabalhadores pobres. Toda esta população que assim se encontra a quem vai "pedir meças"? Como dizia Junker (cito de memória) "não há vontade popular, via eleições, que possa contrariar o disposto nos Tratados".

Nuno Figueiredo disse...

não me parece.

Sai um Kennedy!

Kennedy na equipa de Trump! Ouviram-no durante a campanha? Tudo isto pode vir a ser dramático, mas lá que vai ter piada de observar, lá isso...