Há muitos anos, quando fui viver para a Noruega, usufruí, pela primeira vez, do prazer de viver em cidades em que as passadeiras para peões eram respeitadas, em absoluto. Atravessar uma rua não era ali uma aventura, era algo que se processava com imensa naturalidade e segurança.
A regra norueguesa tinha, contudo, um duplo sentido. Um peão que quisesse atravessar uma passadeira estendia o braço, dando um sinal aos condutores para pararem. Mas se, na via, seguia um automóvel com alguma velocidade, notava-se que havia o cuidado, por parte dos peões, de aguardar um pouco, antes de atravessarem. É que é sempre muito mais fácil a uma pessoa suspender o passo e, por um instante, deixar de avançar do que ao condutor de uma viatura, com um peso de toneladas, travar e parar o seu movimento. Julgo ser uma mera questão de bom senso.
Por que escrevo isto? Porque é muito triste constatar o que se vê cada vez mais entre nós, em Portugal: pessoas a entrar nas passadeiras sem dar um sinal mínimo às viaturas que seguem à sua velocidade autorizada, sem sequer olharem para os carros que se aproximam, outras a ”passear” por elas, deliberadamente, de forma lenta, de um modo quase provocatório, muitas vezes a falar ao telemóvel ou a olharem para ele, frequentemente à conversa com um parceiro.
Acresce ainda que, se para o peão, todas as passadeiras são basicamente iguais e se comporta da mesma forma perante elas, para o automobilista isso não é assim: há passadeiras que não estão sinalizadas, algumas estão apagadas, outras são menos bem iluminadas depois do cair do dia. O condutor de uma viatura é, muitas vezes, surpreendido pela existência de uma passadeira que dificilmente identifica, entre tudo aquilo a que tem de estar atento na condução: todos os sinais de trânsito, eventuais obstáculos, outros veículos, etc.
Está criada, no insconsciente coletivo, uma espécie de hierarquização de direitos: o peão tem direito a tudo, até a abusar e ser ostensivo nesse abuso. O automobilista vive sob uma espécie de complexo de culpa, como se ter um carro fosse ”crime”, um privilégio que é necessário “punir” e, para expiar a sua indizível culpa, devesse vergar-se ao excesso de atitude do peão.
Constata-se hoje um ostensivo abuso dos seus direitos por parte dos peões, numa atitude que tem muito de saloia, numa espécie de novo-riquismo, como quem diz, em silêncio: “Olha lá! Vou gozar, até ao absurdo, o direito que ganhei!”. Ora se um peão tem os seus direitos, o automobilista não os tem menores. Ambos devem ser respeitados e nenhum se sobrepõe ao outro.
Termino lembrando o que diz o nº 2 do artº 101º do código da Estrada: “O atravessamento da faixa de rodagem (pelo peão) deve fazer-se o mais rapidamente possível.”
Uma nota: este texto é sobre os deveres dos peões. Por isso, os deveres dos automobilistas, que também os têm, e muitos, tal como os seus comportamentos, muitas vezes impróprios, não são chamados para esta conversa. Num outro dia poderemos falar deles, se quiserem, mas não hoje.
11 comentários:
Senhor embaixador, antes de o automobiliusta o ser, é peão. E será sempre primeiro peão.
Como moro numa zona histórica e não tenho outro remédio senão usar o carro todos os dias (acompanho diáriamente um familiar muitísssimo doente que vive longe) posso-lhe garantir que por estas zonas ainda é pior do que por outras.
Os turistas são muito piores que os nacionais pois vivem numa espécie de "inimputabilidade total" (creio ser esse o termo).
A acrescer a isso tudo temos tuk-tuks, bicicletas e trotinetas, estas duas últimas a não respeitar sentidos obrigatórios e portanto olho sempre para os 2 lados em ruas de sentido único.
Como disse aqui há dias e apesar de ter carro(s), dentro de Lisboa ando só de transportes públicos e tenho passe social.
E andando a pé todos os dias tenho por hábito ser o primeiro a fazer sinal aos automobilistas para passarem se vejo que atrás daquele não vêm muitos e portanto até atravesso mais descansado.
Mas o curioso é que os peões "mais agressivos" nesta matéria que conheço são gente que tem carro e não é particularmente respeitadora dos peões.
Muito curioso mesmo.
Completamente de acordo, senhor embaixador.
Mas aquele verbo "estugar"estará ali bem aplicado ?
MB
Nas passadeiras o peão tem prioridade. Esta é a regra. Os condutores devem abrandar quando as aproximam. Tendo dito isto os peões devem esperar até aos condutores pararem. Se ambos cumprirem as regras não haverá problemas em princípio. Se um as cumprir, provavelmente ambos escaparão a problemas.
O meu princípio quando conduzo é o de que eu é que tenho de ter cuidado, portanto passadeiras são como ter o sinal triangular invertido no cruzamento com outros veículos, estar pronto para parar. Assim sendo, não há cá veleidades, nem pressas da minha parte para negar a passagem a um peão por eu não ter tomado as devidas precauções, muito menos porque não me apetece parar, aliás enquanto peão gosto pouco que o façam quando já estou especado na borda do passeio para atravessar.
Mas é verdade, como bem disse o comentador Manuel Campos, que quem anda pelos spots turísticos tem boas razões para se queixar, andei há uns tempos pela zona da Estrela-Chiado-Princípe Real a um domingo e fiquei abismado com os atiranços para a estrada que tive de prever (já tinha comentado aqui).
Mais uma concordância com Manuel Campos é o facto dos peões mais inconscientes serem o tipo de condutor "paro se me apetecer".
MB tem toda a razão. Foi um equivoco. Vou mudar. Agradeço-lhe
Uma vez li o testemunho de um turista francês em Portugal. A filha desse turista, uma menina, tinha sido morta por atropelamento em Portugal, e o turista bramava contra o sistema judicial português, que teria atribuído a culpa do atropelamento à menina, que supostamente não estaria vigiada pelos pais e se teria atirado para a frente do automóvel. Segundo o turista isso era inadmissível, pois que, dizia ele, na terra dele (a França), num atropelamento a culpa era automaticamente atribuída ao automobilista, e ele estava escandalizado que em Portugal não fosse também assim.
Pois, tudo muito bem. Nunca tive carro. Por opção. Acho que o caminhar é o mesmo que respirar. Respeito sempre os automobilistas e todas as regras para caminhar em segurança. E deixar em segurança os automobilistas, mesmo aqueles, muito preocupados com o ambiente, que dentro de Lisboa acham que devem, a grande velocidade, levar o querido automóvel a todo o lado, até para ir à retrete. O inverso está muitíssimo longe de acontecer (os portugueses, mesmo aqueles que apeados são umas moscas mortas, são, em regra umas bestas, ou melhor, uns javardos ao volante, e quando conduzem táxis e uber e outros que tais então é um fartar vilanagem). Que me lembre, com o meu esqueleto e tudo o mais, nunca coloquei em risco a vida de um precioso automobilista na sua armadura.
bom senso.
Absolutamente de acordo.
Os piores são os turistas que passeiam pelas estradas como se não houvesse viaturas a circular.
Sim, os pedestres deviam cuidar-se ao entrar numa passadeira, sem pausa e olhar, quando por vezes há viaturas grandes a tapar a visão do condutor mesmo que muito cuidadoso.
Já me aconteceu ficar parado por momentos antes de uma passadeira, e ter uma jóvem senhora irta no meio da zebra, a ler mensagem no seu smartfone. O marido envergonhado teve que a fazer voltar à realidade.
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