segunda-feira, junho 27, 2022

Uma estratégia russa


The recognition of the Donetsk People’s Republic (DPR) by other countries is just an interim stage while it is more important for the Donbass republics to get integrated into Russia, Chairman of the DPR Public Chamber Alexander Kofman told TASS on Sunday.” (O reconhecimento da República Popular de Donetsk (RPD) por outros países é apenas um estádio intermédio, dado que o mais importante para as repúblicas do Donbass é serem integradas na Rússia, disse à Tass, neste domingo, o presidente da Assembleia Pública da RPD, Alexander Kofman).

Em fevereiro último, ainda antes da invasão da Ucrânia, durante uma reunião do Conselho de Segurança da Federação Russa, transmitida pelas televisões, o mundo teve oportunidade de assistir a uma intervenção de um dignitário do regime que, num evidente lapso, disse estar de acordo com a integração das repúblicas de Donetsk e Luhansk na Federação Russa. Putin, com humilhante veemência, interrompeu-o, dizendo que essa não era a questão que ali estava a ser discutida. E não era: na ocasião, tratava-se apenas de decidir se a Rússia iria reconhecer essas repúblicas, aproveitando a luz verde para tal, que antes fora dada pela Duma (parlamento). A personalidade que interveio tinha-se precipitado, mas o que disse era revelador.

A questão tem algum tempo e Moscovo não tem seguido um percurso linear para atingir o que lhe importa. 

Em 2008, na sequência da tentativa do governo da Geórgia de retomar a soberania sobre as regiões secessionistas da Abcásia (separada desde 1993) e da Ossétia do Sul (separada desde 1991), a Federação Russa interveio militarmente em favor do poder “de facto” existente em ambas e decidiu reconhecê-las,  no seu aut-atribuído estatuto de Estados independentes. O argumento foi o de que as populações russas, que, maioritariamente, vivem nesses territórios, estavam a ser atacadas ou ameaçadas. Desde então, a Ossétia do Sul, que só a Rússia e um número infimo de países reconhece como independente, tem vindo a adiar a convocação de um referendo interno para a integração plena na Federação Russa. Não há ainda nota de idêntica intenção por parte da Abcásia, que vive sob um reconhecimento internacional análogo, mas a forte tutela russa sobre esse “Estado” é muito evidente e há a convicção de que, acaso a Ossétia do Sul faça o esperado pedido integrador na Rússia, os abcazes procederão de forma idêntica.

Em 2014, duas regiões no Donbass, no Leste da Ucrânia, Donetsk e Luhansk, autodeclaram-se autónomas do controlo do governo central. O presidente do país, oriundo dessa área, havia sidi afastado por um golpe político que colocou no poder, em Kiev, um regime abertamente pró-ocidental e considerado  discriminatório face às populações russófonas do país. De forma mais ou menos discreta, o governo russo apoiou (e, muito provavelmente, estimulou), com recursos materiais e humanos, essa revolta regional. Moscovo, quiçá por razões táticas, não reconheceu então essas duas “repúblicas populares”, mas deu-lhes constante apoio, a partir de então, para a guerra de baixa intensidade que mantiveram com o regime de Kiev. 

Simultaneamente, a Rússia operou, nessa altura, na península da Crimeia, um “golpe de mão”, ocupando rapidamente a região, sob a impotência militar da Ucrânia, organizando um apressado referendo para a “independência” do território, logo integrado na Federação Russa.

Já neste ano de 2022, pretextando não ter sido concluída a autodeterminação regional prevista no Acordo de Minsk (para a regulação político-constitucional entre Luhansk e Donetsk e o poder central em Kiev, negociado sob mediação franco-alemã) e tendo-se agravado, na perspetiva de Moscovo, as ameaças às populações russas no Donbass, que correriam o risco “genocídio”, a Rússia invadiu militarmente a Ucrânia, a “convite” desses dois “Estados”, que entretanto, rapidamente reconheceu como ”Estados independentes”.

Agora, olhando o decurso da guerra e modo como ela está a decorrer, pode prever-se que um processo similar venha a suceder futuramente à região de Kherson (uma das primeiras a serem ocupadas em fevereiro, o que pode justificar-se pela importância de assegurar o abastecimento de água à Crimeia e facilitar o respetivo acesso por terra, garantido com a tomada de Mariupol). As medidas de russificação em curso, desde o uso do rublo à internet e media russos, apontam nesse sentido.

Numa perspetiva maximalista, se o avanço russo no sul da Ucrânia, para ocidente, conseguir chegar à fronteira moldava, é mais do que provável que a comunidade russa na Transnístria (zona separatista da Moldova, que dá regulares sinais no sentido de querer ligar-se institucionalmente a Moscovo) venha a pedir à Duma russa o seu reconhecimento (como sucedeu com as repúblicas do Donbass) e assim se inicie o processo para a respetiva integração na Federação Russa.

A declaração com que iniciei este texto vem dar corpo, em absoluto, àquilo que se tem ouvido de Vladimir  Putin, desde as semanas que antecederam esta guerra. A doutrina parece cristalina: as áreas da antiga União Soviética onde vivam cidadãos russos ou pertencentes a comunidades étnico-linguísticas russas, que tenham dificuldade de afirmação dos seus interesses específicos enquanto comunidade, no contexto dos novos países de que passaram a fazer parte, são vistas pela Rússia como fazendo parte da sua esfera de legítima tutela. A Rússia estimula a expressão “nacional” e a pulsão autonomista dessas comunidades, dá-lhes o rótulo de “repúblicas” e, num derradeiro passo, acabará por integrá-las na Federação Russa, estendendo-lhes depois a proteção, em especial em matéria de segurança, que lhes será conferida pela soberania russa. 

No limite, e no futuro, podemos interrogar-nos sobre se quaisquer atos de natureza militar que venham a ser empreendidos por parte dos governos dos países de que se cindiram (Geórgia, Ucrânia e Moldova), para recuperação da soberania que lhes é reconhecida pela ONU e pelo Direito Internacional, não serão interpretados por Moscovo como ações de agressão militar contra a Rússia e o seu território, com todas as consequências que daí podem derivar, em termos de resposta defensiva.

2 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

Senhor Embaixador : Não acha que o título do seu texto deveria ser « Estratégia Americana » ?
a)-E se o reconhecimento das duas republicas do Donbass fosse simplesmente a reacção normal dos russos perante o golpe de estado de Maidan?

b)-O ex-embaixador dos Estados Unidos em Moscovo (1987-1991) Jack Matlock, confirmou em tempos no Washington Post ,que o presidente Bush pai havia prometido formalmente não tirar vantagem indevida da generosidade do presidente Gorbachev, que concordou em apoiar a reunificação da Alemanha, dissolver o Pacto de Varsóvia e até admitir a entrada de uma Alemanha reunificada na NATO..

c)-A expansão da NATO nas ex-repúblicas soviéticas, o estabelecimento de bases militares em países que outrora assinaram o Pacto de Varsóvia e a construção de um "escudo antimísseis" na Europa de Leste, coincidindo com o desligamento unilateral dos Estados Unidos da Tratado ABM (para Mísseis Anti balísticos, assinado em Moscovo em 26 de Maio de 1972 como parte das negociações para a limitação de armas estratégicas), são tantas violações gritantes de compromissos.

d)-Além disso, Keir A. Lieber e Daryl G. Press já haviam reconhecido sem rodeios, num artigo de 2006 intitulado “The Rise of US Nuclear Primacy”, que o Escudo (de “Defesa”) Antimísseis não tinha outro propósito senão permitir um primeiro ataque destinado a neutralizar a Rússia.

e)-Claro que posso ser acusado de anti americanismo primário, mas os eventos que se desenrolam na Ucrânia desde Novembro de 2013, demonstram de que os Estados Unidos exploraram reivindicações legítimas ucranianas para os seus próprios fins. Então não vimos isso na Sérvia, Geórgia, Ucrânia em 2004, Egipto, Síria, Líbia, Venezuela ?

f)- A ingerência da União Europeia e da OSCE impôs-se com rapidez nas doze horas que se seguiram à rejeição do acordo alcançado pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros com vista a uma solução pacífica, com a ajuda de forças fascistas. O site da Open Ukraine Foundation do primeiro-ministro em exercício mostra quem está por trás do governo golpista actualmente no poder em Kyiv.

g)- Quanto à Crimeia, os desenvolvimentos ocorridos na Europa desde 1990, o desdobramento de cerca de 1.000 bases militares dos EUA em todo o mundo, o controle exercido pelos Estados Unidos sobre todos os estreitos e os perigos que os autores do crime de Maidan representam para a frota russa do Mar Negro, a secessão da Crimeia, não foi mais que uma medida defensiva acompanhada de uma mensagem: até agora e nada mais!

Se formos honestos, a diferença entre este evento e a declaração de independência do Kosovo é que esta só foi possível graças aos massivos bombardeios ilegais da NATO, e da EU, que criou as condições para a independência.

Senhor Embaixador, peço desculpa da extensão do texto.

manuel rocha disse...


Num texto que parece tentar ser equilibrado, para que serve a menção ao "direito internacional" ? Decerto o autor não é ingénuo, sabe que o direito internacional nada mais é que um cardápio de "regras" desenhadas pelos DTT para aplicar "à la carte" de acordo com a flutuação temporal dos seus interesses geoestratégicos. Então qual o propósito? Não destoar do "consenso" mediado ? Fica-me a dúvida...

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