Ainda não pode ser descartado, em definitivo, que venha a conseguir, apenas com os dois grupos seus aliados no seio da frente eleitoral Ensemble, uma maioria absoluta no parlamento. Este é, contudo, o cenário menos provável. Porém, ainda que tal ocorresse, seria sempre por uma ínfima diferença, pelo que o peso dos dois parceiros, o Horizonts (de Edouard Phillipe, o seu primeiro PM, nome a recordar para o período pós-Macron) e do MoDem (de François Bayrou, uma “velha raposa” do centrismo de direita) iria obrigatoriamente subir e, provavelmente, obrigar a uma nova remodelação governamental.
Se não vier a conseguir uma maioria absoluta, que é a perspetiva mais plausível, o presidente irá ter de pagar um ainda mais duro (e, por ora, imponderável) preço para conseguir que o seu governo possa vir a ter o apoio parlamentar do Les Républicans. Esta direita clássica nunca perdoará a Macron ele ser uma das razões do seu declínio (a outra razão é a “normalização” de Marine Le Pen). E, por isso, irá pedir um preço altíssimo para o apoiar, ainda que criticamente.
Com as mãos atadas no parlamento, os próximos cinco anos de Emmanuel Macron prometem ir ser um calvário, em termos de condições políticas para conseguir introduzir algumas reformas que a sobrevivência do sistema torna imperativas. Acresce que a “rua” não promete abrandar: os “gillets jaunes” podem regressar, porque a degradação económica das classes médias será acelerada pelos efeitos da inflação, da subida das taxas de juro e dos combustíveis, e as forças sindicais prometem já colocar a ferro e fogo o imenso setor público. E muitos trarão, de novo, a jogo a insegurança, as fronteiras, a precariedade, o aumento do custo geral de vida, o salário mínimo, a idade da reforma, etc.
Jean-Luc Mélenchon, o tribuno da esquerda, não vai conseguir ser primeiro-ministro. Mas há que reconhecer que soube bem cavalgar o descontentamento daqueles “enragés” que nada querem com a extrema-direita. Conseguiu assim federar, quiçá episodicamente, toda a esquerda relevante, sob a sigla NUPES (Nouvelle Union Populaire Écologique et Sociale), com vista a estas eleições legislativas. Por lá estão o La France Insoumise, do próprio Mélenchon, os ecologistas, os socialistas e os comunistas. Mas, nessa NUPES está também tudo e o seu contrário: quem é pelo projeto europeu e quem lhe contesta as regras financeiras e a preeminência do seu direito; quem aceita a pertença à NATO e quem é favorável à saída da França da organização, que acha ser uma mera arma do imperialismo americano; quem aceita a energia nuclear e quem se lhe opõe; e assim por diante.
Para o que importa, Mélenchon conseguiu titular um resultado que, não sendo inesperado face às sondagens, representa um importante salto face à soma daquilo que foi o peso relativo dessas formações nas anteriores eleições legislativas, há cinco anos. Esse crescimento pode ter como origem setores que então terão votado no partido de Macron, tendo-se entretanto desiludido, e, eventualmente, colhido mesmo alguns votos que a extrema-direita tinha captado. Mas tudo indica que terão sido os votantes de gerações mais novas que terão engrossado esta notável votação na NUPES. Os deputados que a NUPES vier a conseguir, no segundo turno a 19 de junho, serão a principal oposição na futura Assembleia Nacional, mas há que pensar que a natureza das suas diferentes componentes não garante que aí venham a ter um comportamento uniforme. Em todo o caso, a Assembleia Nacional vai ser uma tribuna onde a esquerda (mais ou menos radical) estará em força, como há muito não acontecia.
O Rassemblement National, de Marine Le Pen, perdeu muito eleitorado, em face daquele que ela própria havia obtido nas presidenciais. O seu resultado é um óbvio fracasso político, embora tudo indique que, pela primeira vez, possa vir a ter um grupo parlamentar com uma expressão razoável, num sistema eleitoral que, como é sabido, a não favorece. Pelo caminho, com um resultado muito medíocre, ficou o Reconquête, do seu “challenger” na extrema-direita, Éric Zemmour. O próprio líder não foi eleito e a única conquista do novo partido terá sido o ter montado uma rede de dimensão nacional, muito graças à expressão mediática do seu líder. Mas, para sobreviver, vai fazer uma travessia do deserto.
Bastante fraco foi o resultado do Les Républicans, um partido com vocação tradicional de poder, de origem gaullista, e que, não obstante manter ainda uma maioria e a presidência do Senado, e também uma forte expressão municipal e regional, revela uma imensa dificuldade em assumir-se como alternativa de governo à escala nacional. Há dez anos afastado do Eliseu e de uma maioria na câmara de deputados, o Les Républicans, em face da “moderação” de Le Pen, tem vindo a ficar num limbo político que não seduz o eleitorado. As suas caras são ainda as da velha política, todas, sem exceção, tributárias do tempo de um Sarkozy que já não conta para o seu futuro. O catastrófico resultado da sua candidata às últimas eleições presidenciais, Valérie Pécresse, marcou um ponto muito baixo na história recente do partido.
A V República francesa estará a chegar ao fim? O modelo constitucional em que assentava - um presidente legitimado pelo voto popular, apoiado por uma maioria parlamentar - está, mais do que nunca, em crise. É verdade que, no passado, já se tinham verificado ocasiões em que o ocupante do Eliseu teve, no Palais Bourbon, maiorias que o contrariavam. Porém, essa oposição processava-se em termos de contraste ideológico não radical, pelo que foi sempre possível à França política encontrar um meio termo institucional que, provocando algumas fricções internas, conseguia não afetar, por exemplo, a sua postura europeia e internacional. Ora uma coabitação entre Macron e Mélenchon é hoje impensável. Nem o próprio Mélenchon deve acreditar nela. Por isso, a pergunta é legítima: o que sairá daqui?
Com mais de metade do eleitorado a abster-se, com o partido que apoia o presidente esmagado entre dois radicalismos sem a menor ponte entre si - ou melhor, convergindo apenas na oposição a tudo quanto Macron representa e apresenta -, o futuro da França aponta para um inevitável longo período de instabilidade. Não são boas notícias para a Europa.
2 comentários:
un bordel.
Temos talvez que ir lá atrás, ao período do pós-guerra (com raízes logo no final da primeira, mas de forma exponencial depois de 1945), que assistiu ao desenvolvimento e plena maturidade dessa invenção social, económica e política, a que oportunisticamente foi dado o nome de classe média. Fugindo dos padrões e critérios da estratificação social até aí conhecidos (desde as sociedades esclavagistas, às divididas em castas, às organizadas em estamentos ou, com os Marxistas, as estabelecidas de acordo com a sua posição nas relações sociais de produção), abria-se agora a oportunidade para que, no interior do sistema capitalista e sem afectar nenhum dos seus elementos estruturais, fosse possível até falar em teoria de fusão dos sistemas ou em terceiras via, convidando por isso a grande massa, a deixar de se reconhecer enquanto classe em si, passo preliminar para se afastar de qualquer pretensão de se constituír em classe para si. Os anos 60 e o seu crescimento económico impar, a massificação do consumo e um estado social assente num modelo social europeu cuja robustez era proporcional à necessidade de se oferecer como alternativa ao bloco de leste, edificaram, em conjunto com o "hommo videns" do insuspeito G. Sartori, um corpo essencialmente omissivo e silente, que já nem no ritual eleitoral se sentia necessitado ou obrigado a participar, tal o seu estado de amorfismo social. Sucede porém, que o sistema não mudou e as suas entropias são as que resultam das necessidades de reprodução metabólica que lhe são intrínsecas, exponenciadas pela queda desse factor de equilíbrio que era o campo socialista. Nascem agora os primeiros órfãos de promessas cada vez mais distantes e quiméricas, em França, como um pouco por toda a Europa, pesem embora os "democráticos regimes musculados" que subsistem ainda nas colónias mais a leste. É por isso de admitir que Macron tenha mais embaraços no mandato que se avizinha; não necessariamente com essa coligação relativamente relativamente esdrúxula (falta-lhe a bússula a que se costuma chamar ideologia), mas sobretudo com o Povo, esse inconveniente de que não é ainda possível desligar-se completamente, logo no dia a seguir ao grande espectáculo da "democracia em acto". A emergência da multipolaridade mundial (de que a situação ucraniana está muito longe de ser o princípio, pese embora o seu carácter absolutamente marcante), acrescentará novas texturas, novas nuances, também novos perigos e desafios, a um mundo que por estes dias, tem mesmo muita dificuldade em rodar apenas, tranquilamente, sobre o seu eixo. Eleições em França? Sim, vale a pena pensar no assunto.
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