segunda-feira, junho 27, 2022

Uma aventura na escrita


Um dia, vai para meio século, Carlos Eurico da Costa, que dirigia a empresa publicitária Ciesa-NCK, setor que atravessava tempos difíceis e que então se tentava reinventar, sabendo-me um compulsivo leitor de imprensa, por me ver comprar resmas diárias de jornais, fez-me um desafio: não estaria eu disposto a redigir um boletim semanal, onde registasse os principais factos da atualidade política portuguesa, sublinhando - e essa era a novidade - o modo como os diferentes órgãos da imprensa escrita os tinham analisado ou sobre eles tinham opinado? A ideia era simples: descrever os factos e as figuras nele relevantes através do olhar da diversa imprensa.

Segundo a sua perceção, haveria um mercado potencial para esse produto, nas embaixadas e empresas estrangeiras, que viviam um pouco perdidas e aturdidas, nesse período pós-Revolução, em face da variedade política e ideológica da época, para conseguirem identificar o que se passava de realmente importante e estabelecer o quem-é-quem das figuras públicas que emergiam e de que então se falava. O estilo da escrita tinha de ser absolutamente neutro, independente. O rigor nessa análise era essencial, para justificar a compra, até porque a assinatura não seria barata (se um produto dessa natureza fosse barato, ninguém compraria…)

“Nada melhor do que um diplomata para redigir uma coisa assim!”, disse-me o Carlos. É que eu já era então diplomata, desde há algum tempo. Confesso que me atravessaram algumas interrogações sobre se aquele tipo de trabalho era compatível com o que eu desenvolvia nas Necessidades. Mas era evidente que nada daquilo que eu fazia, no meu dia a dia profissional, se confundia com a política interna portuguesa que me era proposta como objeto de uma análise factual, através da nossa imprensa.

Aceitei o desafio. O Carlos era meu primo e tínhamos uma relação muito próxima. Já me tinha conseguido um emprego, em “part-time” bem matutino, na Ciesa-NCK, logo após o 25 de Abril, ao tempo que eu fazia serviço militar, tarefa que tinha abandonado quando entrei para o MNE. Eu regressaria assim à colaboração com a empresa.

Demos ao boletim o nome pouco criativo de “Análise da Informação”. “Tem de ter uma designação sóbria, profissional”, decidiu o Carlos Eurico, que “sabia da poda”, quer da informação quer da vida empresarial.

Sob o ponto de vista financeiro, a compensação não era grande, mas ajudava-me a compor o baixo salário de um diplomata em início de carreira. Como tarefa e em termos de ocupação de tempo, o exercício veio, contudo, a revelar-se um “inferno”: deixei de ter os fins de semana livres, o vizinho do andar de baixo veio queixar-se de que o debicar na minha Olivetti portátil não deixava dormir o filho recém-nascido, a minha mulher queixava-se de que não tínhamos o menor tempo para nada. E eu andava cada vez mais estourado! 

Creio que aguentei aquilo, sozinho, cerca de dois meses. Um dia, disse ao Carlos que não podia continuar. Tinha de encontrar outra pessoa para executar o trabalho.

O Carlos, que não era pessoa para se atemorizar com os contratempos, teve logo uma ideia. Se eu não aguentava a “barra” sozinho, criava-se uma equipa. Mas insistia que eu ficasse nela, com “um terço do trabalho”. E ganhando o mesmo. Foi então que me dei conta de que o projeto tinha começado a ter sucesso, que havia cada vez mais clientes, e que, porventura, não estaria mesmo a ser pago à altura do que produzia. Mas de nada valia queixar-me do passado.

Dias depois, o Carlos trouxe a solução. Para a coordenação, ia o José Silva Pinto, um dos jornalistas fundadores de “O Jornal”. O terceiro redator, por sugestão do José Cardoso Pires, seria Francisco Vale, que hoje dirige a editora “Relógio de Água”, e que eu já conhecia de tempos comuns no Teatro Universitário do Porto. Em alguns momentos, a “Análise”, nas nossas férias, viria a ter a colaboração do Manuel Beça Múrias e do Carlos Cáceres Monteiro, ambos pertencentes ao “dream team” de “O Jornal”.

O pagamento continuava a não ser muito elevado, mas o Carlos introduziu-lhe uma novidade apelativa: o nosso salário ficava indexado ao número de exemplares vendidos. Ele comprometia-se a dar-nos conta mensal do andamento do negócio. E ele era um homem de contas certas, como nós sabíamos.

Passaram uns meses, Um dia, o Carlos telefonou-me, com voz “de caso”: “Precisava de falar contigo, antes de ambos termos uma conversa com o Silva Pinto e com o Vale”. Passei por casa dele, onde vivia com a Maria Lúcia Lepecki, e fui confrontado com um ”problema”: “A Ciesa acabou de fazer um contrato que, praticamente, triplica o número de exemplares vendidos. Como é que saímos disto?”.

Imagino que os meus olhos rissem, quando lhe respondi: “Essa agora! Não há o menor problema, é bem simples: triplicas os nossos salários!”. O Carlos ficou possesso: “Estás doido! Não posso fazer isso! Por um trabalho em “part-time” vocês passariam a ganhar um dinheirão!”. Eu estava muito divertido, a rir por dentro. “Tens de me ajudar na conversa que tenho de ter com o Silva Pinto!”. Eu continuava divertido, já a gargalhar em seco…

Dois dias depois, a equipa da “Análise da Informação” era convidada pelo Carlos Eurico da Costa para almoçar no “Caramão da Ajuda”. Quando cheguei, vi que a mesa estava cheia de belas entradas. Com um bom vinho. O Zé e o Francisco ainda não tinham chegado. O Carlos alertou-me: “Vê se me ajudas na conversa”. Eu ironizei: “Por isso é que nos trazes para o Caramão… da Ajuda?”.

Lá almoçámos. Deixei a despesa da conversa para o nosso coordenador, o José Silva Pinto, com o Carlos a lançar-me olhares, na esperança que eu fizesse alguma concessão masoquista que fragilizasse a coesão do trio. É o fazes! Lá se acordou um arranjo, já não sei de que forma, para “não sairmos milionários”. Não saímos, mas tivemos um belo aumento. Por essas horas extra que fazia para a Ciesa, eu ganhava quase o dobro do que o MNE me pagava. Foi um bom negócio.

Em maio de 1979, fui colocado no estrangeiro. (Alguns amigos perguntavam-me então da razão da minha teimosa relutância em sair para um posto: aqui fica a explicação). Soube que a “Análise de Informação” continuou, por mais alguns anos.

Ontem, o José Silva Pinto, contactou-me, para refrescar a memória sobre um pormenor desses tempos. Lembrei-me de recordar hoje estes episódios da nossa aventura comum. Que ajudou a cimentar a nossa amizade.

2 comentários:

Flor disse...

Li com interesse.

7ze disse...

Excelentíssimo Senhor Embaixador: há imenso tempo que não ria com tanto gosto. Especialmente o trocadilho duplamente saboroso (estamos muitas vezes consigo em contexto gastronómico) com o nome do restaurante. Senti ainda empatia pelo cansaço da carolice inicial que fez o sucesso da iniciativa editorial cuja memória reaviva, pois entre outras situações, comprometi-me em tempos com uma crónica do Grupo de Xadrez de Santarém no jornal regional O Ribatejo, da qual desisti ao fim de seis meses, revendo-me perfeitamente nesse espelho de alma. Fiquei curioso, resolvi fazer pesquisa na net para ver se encontrava algum símile e nada, frustração total. A única coisa relevante que encontrei foi um artigo seu, referindo-o vagamente no contexto da sua amizade com Pedro Moutinho, de 2011, com a qualidade que o distingue e à qual habituou os leitores (julgo que foi um ou dois anos depois que comecei a acompanhar o seu blog, muitas vezes, lamentavelmente e sobretudo por falta de tempo, com uma frequência infra àquela que merece, mas fazendo sempre questão de actualizar a leitura toda). Há coisas que merecem exposição neo-mediática, atendendo à sua qualidade, interesse histórico e muitas mais razões que é dispensável enunciar (com receio de infringir o código de admissibilidade social de um blog nada radical). Por mim, apesar das rígidas normas de originalidade que se impõe a si próprio e que muito valorizo, um dia destes, perante a angústia da página em branco, tem o meu beneplácito para reciclar um pequeno excerto em atenção aos seus leitores (presumo que tenha, se não todos, alguns números desses três meses iniciais, no obsoleto formato papel), aperitivo que desperte o apetite para um forward to past. Com tantas teses que por aí polulam (vou evitar adjectivos para classificar a academia) será que ninguém se interessa pelo assunto e se dá a esse trabalho de transcrever, correndo o procedimento simples de reconhecimento óptico de carateres sobre as imagens? Há pelo menos um subscritor. Muito obrigado!

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