Ainda sou do tempo em que na rua Alexandre Herculano, quando já nos aproximávamos da Liberdade (reconheço que esta figura ambígua de retórica só me saiu assim-assim), existia uma pequena livraria, a Ática, que editava e vendia, com capa branca brilhante, a poesia de Fernando Pessoa. Descia-se um ou dois degraus, para entrar num espaço esconso. Era ali, nos finais desses anos 60, que jazia, pouco procurado, ao que me lembro, o essencial da glória editorial de Pessoa.
Fernando Pessoa de há muito que não era um desconhecido,longe disso. Na imprensa, no mundo académico e na lusofilia letrada, a sua genialidade estava bem consagrada. Isso não impedia, contudo, lá por Paris, que uma figura como Roland Barthes ainda achasse, poucos anos antes, que a obra de Pessoa tinha uma qualidade que a punha a par da de alguns seus contemporâneos da poesia portuguesa, de que ele, aliás,possuía boas referências - e citava, como exemplos, nomes como Álvaro de Campos, Bernardo Soares ou Ricardo Reis... A heteronímia ainda não viajava bem.
Se o Pessoa poeta, com muita obra por descobrir lá no célebre baú, já deslumbrava e muito quem o lia, a verdade é que o Pessoa objeto não tinha ainda nascido: a sua imagem de escriturário míope, a descer o Chiado de gabardine, ainda não passara a azulejo ou à estatuária turística, rivalizando com Santo António ou as sardinhas. E claro, não tomara ainda assento etéreo e metálico no alto da Garrett.
Tudo mudou, em poucas décadas. Pessoa entrou na moda. E de que maneira! Há hoje Pessoa por todo o lado, nesta que é, cada vez mais, a sua cidade. Desconfio que deve mesmo haver quem o leia!
Por isso, na Lisboa “pessoísta” (“pessoana” é uma outra coisa mais séria) como aquela em que estávamos a viver, nesse ano de 2013, não estranhei que alguém, um dia, me telefonasse a convidar para jantar num restaurante com o nome de Pessoa. Mas logo percebi que era uma indesculpável ignorância minha: o espaço tinha, já então, nada mais nada menos do que 164 anos!
O convite era curioso: uma associação de jovens queria ouvir-me falar sobre os lugares perdidos da Lisboa do convívio público - os restaurantes, os cafés, os bares.
Não sou totalmente inocente nesta ideia que se criou de eu ser um epicurista obsessivo. Escrever frequentemente sobre restaurantes e comidas, ser frequentador público de um bar de culto, contar em blogues e artigos historietas sobre ocasiões de convívio lúdico, em vários lugares, tudo isso deixa marcase alguma fama - e, vá lá, confesso, um certo proveito. Como costuma dizer um amigo meu: “O que te vale é teres um sólido currículo profissional. Se assim não fosse, estavas liquidado!” Se calhar, ele tem alguma razão.
O restaurante Pessoa, o tal que eu culposamente não conhecia,ficava (já não fica, porque fechou, entretanto) na rua dos Douradores, numa ampla sobreloja. Inquiri se, por um acaso,Fernando Pessoa podia ter alguma coisa a ver com o local. Não e sim, foi a resposta.
Claro que, ao tempo em que o restaurante fora criado, Fernando Pessoa ainda não era ninguém e o senhor Pessoa,que seguramente dera o nome à casa, só por milagre o tocava em linha familiar. Mas sim porque, ao que rezava a história e a biografia feita oficial, o poeta seria um frequentador habitual daquela que então se chamava “Antiga Casa Pessoa”. Ou não tivesse Bernardo Soares deixado registado: “Penso às vezes que nunca sahirei da Rua dos Douradores. E isto escripto então parece-me a eternidade”. A verdade, histórica e biográfica, faz-se destes pedaços de fantasia.
Voltemos à charla. Nela, eu faria par, foi-me dito, com um olissipógrafo que só conhecia de nome e de escrita, José Sarmento de Matos.
Aí, confesso, assustei-me um pouco. O que é que eu podia dizer, com alguma valia, ao pé de alguém que conhecia a cidade e a sua história de trás para a frente? Imaginei-me a fazer “uma triste figura”, uma expressão que trazia da infância, que o meu pai repetia muito, quase sempre acompanhada de um episódio que nos fazia rir, a propósito de alguém que fora apanhado numa sarilhada a cuja altura não tinha estado.
E lá fui eu, numa noite, para o Pessoa, com uma sala cheia de gente na casa dos vinte e trinta anos. Fui então apresentado ao José Sarmento de Matos, com quem logo esclareci as minhas limitações. Disse que apenas me propunha falar, num modo impressionista e muito pouco rigoroso, sobre o papel de socialização que alguns lugares da Lisboa, dos anos 60 e 70,tinham constituído para a minha geração. Abordaria, disse, com historietas pessoais à mistura, alguns desse refúgios da solidão, que era o que os cafés representaram, para quem, como eu, caíra algo desamparado na cidade grande. É que eu devia muito a esses espaços, havia conhecido por lá meio mundo, tinha assistido por ali a alguns episódios que achavacuriosos. Devia-lhes, assim, um gesto de memória. (Quando temos de justificar a razão por que não nos calamos, dizemos coisas deste género, já percebi há muito!)
O José Sarmento de Matos - o Zé, como passarei a referi-lo e logo perceberão porquê - adiantou que a sua abordagem seria algo diferente, começando nos lugares públicos de comes e bebes do século XVIII, até apurar o objeto da sua fala para os cafés do século XIX e início do século XX, referindo a sua importância na política e na literatura. “Un vaste programme”, reagi eu. E ele, com um sorriso: “Ah! Você conhece a expressão do De Gaulle!” (Vá lá! Tinha colhido uma coincidência sossegante).
Se eu estava já em séria dúvida sobre a valia do meu pobre testemunho, a perspetiva de me confrontar com a riqueza potencial daquela prestação deixou-me, antecipadamente, de rastos. Mas, pronto, não havia recuo, lá fomos jantar e, depois, viria a conversa. E logo se veria!
O Zé não desiludiu, claro. Fez uma intervenção magnífica, culta, bem humorada, com episódios e notas com imensa graça. Deixou, na conversa, coisas de arte, de literatura, até de arquitetura.
Um cavalheiro, já de uma certa idade, sentado sozinho numa mesa, que contrastava visivelmente com todo aquele ambiente jovem à nossa volta, fez-lhe algumas perguntas, ou comentou qualquer coisa, já não recordo bem, sobre a Lisboa dos cafés ao virar dos séculos. Falava do que sabia e, de forma evidente, sabia do que falava. No final, apresentou-se: era o arquiteto Campos Matos, talvez a pessoa que, em Portugal, mais conhece a obra, e tudo o que está à sua volta, de Eça de Queirós. Queirosiano amador, eu tinha pelas estantes muito daquilo que ele tinha escrito e organizado. E o Zé, claro, esteve bem à altura do interlocutor.
E eu? Bom, lá deixei as notas que trazia, a arriscar a “triste figura”, embora me digam que escapei a ela. Falei de alguns restaurantes (vício meu antigo) que, ali pela Baixa, onde estávamos, tinham entretanto desaparecido, do Oriental ao Múni e outros mais, da cozinha galega dos funcionários às mesas de fim de semana das famílias. Toquei no mundo dos bares, mais de ouvido do que de prática, do Lorde ao velho Belcanto, do Nina aos outros tempos da Tágide e mais poisos do copo, muitas vezes com “pequenas” tarifadas à mistura.
Mas concentrei-me mais nos cafés históricos onde tinha ainda bilharado, como o Palladium ou o Martinho (o antigo, não o da Arcada), outros onde tinha metido o nariz da curiosidade, como o Gelo dos surrealistas ou a Smarta de outras escritas. Mas também o Aviz dos sportinguistas e dos fascistas, porque, às vezes, mas não todas, essas dimensões se confundiam. A minha Lisboa geográfica preferida era, contudo, outra. Falei do Canas e do Értilas (que ninguém ali desconfiava ser um anagrama de Salitre), porque tinha (e tenho) Campo de Ourique como terreno de estimação. Mas era nas Avenidas Novas que eu assentava arraiais com mais frequência. De início, na Granfina e no Nova Iorque, ou, mais acima, no Luanda e na Suprema, muito pouco no Vává, alguma coisa no Trevi, no Londres ou na Mexicana, com descidas depois ao Colonial, já a caminho da Baixa. E, com mais persistência, no Monumental e, em especial, no Montecarlo. E tantos outros, de que caraterizei as “faunas”, algumas tertúlias, frequentadores mais ou menos conhecidos.
A conversa abriu-se. Afinal, com a idade próxima a ajudar, o Zé “entrou” por esses cafés comigo, começamos a cruzar nomes e histórias e, de repente, estávamos a perceber a existência de uma identidade geracional. A noite acabou divertidíssima, connosco a recortar algumas figuras da Lisboa desses tempos, embora nem sempre no mesmo registo de convivência.
O Zé Sarmento de Matos passou, depois dessa noite, a ser um amigo. Voltariamos a cruzar-nos, por alguns anos com uma regularidade quase semanal, numa tertúlia jantante muito divertida, numa tasca de Campo de Ourique, onde, curiosamente, o número de mulheres suplantou sempre o dos homens. Aí comemorámos, numa noite imensa de gente e boa disposição, os 70 anos do Zé. Ele viria a desaparecer, tempos depois.
Há dias, ao olhar uma estante, redescobri a extraordinária “A Invenção de Lisboa” do José Sarmento de Matos. Uma história amorosa da sua cidade. Recomendo vivamente que leiam!
Comecei este texto falando de Fernando Pessoa, acabo a falar do biógrafo da sua cidade. Ambos nasceram e morreram em Lisboa. Isto anda tudo ligado, dizia alguém da minha terra,que também escrevia e era poeta, que andava muito por bares, restaurantes e cafés, que se chamou Eduardo Guerra Carneiro,que era um amante de Lisboa e que, tal como Pessoa e o Zé Sarmento de Matos, também já lá vai.
2 comentários:
Fernando Pessoa, antes de ir morar para o Largo de São Carlos, morou na Rua dos Douradores. Daí a sua frequência ao restaurante "Antiga Casa Pessoa", que nada teve a ver, como foi dito, com o Pessoa.
É verdade que Eduardo Guerra Carneiro andou pela vilarealense Setentrião com Antóno Cabral e Eurico de Figueiredo, entre outros, mas não era verdadeiramente da sua terra porque não nasceu na Bila. Ele era de Tchabes!
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