quarta-feira, dezembro 09, 2020

Vergonha e pânico


Senti vergonha, no caso de Tancos. Senti vergonha ao constatar que uma instalação militar portuguesa, com paióis de armamento e explosivos, instrumentos ideais para terrorismo e delinquência, esteve à mão de semear de uns gatunos de trazer por casa e que autoridades do meu país entraram, depois, numa ridícula competição clandestina de competências sobre quem devia tomar conta da aferição criminal daquela indignidade. Que tristeza foi ver Portugal a ter de explicar, lá fora, na Nato, aos parceiros, que não era grave, tudo se iria remediar...

Há muitos anos, já havia sentido vergonha – vergonha maior, porque estava ao tempo no governo - ao constatar que uma querela, envolvendo governantes, deputados e jornalistas, tinha fragilizado fortemente os nossos serviços de informação, pondo em causa a segurança física de operacionais e cobrindo-nos de ridículo internacional, de que ainda hoje – para quem não saiba! – a imagem de Portugal não se recompôs.

Sinto hoje vergonha quando constato a complacência objetiva, por muito disfarçada que seja, perante atos de racismo e de violência que, ciclicamente, teimam em manchar a imagem da nossa polícia, transformando uma esquadra, que deve ser um espaço de segurança, num local perigoso para a integridade de alguns – quer se trate de bandidos ou de meros suspeitos.

Contudo, nada me envergonhou mais, devo dizê-lo, nos últimos anos, do que o ato que terá sido cometido por uns sujeitos que, utilizando a autoridade que o Estado lhes havia conferido, assassinaram, bárbara e cobardemente, um cidadão estrangeiro que estava confiado à sua guarda - à guarda de forças policiais que supostamente estão especialmente treinadas para lidar com casos deste tipo.

Passamos anos a orgulharmo-nos por louvores que o país recebe, lá por fora, pelo humanismo das nossas políticas de acolhimento de estrangeiros e refugiados, para depois, por falta de liderança e de capacidade para separar, a tempo e horas, as “maçãs podres” do resto, ocorrerem situações destas. E, sempre, ao lado da decisão para clarificar rapidamente as coisas e tirar consequências exemplares, fica a ideia de haver um arrastar corporativo de pés, no fundo, uma cobardia institucional.

Um “botão de pânico” – que todos imaginamos que, se tivesse existido ao tempo do assassinato do cidadão ucraniano, seria por este “facilmente” utilizável ... – começa a ser necessário para o cidadão comum, como forma de poder reagir perante o espetáculo que lhe é proporcionado por algumas das suas instituições.

9 comentários:

Olindo Iglesias disse...

As repartições de Finanças também vão ter um botão de pânico?!

Anónimo disse...

E continuamos sem ver os tipos do SEF serem acusados de xenobofia, sequer. A vítima era branca... E continuamos sem ver as associações antirracistas e pró-imigrantes sairem à rua por causa deste infeliz. A vítima era branca...


Mas, olhe, ainda bem que refere o terrorismo. Sabia que há um grupo de indivíduos que anda na Wikipedia em português a patrulhar as páginas relativas a organizações terroristas para impedir que elas sejam denominadas como tal? Leu bem. Se alguém editar a página das FP-25, da ETA, do IRA, das Brigadas Vermelhas, do Baader-Meinhoff, seja que for e substituir um dos vários eufemismos usados por "terrorista", imediatamente a alteração é revertida e nós somos acusados de "propaganda política e vandalismo", até sermos bloqueados na Wikipedia.

Então, é assim:

FP-25 - "organização armada clandestina"
ETA - "organização nacionalista basca armada"
IRA - "conjunto de diversos grupos paramilitares"
Brigadas Vermelhas - "organização paramilitar de guerrilha"
Baader-Meinhoff - "organização guerrilheira"
Al-Qaeda - "organização fundamentalista islâmica"
Daesh - "organização jihadista islamita"


Já o Breivik - por não ser de esquerda nem muçulmano -, está referido como "terrorista cristão".

Isto mete-me vergonha, também. Saber que há estupores extremistas que se dedicam com afinco a branquear o terrorismo de esquerda/muçulmano.

Bmonteiro disse...

Pequeno contributo de não vergonha:
A) «Senti vergonha, no caso de Tancos»
Quando ninguém sentiu vergonha: os ministros da Defesa e ajudantes SE, os Chefes de Estado-Maior do Exército, os deputados da Comissão Parlamentar de Defesa.
Desde 2004, com o final do SMO e o no pasa nada regimental.
Encurta-se o OE/MDN, que o poder de encaixe dos oficiais tudo permite,
desde que rareando os soldados e cabos, a rotina diária, estatuto e fim de mês, se vão mantendo.
B) «querela, envolvendo governantes, deputados e jornalistas, tinha fragilizado fortemente os nossos serviços de informação»
Quando um obscuro oficial general meteu os pés, e depois em modo Maquiavel, o CEM lhe ofereceu as três estrelas de prenda, pisando um dos seus pares-atitude de meio-político?
C) «O botão do MAI» O ridículo, assentou arraiais no MAI.
Comprova a falta de confiança nos agentes, incapacidade de mudar a sua formação e conduta, a saber, a demissão, da responsabilidade, de dois detentores do poder: a Sra Directora do SEF e o Exmo Ministro do sector. Que estranho poder, relações ou simpatias, protege a Sra do SEF?
Nos tempos da PIDE/DGS, havia casos deste género. Agora, resta-nos uma esperança: a Imprensa, os OCS. Deus morreu em Lisboa Texas.
Barroca Monteiro

Obelix disse...

Que pena a concordância estar limitada a 100%

Joaquim de Freitas disse...

Senhor Embaixador:

« Uns sujeitos que, utilizando a autoridade que o Estado lhes havia conferido, assassinaram, bárbara e cobardemente, um cidadão estrangeiro que estava confiado à sua guarda –“.

Sei que o Senhor conhece muito bem este país, no qual vivo há mais de meio século. Mas sabe, as suas palavras do parágrafo mais acima, podem servir para ilustrar o que se passa neste doce país de França, em relação não só aos estrangeiros migrantes, como esse pobre ucraniano, mas mesmo para os franceses mesmo.

Desde há dois ou três anos, sob governos ditos democráticos, as vitimas são os coletes amarelos e simples manifestantes que não aceitam o artigo n°24, dito de segurança pública, que quer esconder os rostos dos mesmos massacradores de cá, que o Senhor cita. Os migrantes são vitimas de danos colaterais;

Os nossos migrantes, e mesmo cidadãos franceses, que provavelmente nunca serão capazes de se apropriar a canção de Charles Trenet, "Douce France”, doux pays de mon enfance " porque a Douce France está a desaparecer.

Abandonámo-nos ao gozo consumista e permitimos que uma pequena oligarquia tomasse todos os poderes, selasse a nossa impotência e destruísse e pilhasse o nosso belo país sob o pretexto de o adaptar à globalização. A níveis diferentes, é a mesma coisa noutros países.

A desordem, a agitação, a revolta, a guerra ameaçam. O mundo está em vias de ser recomposto. O Ocidente está a perder a hegemonia. A sociedade é abalada pelas ambições devorantes e desordenadas de uma oligarquia globalizada disposta a fazer qualquer coisa para aumentar os seus poderes e lucros. Ou, pelo menos, manter os privilégios actuais.

Assim vemos todos os dias, um poder implacável ignorar as mais legítimas exigências sociais, suprimir no sangue os protestos, reprimir as liberdades, roubar a propriedade pública, reescrever a nossa história nacional e criar uma espécie de ditadura policial.

Esta instituição sádica que só quer mostrar quem é o mestre para que ninguém pense em se revoltar.

aamgvieira disse...

O seu texto é excelente ! Sou a fvor do SM obrigatório, uma escola de civismo e disciplina.

Tony disse...

Nem mais, Sr. Embaixador. Excelente texto. Diz tudo!. Já agora, só para lembrar ainda, das mortes dos saudáveis rapazes do curso de Comandos, às mãos, de alguns frustrados e prepotentes, Oficiais subalternos.

José Figueiredo disse...

Sim, a morte do cidadão ucraniano é uma ignomínia e uma vergonha para o nosso país.
José Figueiredo

Carlos disse...

Subscrevo a indignação, especialmente em relação ao assassinato do cidadão ucraniano e exprimi em comentários no Público - um dos jornais a fazer repetidamente eco desta ignomínia e da aparente passividade das autoridades. E comentei com várias pessoas muito antes de se tornar a notícia do dia ... com 10 meses de atraso. Talvez porque estou habituado a passar fronteiras e percebo o sentimento de ansiedade que nos assalta quando estamos perante uma autoridade que parece imbuída dum poder quase discricionário sobre nós.

Permita-me acrescentar que para além do assassinato em si o mais chocante foi a tentativa de encobrimento que só não passou graças ao brio do médico legista e a uma chamada anónima. Nas várias ocasiões em que lidei com o SEF sempre fui atendo com cortesia e urbanidade mas fico perplexo ao escutar que nem os seguranças nem o enfermeiro de serviço se sentiram capazes de denunciar o vergonhoso acto que estavam a testemunhar e foi preciso recorrer ao anonimato para dar a conhecer o que estava a vista de todos.

Este é um problema que está para além dos botões de pânico e dos procedimentos - é uma questão de ética e decência - e aparentemente trata-se de algo que foi subvalorizado na formação dos intervenientes neste caso.

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