O Sousa não gostava de mim. Notava-se, à légua, há muito. O Sousa era, julgo, o contínuo mais velho do liceu. Não tinha o estilo futebolístico do Rocha, nem o ar desengonçado do Marques, nem o jeito comercial do Carminé. Mas cabia-lhe essa função inigualável de prestígio que era a gestão da entrada principal do liceu. Essa era uma zona que, por definição, nos era quase interdita, reservada aos trânsito dos professores ou para o cerimonioso acesso à secretaria, onde, atrás do balcão, nos olhava, com ar severo, o senhor Agarez. Contudo, num certo ano, por algum tempo, creio que por virtude de obras de construção de uma das alas do edifício, a entrada de todos os alunos passou a ser feita por esse átrio central, o tal que cabia ao Sousa controlar. (O Alfredo Branco, de bata branca, nesse 1° de Dezembro, cantou, no palco do Teatro Avenida, para a posteridade: “A entrada pró liceu / desta linda capital / já é feita como dantes / pela porta principal. / Por causa das confusões / p’ra evitar mais maçadas / à entrada para o átrio / está o código das estradas”). Eu tinha, confesso que por vício antigo, a mania de chatear o Sousa. Não me perguntem porquê! Nem como! Inventava coisas para o atazanar. Um dia, caiu neve na cidade. Como, ao que me dizem, hoje aconteceu. (Nesses tempos, nevava mais em Vila Real, acho eu). Desde a avenida, já desde o pelourinho (que, à época, estava em frente à Câmara, para quem não saiba), todos chegámos ao liceu, nessa manhã, a atirar bolas de neve uns aos outros. Nesse dia, sei lá bem porquê, entrei no átrio com uma bola de neve na mão. E, da porta grande da entrada, por sobre a cabeça de quem estava no átrio, lancei essa bola de neve, em percurso circular, jogando com a lei de Newton. E ela foi aterrar onde? Num olho do Sousa. Esquerdo? Direito? Tenho boa memória, mas nem tanto! Quase seis décadas depois, ainda me pergunto: terá sido de propósito? Era mesmo num olho do Sousa que eu queria acertar? Esquerdo? Direito? Não sei. Mas, se foi, a minha pontaria, há que reconhecer, foi excelente, magnífica, única, certeira, impecável. Melhor era impossível, se acaso foi (foi?) deliberado. Mas, repito, ainda hoje não tenho a certeza e isso, como é óbvio, absolve-me, em absoluto, de quaisquer culpas. O Sousa, recordo, recuou, sob o impacto do pedação de neve prensada saído da minha mão e, desestabilizado, foi visto a chocar contra uma daquelas vitrines envidraçadas nas quais, em manhãs de angústia, surgiam afixadas as nossa notas. Eu, imagino agora!, intimamente impante pelo indisputável êxito do arremesso, mas ao mesmo tempo temeroso de ver consagrado em fúria o meu rigor de precisão no alvo, ter-me-ei esgueirado para dentro do liceu, a caminho das aulas, contando (creio!) que ninguém bufasse ao Sousa que fora eu o autor de tão apurado, porém genial, feito. Mas alguém disse, porque a cidade, como bem sabemos, nunca foi de total confiança! E, ao final da tarde desse dia, no topo da escadas da minha casa, com quem é que eu deparei? Com a figura pesada e sombria do Sousa. A um oportunista “boa tarde, senhor Sousa!”, não obtive réstia de resposta. Tive logo um mau pressentimento. E tinha razão. O Sousa tinha ido a minha casa, apurei logo por uma criada, para falar com o meu pai. E falou. Um quarto de hora mais tarde, lá levei eu um bufardo na cara, dado pelo meu progenitor, como paga direta pela minha excecional pontaria matinal. Era assim a lógica das coisas nesse tempo. (E, valha a verdade, por muito que a pedagogia contemporânea me queira contrariar, essa bofetada não me traumatizou nada. Ou terá traumatizado? Por que razão lhes estou a contar isto agora?). O Sousa, confirmava-se, não gostava de mim. E eu, vou ser sincero, não gostava nada do Sousa. Pronto! Estamos pagos!
sábado, dezembro 05, 2020
O Sousa
O Sousa não gostava de mim. Notava-se, à légua, há muito. O Sousa era, julgo, o contínuo mais velho do liceu. Não tinha o estilo futebolístico do Rocha, nem o ar desengonçado do Marques, nem o jeito comercial do Carminé. Mas cabia-lhe essa função inigualável de prestígio que era a gestão da entrada principal do liceu. Essa era uma zona que, por definição, nos era quase interdita, reservada aos trânsito dos professores ou para o cerimonioso acesso à secretaria, onde, atrás do balcão, nos olhava, com ar severo, o senhor Agarez. Contudo, num certo ano, por algum tempo, creio que por virtude de obras de construção de uma das alas do edifício, a entrada de todos os alunos passou a ser feita por esse átrio central, o tal que cabia ao Sousa controlar. (O Alfredo Branco, de bata branca, nesse 1° de Dezembro, cantou, no palco do Teatro Avenida, para a posteridade: “A entrada pró liceu / desta linda capital / já é feita como dantes / pela porta principal. / Por causa das confusões / p’ra evitar mais maçadas / à entrada para o átrio / está o código das estradas”). Eu tinha, confesso que por vício antigo, a mania de chatear o Sousa. Não me perguntem porquê! Nem como! Inventava coisas para o atazanar. Um dia, caiu neve na cidade. Como, ao que me dizem, hoje aconteceu. (Nesses tempos, nevava mais em Vila Real, acho eu). Desde a avenida, já desde o pelourinho (que, à época, estava em frente à Câmara, para quem não saiba), todos chegámos ao liceu, nessa manhã, a atirar bolas de neve uns aos outros. Nesse dia, sei lá bem porquê, entrei no átrio com uma bola de neve na mão. E, da porta grande da entrada, por sobre a cabeça de quem estava no átrio, lancei essa bola de neve, em percurso circular, jogando com a lei de Newton. E ela foi aterrar onde? Num olho do Sousa. Esquerdo? Direito? Tenho boa memória, mas nem tanto! Quase seis décadas depois, ainda me pergunto: terá sido de propósito? Era mesmo num olho do Sousa que eu queria acertar? Esquerdo? Direito? Não sei. Mas, se foi, a minha pontaria, há que reconhecer, foi excelente, magnífica, única, certeira, impecável. Melhor era impossível, se acaso foi (foi?) deliberado. Mas, repito, ainda hoje não tenho a certeza e isso, como é óbvio, absolve-me, em absoluto, de quaisquer culpas. O Sousa, recordo, recuou, sob o impacto do pedação de neve prensada saído da minha mão e, desestabilizado, foi visto a chocar contra uma daquelas vitrines envidraçadas nas quais, em manhãs de angústia, surgiam afixadas as nossa notas. Eu, imagino agora!, intimamente impante pelo indisputável êxito do arremesso, mas ao mesmo tempo temeroso de ver consagrado em fúria o meu rigor de precisão no alvo, ter-me-ei esgueirado para dentro do liceu, a caminho das aulas, contando (creio!) que ninguém bufasse ao Sousa que fora eu o autor de tão apurado, porém genial, feito. Mas alguém disse, porque a cidade, como bem sabemos, nunca foi de total confiança! E, ao final da tarde desse dia, no topo da escadas da minha casa, com quem é que eu deparei? Com a figura pesada e sombria do Sousa. A um oportunista “boa tarde, senhor Sousa!”, não obtive réstia de resposta. Tive logo um mau pressentimento. E tinha razão. O Sousa tinha ido a minha casa, apurei logo por uma criada, para falar com o meu pai. E falou. Um quarto de hora mais tarde, lá levei eu um bufardo na cara, dado pelo meu progenitor, como paga direta pela minha excecional pontaria matinal. Era assim a lógica das coisas nesse tempo. (E, valha a verdade, por muito que a pedagogia contemporânea me queira contrariar, essa bofetada não me traumatizou nada. Ou terá traumatizado? Por que razão lhes estou a contar isto agora?). O Sousa, confirmava-se, não gostava de mim. E eu, vou ser sincero, não gostava nada do Sousa. Pronto! Estamos pagos!
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10 comentários:
Bom dia
Está história levou-me aos meus tempos de liceu na Guarda. Quando nevava havia batalhas campais sobretudo entre alunos e alunas. Um deles conhecido pela malvadez gostava de amassar neve á volta de um calhau para "elas verem como é"! Não me lembro se fui alvo ou não dessas bolas de neve com recheio mas recordo que achava injusto por morar no largo do cinema com a estátua do poeta falecido na Guarda.
"Batem leve levemente
Como quem chama por mim"...
O que verdade é que ainda hoje gosto de neve mas o poeta nunca me acudiu.
Tenha um bom fim de semana.
Saudades
Adorei.Na minha escola era o Sr.Americo a quem o meu pai dava uns escudos para nós espiar.
E tanta tareia levou o meu irmão mais velho porque o senhor Américo não deixava passar nada.
Para todos os Sousas e Americos que a terra lhes seja leve como a serra do Marão.
Bom fim semana
Maria Isabel
Aprendíamos, sobre a vida e sobre as pessoas, lições que não se esquecem. Foi mau? foi bom?
Apenas sei que não adormecíamos, entre nós criticávamos tudo, o sentido crítico apurava-se, ríamos muito, e acreditávamos que um dia as coisas haviam de mudar.
Imagino, se calhar errando, que o seu Pai lhe deu o estalo porque era a pedagogia de então, e o respeito pelos mais velhos indiscutível, e muito maior se no desempenho de funções que se consideravam mais modesta, e pouco depois riria para dentro, porque compreendia bem a "ordem natural" destes desagravos! Seria assim?
Fui professora durante 35 anos, conheci muitas "pedagogias". Melhores? piores? eu sei lá! Mas sempre lhe digo que, apesar de tudo, gosto muito de recordar aqueles tempos de escola, contemporâneos dos seus, e traumatismos, que eu me lembre, não me deixaram(nunca fiz psicanálise nem psicoterapia, nem nada disso, como tal a gente nunca sabe, não é verdade?).Enfim, todos tivemos o nosso Sousa, e enfrentamo-lo como pudemos. Medimos forças, troçamos dele, perdemos, ganhámos... Foi bom tê-lo!
Nestes tempos insalubres, saúde e paciência para todos, muito especialmente para si, que nos acolhe neste espaço, e para toda a sua família que, possivelmente, tal como a minha, neste Natal estará dispersa.
Margarida Palma
Haverá ainda tempo de reconciliação com o Sr. Sousa? Talvez já não ...
Já não, reparo agora que seria o contínuo mais velho do liceu
Gostei de ler e sorri!
Estive a pensar e em toda a minha vida de estudante não tenho recordações, nem boas nem más das "contínuas". Tive sim um encontro nada simpático no primeiro dia da escola primária em que a empregada que me levou até á sala da Professora Rosalina foi dizendo-me pelo caminho que eu teria que me comportar muito bem porque senão era levada para o 'quarto dos ratos'. Ela não sabia que eu não tinha medo de ratos ;))
Este post fez-me recuar aos meus tempos de aluno do LNVR (como então se chamava).Pelo que já me disseste andavas em turma dois ou três anos antes de mim.
Também não ia à bola com o Soiza (a corruptela do nome do homem que muitos de nós usávamos). Ele era uma espécie de lugar-tenente do reitor.
Diziam as más línguas que gostava bastante da pinga. Corria até uma história (não sei se verídica) sobre essa inclinação. Havia um trabalho prático de Quimica (não era a tua área pois eras de Letras) que consistia na destilação alcoólica do vinho. Então, o professor, uns dias antes do trabalho pediu aos alunos que tivessem vinho em casa que trouxessem uma garrafinha para ele ver qual era o mais adequado à experiência. Conta então a história que o profe e o Souza se encerraram no laboratório e saíram de lá uns largos minutos depois a tropeçar nos próprios pés pois as "pomadas " eram de boa qualidade como aliás era apanágio daquelas bandas.
Dos contínuos desse tempo o mais fixe era o Rocha que dado o seu passado futebolístico fechava os olhos às proibidas jogatanas de bola no coberto do recreio. 5 minutos antes de tocar para a saída abria o portão ,o que era equivalente ao apito final do árbitro. Por vezes entrávamos em auto-concedido tempo de compensação e o Rocha tinha de nos advertir que se o jogo não parasse tinha de nos confiscar o esférico.
O Carminé era um oprtunista sempre a curvar a espinha aos professores mas também sempre pronto a cortar-nos as asas.
Também recordo a figura grave do Senhor Agarez que escreveu o meu diploma de final do curso de Liceu e que morava na rua Camilo Castelo Branco numa casa ao lado da qual também morei até aos seis anos. A sua filha, Hercília que era minha amiga e contemporânea no Liceu faz parte do grupo de ex-alunos que se reunem anualmente para recordarem os mais de cinquenta anos que já passaram sobre a nossa contemporaneidade académica.
E esse episódio das bolas de neve também o vivi (não sei se foi coincidente com o que descreves). A malta dedatou a lançar bolas para a sala dos professores que ficava do lado direito da porta principal e onde as professoras mais novas entraram na festa,abrindo as janelas A festa acabou quando o temido "Chega-me isso "(ou Chamamiço por simplificação),professor de algo parecido com matemática, entrou aos berros na sala e mandou fechar as janelas.
Que história deliciosa! - é caso para perguntar, quem nunca...?
Olhe que a trajetória percorrida pela bola de neve terá sido mais parabólica do que propriamente circular, o que só vem evidenciar ainda mais a excelência do seu lançamento...
Heitor
É tão bom recordar estes episódios com antigos colegas, não é? Já a mesma sorte não tiveram muitos que frequentaram liceus das antigas colónias. É que perderam de vista muitos colegas que ou não regressaram aqui ao torrão de areia ou foram para paragens incertas. Gente que o regime da altura se encarregou ( por omissão e por ignorância) de mandar ganhar a vida por esse mundo fora. Lá vou vendo um ou outro engenheiro ou médico que foi para a África do Sul, mas o resto perdeu-se em Angolas, Namíbias, Suazilândias, Zimbabwes. Conhecem essas terras ou não vos importa?
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