Era um tipo grande, cordial. Eu tinha acabado de estacionar o carro, numa vaga milagrosa, numa das Avenidas Novas. Preparava-me para ir a uma livraria. Cruzou-se comigo, quando eu já atravessava a rua, lançando-me um amável "Boas Festas, embaixador!". O facto de o não ter identificado não garantia que o não conhecesse, de algures. Mas a cara, de facto, não me dizia nada. Retorqui, agradecendo e retribuindo os votos. Já quase o tinha esquecido quando, do outro lado da rua, ouvi: "Embaixador! Tenho uma prenda para si!". Era ele. Voltou a atravessar a rua na minha direção e, enquanto se encaminhava para um carro que estava próximo do meu, perguntou: "Que número calça?". Perplexo e um pouco contrariado lá lhe disse. ("Deve ser de alguma empresa, é com certeza pessoa com quem me terei cruzado numa feira ou numa embaixada", pensei para comigo. "Se calhar, são sapatos! Só me faltava mais esta!"). Ele abriu a mala do carro e tirou um saco de plástico transparente, dentre vários que lá estavam, com meias de diversas cores (não eram feias, mas algumas das cores nunca as usaria). Continuava a falar, não se calava, agora sobre a qualidade do produto, sobre a quantidade de algodão, sobre o facto daquelas meias não terem costura. Confirmou: "É mesmo a sua medida! Que sorte! Onde está o seu carro?". Um pouco aturdido, lá atravessei a rua outra vez, coloquei a saca de meias sobre um dos banco e balbuciei um agradecimento, cumprimentando-o, tentando libertar-me. Fui-me afastando, pelo passeio adiante. Sentia uma sensação estranha, de algum incómodo, indefinível. Curiosamente, como se fosse na mesma direção, ele ia-me acompanhando pela faixa de rodagem, com os carros estacionados de permeio, continuando, por cima dos carros esstacionados, a dizer coisas sobre as meias, sobre as fábricas, nem sei bem o quê. Algumas pessoas com quem nos cruzávamos deviam estranhar aquele monólogo em voz alta, comigo calado e morto por me ver livre do homem. Por instantes, ele dava ares de que ia afastar-se, mas logo depois aproximava-se, como que ziguezagueando, no seu andar largo e algo desengonçado. Já estávamos aí a uns vinte metros do meu carro quando ele perguntou: "Sabe quanto estão a pedir por aquelas meias nas lojas? Diga um número?". Eu sabia lá! Eu nem sabia quantas meias o saco tinha (eram dez pares). Ele sabia: "Oitenta euros! Imagine! Bom, para um produto daquela qualidade, também se justifica...". E continuou a acompanhar-me, agora juntando-se a mim no passeio. "Para o meu amigo, são só vinte euros, claro! Tenho imensa consideração por si, como sabe!" Eu sabia é que tinha acabado de cair no conto do vigário. Pensei para comigo, com a auto-absolvição dos tolos: "É Natal. Isto até teve graça!" Não teve, eu sentia-me pateta, mas incapaz de rumar ao carro, já distante, e devolver o saco das meias ao homem. Parei, abri a carteira e tirei uma nota de vinte euros. Agarrada a ela veio uma nota de cinco. Ele estava atento e, com um sorriso, advertiu, generoso: "Atenção! Esses cinco euros não são meus!" Fui à vida. Quando regressei, meia hora depois, vi-o ao longe encostado a uma parede, a olhar a sombra. Entrei no carro, olhei as meias. Era chinesas. Péssimas! Medida "40-46". Era mesmo a "minha" medida, claro! (Isto passou-se há precisamente seis anos).
terça-feira, dezembro 15, 2020
Negócio da China
Era um tipo grande, cordial. Eu tinha acabado de estacionar o carro, numa vaga milagrosa, numa das Avenidas Novas. Preparava-me para ir a uma livraria. Cruzou-se comigo, quando eu já atravessava a rua, lançando-me um amável "Boas Festas, embaixador!". O facto de o não ter identificado não garantia que o não conhecesse, de algures. Mas a cara, de facto, não me dizia nada. Retorqui, agradecendo e retribuindo os votos. Já quase o tinha esquecido quando, do outro lado da rua, ouvi: "Embaixador! Tenho uma prenda para si!". Era ele. Voltou a atravessar a rua na minha direção e, enquanto se encaminhava para um carro que estava próximo do meu, perguntou: "Que número calça?". Perplexo e um pouco contrariado lá lhe disse. ("Deve ser de alguma empresa, é com certeza pessoa com quem me terei cruzado numa feira ou numa embaixada", pensei para comigo. "Se calhar, são sapatos! Só me faltava mais esta!"). Ele abriu a mala do carro e tirou um saco de plástico transparente, dentre vários que lá estavam, com meias de diversas cores (não eram feias, mas algumas das cores nunca as usaria). Continuava a falar, não se calava, agora sobre a qualidade do produto, sobre a quantidade de algodão, sobre o facto daquelas meias não terem costura. Confirmou: "É mesmo a sua medida! Que sorte! Onde está o seu carro?". Um pouco aturdido, lá atravessei a rua outra vez, coloquei a saca de meias sobre um dos banco e balbuciei um agradecimento, cumprimentando-o, tentando libertar-me. Fui-me afastando, pelo passeio adiante. Sentia uma sensação estranha, de algum incómodo, indefinível. Curiosamente, como se fosse na mesma direção, ele ia-me acompanhando pela faixa de rodagem, com os carros estacionados de permeio, continuando, por cima dos carros esstacionados, a dizer coisas sobre as meias, sobre as fábricas, nem sei bem o quê. Algumas pessoas com quem nos cruzávamos deviam estranhar aquele monólogo em voz alta, comigo calado e morto por me ver livre do homem. Por instantes, ele dava ares de que ia afastar-se, mas logo depois aproximava-se, como que ziguezagueando, no seu andar largo e algo desengonçado. Já estávamos aí a uns vinte metros do meu carro quando ele perguntou: "Sabe quanto estão a pedir por aquelas meias nas lojas? Diga um número?". Eu sabia lá! Eu nem sabia quantas meias o saco tinha (eram dez pares). Ele sabia: "Oitenta euros! Imagine! Bom, para um produto daquela qualidade, também se justifica...". E continuou a acompanhar-me, agora juntando-se a mim no passeio. "Para o meu amigo, são só vinte euros, claro! Tenho imensa consideração por si, como sabe!" Eu sabia é que tinha acabado de cair no conto do vigário. Pensei para comigo, com a auto-absolvição dos tolos: "É Natal. Isto até teve graça!" Não teve, eu sentia-me pateta, mas incapaz de rumar ao carro, já distante, e devolver o saco das meias ao homem. Parei, abri a carteira e tirei uma nota de vinte euros. Agarrada a ela veio uma nota de cinco. Ele estava atento e, com um sorriso, advertiu, generoso: "Atenção! Esses cinco euros não são meus!" Fui à vida. Quando regressei, meia hora depois, vi-o ao longe encostado a uma parede, a olhar a sombra. Entrei no carro, olhei as meias. Era chinesas. Péssimas! Medida "40-46". Era mesmo a "minha" medida, claro! (Isto passou-se há precisamente seis anos).
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6 comentários:
Já muito boa gente caiu nesse conto só que a mercadoria muda. Eles têm cá uma lábia!!
Sr. Embaixador,
conto do vigário ou conto de Natal?!
claro que há outras maneiras mais simpáticas e voluntárias de ajudar o próximo!
Como sempre adoro estas histórias.
Isso mesmo, é Natal.
Este ano que seja, sereno e com todo o cuidado.
Muita saúde, para o ano vai ser melhor
Bom Natal Senhor Embaixador
Maria Isabel
O Sr. Embaixador é mais conhecido, do que o azeite e o vinagre. Até ciganos.
Ah ! Até que enfim ! Francamente, Senhor Embaixador: Muito obrigado por este presente de Natal...Já há tanto tempo que esperava conhecer alguém, que tivesse caído no mesmo conto do vigário …que eu ! Estou agora em boa companhia !
Mas a diferença é enorme: O Senhor ainda ganhou alguns pares de meias! Eu, nada.
As minhas Avenidas Novas situam-se em Roma, naquela rua que sobe paralela às Termas de Caracala, não longe do Fórum Romano…
Tinha passado a manhà em Cassino, na fábrica de jantes da Fiat, e regressei a Roma no fim da tarde. Tinha pensado voltar a subir lá acima, ao Mosteiro célebre, onde tantos tinham morrido em 1944, para desalojar uns tantos alemães que, finalmente não eram muitos…Mas finalmente optei para me aproximar de Fiumiccino e regressei a Roma. Fiz mal, porque o meu voo para Lyon tinha sido anulado e por isso só partiria no dia seguinte. Fui à procura dum hotel. Na recepção, peguei num folheto publicitário e decidi de ir fotografar, mais uma vez, o Fórum.
Passeava ao longo dessa via junto das Termas, o nariz em cima do folheto, quando ouvi que alguém corria atrás de mim…O “cavalheiro” tinha ar respeitável e olhando para o folheto viu que era em francês: “Vous parlez français Monsieur? Oui. Oui. “ Je parle un peu aussi…disse-me ele!
E aqui vai a história: “Se pudesse ajudar-me, agradecia muito. Ontem, passeando com a minha esposa, um bandido passou em “Vespa” e arrancou o saco da minha Esposa. Ela tentou resistir agarrando-se ao saco e foi arrastada durante uns metros, magoando-se bastante. …Está neste momento no Hospital de São João de Latrão. Mas o bandido levou o saco, e com ele os nossos passaportes e o dinheiro, assim como os bilhetes de avião.
Esta noite gostaria de levar algo de comer decente à minha Esposa, porque a comida no Hospital sabe como é…
Não poderia “emprestar-me” algumas liras, por favor; mesmo duas ou três mil, para comprar sanduíches…? Claro que desde que regresse a Dusseldorf envio-lhe o dinheiro. Aqui está o meu cartão. Ainda para mais, amanhã é feriado e o meu consulado está fechado e só na segunda-feira poderei tratar o problema de dinheiro, passaportes e bilhetes de avião.
Tive pena do homem porque tudo era plausível. Bem vestido, exprimindo-se bem, pensei que não arriscava muito “cedendo-lhe” as últimas liras que tinha no bolso. No dia seguinte eu regressava a casa… Encontrei o equivalente de 50 francos da época. O homem confundiu-se em agradecimentos e respondi-lhe em alemão…Ah, o Sr. também fala alemão? Sim. E inglês também. E Português… E Italiano…O raio do homem pôs-se a falar um alemão impecável e também inglês…
Finalmente foi-se com os meus francos…Andei talvez duzentos metros e ouvi-o de novo que me chamava… (O que é que ele quer?) E corria na minha direcção. Olhe, desculpe, gostaria de fazer uma foto do Sr. E fez…E lá se foi embora. Continuei o meu caminho a pensar naqueles malandros de italianos em Vespa, puxadores de sacos das senhoras..;
Passaram algumas semanas, quando arrumando um pouco o meu escritório dei com o cartão do homem das Termas de Caracala. Era fim-de-semana e subitamente pensei: vamos lá a ver se o homem recuperou a esposa em bom estado e se se lembra ainda dos meus francos.. Telefonei-lhe.
O telefone tocava em Dusseldorf, o que era bom sinal. Do outro lado, após a saudação normal, perguntei se era o sr. X…Resposta: Oh mein Gott, mein Gott…O Sr. também anda à procura desse bandido. Recebo todos os dias dezenas de telefonemas…Por favor: vá à polícia, porque esse homem, anda por toda a parte na Europa, e dá me cabo da vida…
(SUITE)
Um dia, de passagem por Dusseldorf, “Die Kleine Paris”!!! a rua sendo muito próxima do meu hotel, passei por lá, para constatar que o numero existia . Toquei à campainha e uma voz respondeu-me : Não, não sou eu… Quando penso,para aumentar o meu despeito, que até me fotografou...Ou talvez nao, porque um burlista é-o até ao fim...
Desde então, graças a este burlista, fiz muitas economias, porque nunca mais cedi à piedade, mesmo se alguns por vezes pagaram por ele…Mas não tive nenhum par de meias…chinesas!
A propósito, Senhor Embaixador, muito obrigado pelo presente e permita que lhe transmita os meus votos de Bom Natal, assim como para a sua família.
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