Em 2013, ao tempo já reformado do serviço ativo, fui oficialmente convidado para ir à Turquia representar Portugal numa conferência e, de caminho, em plena articulação com o nosso embaixador em Ancara, efetuar uma determinada diligência junto das autoridades turcas.
Numa das noites que passei na capital turca, o nosso embaixador teve a gentileza de convidar para jantar um dos responsáveis oficiais que me tinha recebido e um meu velho amigo turco, figura destacada do principal partido da oposição. Ambos se conheciam, embora estivessem em polos políticos opostos.
Viviam-se então dos mais dramáticos momentos do fluxo de refugiados sírios, fugindo da guerra interna nesse país para a Turquia. Os números eram impressionantes e as dificuldades de acomodação desses refugiados eram imensas, com a comunidade internacional pouco presente na ajuda a Ancara, o que era muito ressentido pelos turcos.
Nesse dia, numa conversa havida com um diretor-geral no MNE turco e numa outra na sede do AKP, com o vice-presidente do partido do governo, dei-me conta do fortíssimo impacto político interno do problema, nesse tempo ainda pouco evidente à escala da imprensa mundial.
No jantar, como não podia deixar de ser, a questão veio à baila. E foi curioso constatar que, entre duas figuras que representavam posições políticas tão contrastantes no plano da política interna turca, se verificava uma identidade total de pontos de vista sobre um tema que ontem se tornou candente à escala internacional: a alegada necessidade da Turquia conseguir estabelecer uma “zona tampão” dentro do território sírio.
O argumento, naquele momento, era o controlo do fluxo de refugiados, embora no “não dito” da conversa ficasse claro que a questão curda era verdadeiramente o cenário de fundo, em termos de real objetivo político.
A questão curda é um tema identitário muito forte na Turquia, que atravessa transversalmente a vida política do país. Agora, com os Estados Unidos a deixarem cinicamente à sua sorte os curdos que os tinham ajudado na luta contra o Daesh, com uma Europa inexistente na região, apenas com a Rússia como “broker” do problema, o eterno drama curdo só pode vir a agravar-se.
4 comentários:
Cinicamente é pouco. É mais uma página da história da infâmia
Fernando
É a tal história dos filhos e enteados. Os Curdos merecem a autodeterminação, os catalães, não? Porquê? São coisas...
Dum chefe de estado, o mais poderoso do mundo, que diz coisas destas, como é possível saber como o mundo vai poder escapar ao genocídio de mais um povo, depois do iraquiano?
Depois de multiplicar nos últimos dias os anúncios mais contraditórios sobre uma retirada das forças americanas no norte da Síria, que deixaram o campo aberto para a operação turca, Trump tem comunicação cada vez mais improvisada e errática.
"Os curdos estão lutando pelas suas terras, vocês têm que entender, sem elaborar o seu argumento: "
“ Não nos ajudaram durante a segunda guerra mundial , na Normandia, por exemplo. " "Gastamos muito dinheiro para ajudar os curdos, em muniçoes, armas ou dinheiro." "Dito isto, nós amamos os curdos", concluiu.
Quanto ao destino dos prisioneiros do estado islâmico que estão em risco de escapar das prisões curdas após a retirada dos EUA e da invasão turca, Trump respondeu com o maior descaramento: "eles vão para a Europa. É para lá que eles querem ir. Eles querem ir para casa. Mas a Europa não queria que os devolvamos. Podíamos tê-los devolvido. A Europa poderia tê-los trazido à justiça, eles poderiam ter feito o que quisessem com eles, mas eles não queriam. "
Segundo Fox News, Trump disse que os jihadistas eram "pessoas muito más que deveriam voltar para a Europa." "Dissemos a vários países: gostaríamos que vocês retomem o seu povo. Ninguém quer, eles são maus ",
" Talvez os curdos (...) ou a "Turquia" poderiam "cuidar" de Daesh…. " Fox News acrescenta, citando uma fonte militar, que Trump teria dito, "Deixe os turcos fazê-lo!" em referência aos combatentes detidos na Síria.
Mas, ao mesmo tempo, Trump também advertiu que a Turquia seria atingida com as sanções mais duras "se conduzem a sua ofensiva tão desumanamente quanto possível."
Questionado por um repórter o que ele quis dizer com "desumano", o presidente respondeu de forma igualmente críptica: "bem, nós vamos ter que ver. Terá de ser definido à medida que avançarmos…
Ouvir falar desta maneira o presidente dum país que “napalmizou” “à outrance” o Vietname, e atomizou Hiroshima e Nagasaki, causa calafrios…
E mais uma vez vamos continuar a viver as nossas vidinhas enquanto outros aqui tão perto sofrem a barbárie na pele. Chega a ser surreal. Que espécie...
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