quarta-feira, dezembro 13, 2017

Soares europeu


O Parlamento Europeu vai dar a uma das suas salas o nome de Mário Soares. Nada mais justo. Soares é, a grande distância, o mais insigne dos cultores da ideia europeia em Portugal. Ao aceitar ser deputado europeu, deu uma prova notável desse seu empenhamento.

Quando Jaime Gama me deu a novidade, num dia do primeiro semestre de 1999, caí das nuvens : Mário Soares iria ser o cabeça de lista do Partido Socialista às eleições europeias. Estava já tudo assente entre ele e António Guterres, que passaria a contar com um trunfo importante para o sufrágio. Três anos depois do fim da sua década de Belém, Soares voluntariava-se para uma batalha pela Europa.

Gama pediu-me que falasse com Soares, para o preparar para os debates que iriam seguir-se, procurando garantir que ele não se afastaria da "linha" que o governo Guterres projetava na sua política europeia. 

Convidei Mário Soares para um almoço discreto num restaurante na Madragoa. Expliquei-lhe, com jeito, qual era a minha tarefa. Foi simpático e amigo, como sempre, mas logo concluí que me tinha sido atribuída uma missão impossível: Soares não se deixaria enquadrar. Propus-me preparar-lhe eu próprio um conjunto de fichas temáticas, simplificadas, que refletissem a nossa orientação. Aceitou, de muito bom grado, a ideia. Quando, uma semana depois, lhe enviei o que me tinha dado um imenso trabalho a fazer, telefonou-me de volta, gratíssimo, dizendo que aquilo passaria a ser a sua "Bíblia". Dois dias depois, li na imprensa extratos de uma intervenção sua em Paris : algumas ideias contrariavam abertamente o que vinha na "Bíblia"...

Mário Soares foi sempre um político instintivo e intuitivo, e, as mais das vezes, os factos deram-lhe razão. Isso induzia-lhe uma imensa confiança que o levava a pensar, quase sempre, pela sua própria cabeça. Na Europa, as coisas iriam passar-se da mesma forma. Soares tinha criado uma certa ideia da Europa, das suas linhas tendenciais de evolução desejável, do desiderato mobilizador. Nada o irritava mais do que a tibieza dos burocratas, o peso dos aparelhos, a falta de ousadia, de ambição, de sentido de destino. Em muitas conversas que com ele tive, senti-o descontente com algumas cautelas soberanistas que eu cuidava em ter. Várias vezes me disse que, nas questões europeias se sentia muito mais próximo de Guterres do que de Jaime Gama. Ou de mim. Soares olhava "grande" para a Europa. Eu fui (e sou) sempre um "possibilista".

Quando, em 2002, pedi a Soares um prefácio para o meu livro “Diplomacia Europeia – as instituições, o alargamento e o futuro da União”, a que se voluntariou de imediato, notei que se viu obrigado a distanciar-se ligeiramente nesse texto de algumas das minhas propostas e posições. Mário Soares nunca me achou suficientemente federalista, pelo menos pelos padrões de exigência que ele entendia dever seguir. E tinha razão para pensar assim.

Mário Soares foi um dos portugueses que melhor sentiu o espírito europeu, talvez porque tivesse aprendido que, para um país como o nosso, a palavra Europa é o outro nome da liberdade. Ao honrá-lo, neste que é o ano da sua morte, o Parlamento Europeu tem um gesto de justa gratidão.

2 comentários:

Anónimo disse...

Que alegria! Ė, para mim, uma homenagem bem merecida.
Francisco F. Teixeira

Cícero Catilinária disse...

Nada mais merecido e, já agora, mais uns dias de azia e raiva profunda para Cavaco Silva.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...