segunda-feira, dezembro 11, 2017

Saakashvili


Leio que Mikheil Saakashvili foi detido na Ucrânia, na véspera de encabeçar uma manifestação contra o presidente Petro Poroshenko, que ontem teve lugar em Kiev.

Conheci Saakashvili em 2004, ao tempo em que era presidente da Geórgia. Com os embaixadores russo, americano, francês e italiano junto da OSCE, escolhidos de entre os membros de uma delegação que visitava o país, ao final de uma tarde, fui subitamente informado de que o chefe de Estado nos convidava para jantar. Aperaltámo-nos para a função e, num comboio de viaturas com forte escolta, fomos levados pela noite para o que recordo ser uma espécie de mansão nos arredores de Tbilisi. Até hoje, por mais que tenha procurado, ainda não consegui determinar onde terá sido aquele repasto. 

Lá chegados, encontrámos uma cena quase familiar. O presidente, com aquele ar um pouco rural que o carateriza, recebeu-nos, jovial, despenteado, em mangas de camisa. Havia por ali mais gente. À nossa chegada, um cavalheiro idoso e alguém de farda desapareceram por detrás de uma porta. Parecia que tínhamos caído numa reunião de clã. Até uma televisão acesa dava um ar íntimo à cena, numa sala cheia de sofás, onde inicialmente fomos instalados. Saakashvili tinha ao seu lado a mulher, uma holandesa muito bonita, que não rimava com nada com tudo aquilo. A Geórgia tinha coisas estranhas: a embaixadora que a França mandara para lá, de raízes georgianas, “went native” e tornou-se... ministra dos Negócios Estrangeiros do país. 

O jantar foi surreal. Ao meu lado, ficou um grunho, gordíssimo, a quem não consegui extrair um sorriso, quanto mais uma palavra. A conversa geral começou serena, com cada um de nós a dizer umas obviedades, mais ou menos simpáticas. Porém, sem surpresas, à menção da Ossétia do Sul, logo tudo se estragou. Saakashvili envolveu-se num diálogo ácido com o embaixador russo, com pormenores que, a certo passo, nos escaparam, porque o debate derivou para russo. Creio que o nosso colega italiano era o único que dava sinais de perceber o que se estava a passar, connosco com ar de árbitros de ping-pong, alternando o olhar entre os topos da mesa. Recordo-me que foi uma noite gastronomicamente desastrosa, tendo, porém, excelentes vinhos locais e um vodka da melhor qualidade (o bom vodka não deixa impactos hepáticos excessivos). A holandesa, cuja presença naquela mesa era já de si bizarra, também “meteu a sua colherada” na conversa, com o americano a contrariá-la, aumentando a confusão. Saímos tarde e ainda hoje guardo uma foto com Saakashviki - eu de fato, como mandam as NEPs da carreira, ele numa informalidade inusitada, mas muito típica daquelas paragens. Na imagem, fica claro que a nossa diferença de alturas é imensa.

Voltei a cruzar-me com Saakashvili há pouco mais de um ano, em Kiev. Ele era então o todo poderoso governador do porto de Odessa, tendo entretanto obtido nacionalidade ucraniana, tendo-lhe sido retirada a cidadania georgiana original. Numa conferência a que então assisti, fez uma diatribe pública contra a permeabilidade do governo ucraniano à corrupção, o que logo me pareceu em aberta contradição com a confiança política do cargo que ocupava. Percebia-se que estava em rápida rota de colisão com Poroshenko. Semanas depois, seria demitido.

Em Setembro deste ano, quando de novo voltei à Ucrânia, surgiu a notícia de que lhe tinha sido retirada a nacionalidade ucraniana, o que o deixava com o estranho estatuto de apátrida. Circulava a informação de que tinha, entretanto, entrado clandestinamente em território ucraniano, depois de se ter refugiado na Geórgia. A sua prisão era, ao que se dizia, iminente. Afinal não seria tão cedo. (Que será feito da bela holandesa, lembrei-me agora?). Poroshenko vai ter de o julgar, embora deva levar em conta a atenção que a comunidade internacional continua a dedicar a Saakashvili. Não conheço bem os contornos do conflito entre os dois. De comum, só lhes conheço o ódio à Rússia, o qual, pelos vistos, não é cimento suficiente para reconstruir aquela que já terá sido uma grande amizade.

18 comentários:

Anónimo disse...

" a embaixadora que a França mandara para lá, de raízes georgianas, “went native” "

talvez explique algumas das iniciativas sarkozistas da época?...

Anónimo disse...

quanto à holandesa

https://en.wikipedia.org/wiki/Sandra_Roelofs

A Nossa Travessa disse...

Caro Chico

Sackshvii é bom o exemplo do que se passa com os diplomatas, políticos e os poderosos multimilionários desde o camarada Putin ao Abravomivich. São trocas e baldrocas, charadas de xadrez e por aí fora.

"Pobres" (???) tipos. E "pobre Europa".

Abç do teu amigo
Henrique, o Leãozão


... e com pezinhos de lã já estamos em primeiros ainda que acompanhados do odioso J.N.P. D.C... Vamos lá ver o que isto dá...

Anónimo disse...

~
Quando alude, Sr. Embaixador, à atenção que a comunidade internacional dedica ao Saakhavili, refere-se, penso eu, aos Estados Unidos e seus satélites. Será assim ?

João Pedro









Francisco Seixas da Costa disse...

Os “satélites” dos EUA incluem estimáveis países democráticos, nos quais se conta Portugal. Os EUA não são um país “criminoso” no plano internacional: são um aliado nosso, sendo a relação transatlântica um dos pilares da nossa política externa, política essa subscrita por partidos que representam mais de 80% do nosso parlamento, reiteradamente provado em eleições livres nos últimos 40 anos. Quem assim não pensa, está no seu pleníssimo direito, mas representa apenas o que representa, isto é, uma posição residual e muito minoritária na sociedade portuguesa. E nada mais. Escrevi isto para que não haja confusões, quiçá derivadas da conjuntural titularidade presidencial em Washington e das reações que ela suscita.

Anónimo disse...

Caro embaixador

a logica do seu comentario também se aplica ao reconhecimento da Palestina como estado. No entanto apenas os unicos paises que nao o fazem sao precisamente, os tais...

NG disse...

É por os EUA não serem um país "criminoso" no plano internacional e serem e uma espécie de pulmão da democracia, da liberdade e da lei para o Mundo todo que os seus aliados deveriam ser mais frontais e convincentes a denunciar a influencia dos movimentos que pretendem confundir a Rússia actual com a antiga União Soviética. Esse desiderato, levado a cabo por grupos políticos marginais que o próprio eleitorado americano rejeitou, conseguiu, nas últimas dezenas de anos, muito através da instrumentalização do fanatismo religioso, mas não só, lançar uma mancha negra de guerra, caos e anarquia numa vasta região do Globo que vai dos Balcãs ao Tibete, ao Saara, e alargar a área de influência e poder do principal inimigo dos EUA e de Israel - o Irão. A Europa tem que olhar para o resultado da sua atitude puxa-saco dos últimos anos e chamar o seu maior aliado à razão se não quer ser engolida por essa manhca de óleo.

Anónimo disse...

Excelente comentário de NG ! Na mouche.

Só não vê, "quem não quer ver".

A UE vai lavando as mãos.....

Anónimo disse...

Não sou o anónimo que levantou as questão, mas quase 20 por cento de um parlamento está longe de equivaler a "uma posição residual e muito minoritária na sociedade portuguesa." Representa uma minoria parlamentar de razoável dimensão, que é reforçada na sociedade portuguesa por muitos socialistas que não se revêem na posição de real politik dos camaradas do MNE e do MD.

Joaquim de Freitas disse...

O Senhor Embaixador deve conhecer melhor que eu este fascista, que mereceu o seu post de hoje SAAKASHVILI.

Ele foi o autor do crime que todos conhecemos.
O exército georgiano, armado e treinado por instrutores americanos e utilizando armamento também americano, submeteu a uma bárbara destruição a cidade de Tskhinvali. Os bombardeamentos mataram civis, ossétios, crianças, mulheres, idosos. Morreram mais de dois mil habitantes de Tskhinvali e dos arredores.
Putin salvou-os da destruição total. E se os tanks de Putin não foram mais longe deve-se a Sarkozy, que quis salvar a pele do seu amigo e amigo dos americanos, SAAKASHVILI, educado nos Estados Unidos.

Morreram igualmente centenas de civis de nacionalidade georgiana, tanto na zona do conflito, como por todo o território da Geórgia.
E porquê?

No mosaico étnico caucasiano, a questão ossétia ocupa um lugar particular, pelo facto que o povo ossètia – unificado à volta duma língua vizinha do persa, e que não tem nada em comum com o georgiano, maioritariamente de religião ortodoxa ,contrariamente aos georgianos cristãos independentes – está instalado dos dois lados da barreira caucasiana e é o único grupo caucasiano neste caso.

Enquanto a Ossétia do Norte e do Sul eram duas divisões administrativas da URSS, os Ossétias não se sentiam estrangeiros uns dos outros. Aquando da queda da URSS ,os Ossétias do Norte fundaram uma republica da Federação Russa, e os do Sul, desclassificados como região da Geórgia independente, não aceitaram o novo estatuto, e o chefe de Estado da nova Geórgia, GAMSAKHOURDIA,, quis resolver o problema pela força. Foi a primeira guerra da Ossétia, desastrosa, e foi um georgiano, que o Senhor se calhar conheceu, CHEVARDNADZE, antigo ministro da URSS, que trouxe a calma no país, graças a um acordo com ELTSINE..

Durante 16 anos esta paz funcionou, os Russos fecharam as bases que tinham na Geórgia, deixaram alguns soldados na Ossétia do Sul para garantir a paz, até que chegou a Tbilissi o seu conviva do jantar, MIKHAIL SAAKASHVILI..

Este triste individuo, fingiu ignorar que havia um acordo assinado entre estados, de 1992, e que mesmo se não tinha sido reconhecido pele comunidade internacional obrigava o seu país a encontrar uma solução ao problema.
E lançou o ataque contra a Ossétia do Norte no 8 de Agosto, violando cinicamente o acordo internacional. A tentação era grande : A capital da Ossétia do Sul, TSKHINVALI, está só a 5 km da fronteira e um canhão bem apontado já pode fazer muito mal
Claro que Putin não é Eltsine, mas em direito internacional, como o Senhor sabe bem melhor que eu, um acordo entre Estados, se não é denunciado oficialmente resta em vigor, mesmo se os dirigentes mudam.
A orquestra mediática ocidental pôs-se em movimento para salvar o soldado SAAKASHVILI, quando os tanks de Putin chegaram aos subúrbios de Tblissi.

O Conselho de Segurança propunha de substituir os soldados russos pelos Capacetes Azuis, de preferência amigos íntimos dos russos, isto é, polacos, ucranianos, estonianos. O catálogo é grande.

Mas Putin não é Eltsine… E conhece-se o resultado. Sarkozy voa para Moscovo, e salva o soldado SAAKASHVILI, nos últimos minutos. Este louco pensava que a NATO ia fazer a guerra ao Putin, para o salvar…

Joaquim de Freitas disse...

Quanto à SALOME ZOURABICHVILI , de nacionalidade francesa, os avôs eram georgianos. Fez a ENA, entrou no Quai d’Orsay, colaboradora do seu colega francês MNE, Alain Juppé, ( Governo Balladur)<; Impossível de a acusar de simpatias de esquerda nem de pró sovietismo, representou por vezes a França na NATO. Assim, quando SAAKACHVILLI sobe ao poder na Geórgia, este visita Chirac e pede-lhe de enviar Salomé para Tbilissi para a nomear MNE.
O grande projecto seria nessa época enterrar uma flecha envenenada no flanco da Rússia, activando todos os dissidentes anti-russos,do Cáucaso Norte ( Chechénia, Dagestao, recuperar a Adejaria, a Ossétia Sul e a Abkhzia e fazer entrar a Geórgia na NATO, para completar o cerco da Rússia.
SAAKASHVILI, o covarde, que atacou a Ossétia no momento em que os três personagens chave da paz no mundo, na época estavam em Pequim para a abertura do Jogos Olímpicos. Bush, que estava de certo ao corrente do plano.
Putin, que seria na impossibilidade de deixar a festa para correr para Moscovo, onde estava Medvedev, e Sarkozy, que também sabia e que sonhava de se encontrar no meio duma crise de grande dimensão que o poria em vedeta. Foi o único que acertou, numa certa medida…

Luís Lavoura disse...

surgiu a notícia de que lhe tinha sido retirada a nacionalidade ucraniana, o que o deixava com o estranho estatuto de apátrida

Que eu saiba, é proibido pelas leis internacionais retirar a nacionalidade a um indivíduo quando ele não tenha outro.

Sei que alguns países árabes (amigos do "Ocidente") fazem isso. Não sabia que a Ucrânia (também amiga do "Ocidente") se dedicasse à mesma prática.

Luís Lavoura disse...

João Pedro,

a "comunidade internacional" é a forma como se costuma designar o "Ocidente", isto é, os EUA e os seus aliados.

Os países que não são aliados dos EUA não pertencem à comunidade internacional.

Joaquim de Freitas disse...

Um antigo diplomata que esteve em função nos USA, e cuja voz ainda conta nos meios diplomáticos e políticos; não podia escrever doutra maneira.

Mas a definição de crime, Senhor Embaixador, é muito vasta. E é por essa razão que certos lideres políticos e militares de vários países se encontraram no Tribunal Internacional da Haia.

Pessoalmente, não vejo diferença nenhuma entre os bombardeamentos terroristas americanos em muitos países do planeta, desde 1945, incluindo as campanhas de esfoliação no Vietname, e os crimes dos responsáveis servo-croatas no Kosovo e na Bósnia.
Evidentemente, isto para não ir mais profundamente na Historia, por exemplo no genocídio dos Ameríndios que acompanhou a colonização americana e a escravatura do povo negro.

Mas o crime pode ter outras faces.

O que caracteriza a América , e que um diplomata não pode talvez explorar, é o mundo às avessas : atravessando o espelho dos duplos standards, os carrascos que se transformam em vitimas. Hackando desde há decénios servidores informáticos do mundo inteiro, empresas e Estados e chefes de Estado e de governos, aliados ou inimigos, choramingam sobre os “ciber ataques russos e chineses”, sponsors de centenas de grupos terroristas e de ONG subversivas, receando os ataques de Al-Qaïda e de Daecch, campeões da manipulação de eleições estrangeiras, fulminam contra Putin que lhes teria “poluido" a sua…

Rumores, afirmações, relatórios interpretados e reinterpretados até à náusea, o complotismo generaliza-se como um cancro, das camadas mais modestas às castas mais privilegiadas de Washington.
Nepotismo, corrupção, histeria mediática, derrocada dum império.

Num país repleto de pessoas criativas, carismáticas e talentosas, a alternativa entre a peste e a cólera entre as quais se deixaram encurralar, levou-os lá onde estão hoje.

A América aborda uma fase crítica da sua Historia, e o mundo inteiro com ela. O risco é imenso, porque ela vê inimigos nos quatro cantos do mundo. Cega de dor , perante um terror impotente, ela sobre reage, bate, desencadeia-se e parece pronta a arrastar a não importa qual momento o resto do mundo numa guerra mundial suicidária.
Por vezes vejo na América de hoje, que conheço bastante bem do interior, por ai ter trabalhado durante 25 anos, um remake do fim da União Soviética.
Um país habituado à supremacia, a uma obediência incondicional dos seus vassalos, acorda endividado, ridiculizado ao mais alto nível.
A sua dominação económica não é mais que uma recordação passada. A sua supremacia militar é contestada. O privilégio exorbitante do dólar, coração do sistema é ameaçado.
Desigualdades de rendas e de patrimónios, ultrapassando valores históricos, retorno das tensões raciais, presença de armas em cada gaveta das cómodas,e que um dia vao sair, a sociedade americana está doente.
E conhecendo alguns crimes do passado, sim crimes Senhor Embaixador, receio que o desespero um dia os leve a cometer piores.

Anónimo disse...

Caro Freitas

Entao vexa não percebe que os EUA são uma vitima? qual é a duvida?
Isto sai-me cá cada um!....

Anónimo disse...

Também tu, Joaquim de Freitas, dizes (escreves) "América" quando devias dizer "Estados Unidos da América"…Que para os presidentes dos EUA seja "a América", ainda vá…mas que outros o digam é pena ...

Joaquim de Freitas disse...

Vossa Excelência tem razão, Senhor Anónimo de 13 de Dezembro 2017 às 11:40. Vi duas ou três vezes “West Side Story” … Desculpe por favor.

Anónimo disse...

Em Portugal temos que lidar com os "resquícios do totalitarismo impigido no séc XX:
jerónimos, louçãs arménios, catarinas, rosas, boaventuras, etc,etc.

Um totalitarismo que se justifica em nome da "causa justa" excluindo quem não pensa como eles.

São os porta vozes da destruição das Empresas,veja-se o que se passa na AutoEuropa !

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...