segunda-feira, novembro 29, 2010

Coscuvilhices

A prática da diplomacia tem como um dos seus pilares a garantia da confidencialidade naquilo que os profissionais dizem aos seus governos, e vice-versa. Na guerra como na paz, os serviços de “cifra” procuram assegurar a possibilidade de transmitir, com total franqueza e discrição, a apreciação de perfis de personalidades, a avaliação crítica de factos ou o desenho de cenários, tidos por relevantes para os interesses dos respetivos Estados. Não é por acaso que este tipo de comunicações só costuma ficar oficialmente disponível para escrutínio público algumas décadas depois.

A questão suscitada pela divulgação de centenas de milhares de documentos pela “WikiLeaks” configura uma quebra grave nesta relação de confiança. Ela coloca políticos e profissionais em elevado risco, nalguns casos com potenciais consequências funestas, podendo também induzir um ambiente de gratuita tensão entre Estados.

Com exceções muito raras, a diplomacia portuguesa não sofreu, até hoje, problemas desta natureza. Isso não significa que o que agora ocorreu não possa, subliminarmente, vir a retrair-nos no modo como, de futuro, venhamos a atuar.

O “voyeurisme” pateta de alguns setores sente-se deliciado com o acesso àquilo que deveria permanecer num registo discreto. É um belo teste de caráter, idêntico ao que qualifica quem revela conversas ouvidas nos locais públicos ou promove a divulgação de escutas telefónicas de natureza privada. Que se há-de fazer? São os novos “bufos”, as modernas comadres da eterna coscuvilhice.

(Texto de um artigo que hoje publico no "Diário Económico")

16 comentários:

Anónimo disse...

O problema é que os novos “bufos” se sobrepõem às regras da consulta de documentos e, infelizmente, muitos dos Arquivos e(ou) Centros de Documentação em Portugal não são chefiados por quem tem conhecimentos na matéria.

Como esta área não tem sido devidamente acautelada e vive, ainda, muito à conta da conduta de cada um… “um dia o gato vai às filhós” (influência da proximidade da quadra natalícia!).

IBP

margarida disse...

Então seleccionámos por puro acaso a mesma expressão.
Sim! que aqui não há 'espionagem blogoeférica'! LOL!

ARD disse...

È um facto indesmentível que a atitude da Wikileaks põe em causa valores que urge preservar. Entre eles, a protecção do emprego de numerosos pais (e mães) de família e o bem estar de quantos deles dependem.
Estou a falar, evidentemente, dos agentes de informações e afins, cujo nobre labor se vê, assim, reduzido à inutilidade.
Ao que chegámos!

Anónimo disse...

Coscuvilhices de comadres e um eufemismo para as informacoes absolutamente irrelevantes que a Wilkileaks tem divulgado.Quanto a Portugal,pela importancia que ocupa no mundo politico,economico e militar creio ser inutil esta divulgacao.Ate porque o que os diplomatas portugue-ses enviam para a Secretaria de Esta-do sao informacoes publicadas em jor-nais.Nao vejo em que medida a diploma-cia portuguesa podera sair minimaente beliscada com a publiccao das coscuvi-lhices.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Anónimo: se não é diplomata, não sabe do que está a falar. Se é, sinto que deve estar "ressabiado" por não estar no estrangeiro, onde, se calhar, antes trabalhou da forma que agora critica. Haverá quem trabalhe assim (talvez você), mas mais haverá quem opera de outra forma.

Anónimo disse...

Um Anônimo deveria deixar sempre um pequeno "rasto", uma assinatura. Muito bom é o autor deste Blogue que publica muita coisa por assinar. Eu talvez não o fizesse. Admito que me falte talvez a mesma fleuma diplomática que FSC, para casos como este.
P.Rufino

Francisco Seixas da Costa disse...

Está enganado. P. Rufino: eles deixam rasto e, com o tempo, já sei ler as pistas...

João Manuel Lopes Seixas Martins Tomás disse...

A questão de saber se a WikiLeaks actua mal ou bem é um longo debate que parece difícil ser organizado pelo meio de mensagem deixadas neste blog.
Ë verdade que, como diz o Sr. Dr. Francisco Seixas da Costa, certos dados devem de permanecer secretos porque pela importância do seu conteúdo poderiam provocar conflitos muitos graves ao nível diplomático.
No entanto acho que é uma boa coisa quando se trata de divulgar informações que certos Estados escondem, em particular os pertencendo ao G8, e que favorecem os interesses de grandes grupos empresariais servindo ao mesmo tempo os poderosos que nos governam….

Anónimo disse...

Pois pois... No que diz respeito a todos estes "defensores do privado", o grande Nixon nunca se teria demitido. E aliás era um grande presidente... Enfim...

Gil disse...

Creio que a questão central está no que os” leaks” revelam e não no próprio” leak”, no conteúdo das revelações e não no facto de se revelar alguma coisa.
A primeira grande “operação” da Wikileaks – as revelações sobre alguns aspectos da presença das tropas americanas no Iraque como, por exemplo, assassinatos de civis sem provocação – foram uma coisa; outra são as que agora vieram a público (pelo menos até este momento). Estamos, de facto, perante o mesmo tipo de “coscuvilhice” que abunda na chamada comunicação social e que, em Portugal, tem produzido as mais patéticas situações. “Revelações” sem qualquer interesse que não seja o de revelar declarações “picantes” e maledicência.
O equivalente indígena foi, por exemplo, a publicação das opiniões privadas da deputada Edite Estrela sobre alguns dos seus camaradas e colegas do Parlamento Europeu.

Anónimo disse...

Caro Embaixador e meu amigo,
Concordo em absoluto com o teu ponto de vista. Esta é uma forma de condicionar as análises dos profissionais que, pela natureza das suas funções, têm o dever de informar os seus Governos do que se passa nos países onde foram colocados.
Naturalmente que a informação apenas baseada no que se diz na imprensa é de pouco valor acrescentado - para isso estão lá os jornais. O estudo dessas sociedades, os contactos privilegiados, as interpretações baseadas na realidades dessas sociedades e outro tipo de informação classificada é o que verdadeiramente interessa às respectivas capitais - é por isso mesmo que deve ser considerada classificada. O receio da sua publicação não deixará seguramente de coartar quem a presta.
Fernando Coelho

L M D disse...

Eu acho que este caso abre também outra questão: a de reflectir até onde pode, ou deve ir a liberdade de expressão?
É óbvio que a liberdade de expressão é um valor inestimável na nossa sociedade, mas é de questionar se a divulgação de matéria sensivel é oportuna.

Anónimo disse...

Se a correspondência diplomática tiver acesso público ela será divulgada, não interessa a opnão que tivermos sobre isso.
É preciso um bom grau de incompetência para permitir uma fuga deste tamanho.
Resta-nos esperar que os senhores diplomatas deixem de escrever o correio na parede.

Anónimo disse...

Chamar coscuvilhices à divulgação maciça de documentos”secretos” é um insulto ao jornalismo investigador / político!
Coscuvilhice, pelo que vi em consulta ao meu dicionário, é o acto de intriga, enredo ou bisbilhotice, o que a Wikileaks está a fazer é expor assuntos, correspondência sobre temas que a todos nós nos dizem respeito, e em que numa sociedade livre e responsável perante os seus cidadãos podem e devem ser divulgados.
Que eu saiba nenhum dos assuntos aflorados põem em questão a segurança mundial ou de qualquer país, apenas expõem a hipocrisia política de regimes supostamente abertos e livres ou a relação destes países com regimes ditatoriais como a Arábia Saudita ou a pretensa democracia Paquistanesa.
Para mim é fundamental não deixarmos amordaçar os poucos jornalistas que ainda têm a coragem de publicar o que é importante divulgar, num mundo em que os meios e jornalistas estão nitidamente amordaçados ou mesmo corruptos por grandes grupos económicos que dominam os media de hoje.
Apenas mais um comentário… se é assim tão fácil a Wikileaks obter a informação que agora divulga, duas conclusões me afloram, a primeira a anedótica segurança das comunicações encriptadas entre governos a segunda o óbvio conhecimento dos “lesados” que certamente terão tido através dos seus “serviços de informação” de todos este material.
Bem haja a Wikileaks!
PS: acerca de anonimato… jovem (apenas 49 anos!) Português e bem orgulhoso disso de nome José Aragão, até hoje não me identifiquei porque não me acho à altura de tão distinto “dialogo” mas como tem publicado os meus (2)anteriores comentários... acho que me devo dar a conhecer. E aproveito para lhe agradecer o seu elucidativo e interessante blogo, parabéns!

margarida disse...

...'jornalismo' de quê?
Aquilo é infame, despropositado e desnecessário!
Se a informação sobre os erros e violências da guerra se pode até justificar com a necessidade de justiça, que nos interessa os meandros de bastidores dos políticos e diplomatas entre si e sobre uns e outros?
E porque atacam constantemente o ocidente?
Não vejo os senhores wikiliquianos entusiasmados com o Irão, o Paquistão (via dura), a
Coreia do Norte, os doidos de África e da América do Sul...
Ora bolas.
Coscuvilhice, sim!
(com todo o -meu- respeito pela sua opinião, caro ex-anónimo)

Helena Araújo disse...

Agora que a poeira assentou um pouco, já pudemos verificar que este episódio serviu para aumentar a desconfiança entre todos (e se desta vez foram os diplomatas, da próxima podem ser os dados bancários ou fiscais dos cidadãos - ninguém está livre de justiceiros franco atiradores ao serviço de sabe-se lá que valores ou ausência deles) e para desmascarar jornais pretensamente sérios que, a título de serviço informativo, passam informações absolutamente desnecessárias (refiro-me ao famigerado "fulano disse sobre sicrano").
Restam três grandes questões para debate:
- Onde se traça a fronteira entre embaixador e espião? Que dizer de um embaixador que recebe informações directamente das reuniões da coligação para discutir o programa do futuro governo? Ou de diplomatas da ONU encarregados de recolher dados sobre outros diplomatas? Qual é a diferença entre entre um Assange e um embaixador americano que recebe informações altamente confidenciais de um quadro de um partido alemão? (Li as respostas do embaixador americano em Berlim, e não me convenceram)
- Será que o wikileaks prestou realmente um grande serviço aos povos árabes ao expor os jogos diplomáticos dos seus dirigentes? Estaremos perante um "dominó da transparência" algo semelhante ao "dominó democrático"?
- Que espécie de niilismo é este que atingiu a nossa sociedade? Porque é que as pessoas se regozijam por este golpe na confiança e na imagem dos diplomatas e políticos ocidentais? Alguém dos que aplaude tem um projecto alternativo de política e relações internacionais que seja exequível e melhor que o que existe?
Não estou a afirmar que este sistema seja perfeito e moralmente inatacável, e isso já nós sabíamos antes destas revelações do wikileaks. Simplesmente, não lhe vejo nenhuma boa alternativa, e acuso de irresponsabilidade quem quer dar cabo do que temos sem saber o que construir em cima dos destroços.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...