quinta-feira, fevereiro 25, 2016

A carreira e a fonética

O cenário era um hotel de uma cidade de um país europeu, onde tinha lugar um evento, em que Portugal participava, com uma delegação presidida por um membro do governo do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

O embaixador português naquele país tinha-se deslocado da capital para integrar o grupo. Estávamos todos no café, já depois de jantar. 

Já não sei bem a propósito de quê, veio à conversa o nome de um diplomata nosso colega, na altura creio que já reformado, de seu nome Serpa Neves. O membro do governo nunca o chegara a conhecer e inquiriu algo sobre ele.

Vi que o embaixador ficou atento ao que se dizia. A certa altura, com um sorriso, deixou cair na conversa:

- Esse homem, se fosse de Viseu, podia ter tido uma carreira internacional fulgurante.

Ficámos todos surpreendidos. Viseu?

- É que, se fosse de Viseu, seria "sherpa"...

"Sherpa" é o nome dado aos colaboradores diretos dos chefes de Estado e governo que prepararm as reuniões internacionais a alto nível, como o G8 ou o G20.

Toda a delegação portuguesa riu com a graça do embaixador. Com uma exceção: o chefe da delegação. Ficou sério e o convívio da noite acabou praticamente por ali. E não era de Viseu, podem crer!

quarta-feira, fevereiro 24, 2016

Um abraço para o Económico


Há já alguns meses que deixei de escrever para o "Diário Económico", o que fiz com regularidade, durante bem mais de um ano. Não houve qualquer dissídio que tenha levado à minha saída, apenas a minha vontade de parar por uns tempos na imprensa económica. E experimentar, meses passados, outros terrenos nesse domínio.

Mas, em termos humanos, o "Diário Económico" sempre me tratou bem. Fui acolhido como um "deles", por toda a gente com quem contactei naquela casa. Só deixei amigos por lá.

E porque são amigos e porque vivem um momento terrível em termos da sustentação financeira do projeto, quero deixar-lhes aqui um abraço de solidariedade e os votos da melhor sorte possível. 

terça-feira, fevereiro 23, 2016

"Interesting times"

Há um curioso tropismo que faz com que a chefia municipal de Londres, criada em 2000, tenha sempre caído em mãos mais ou menos radicais, ainda que de sinal contrário.

Durante oito anos, uma figura da ala esquerda do Partido Trabalhista, Ken Livingstone (o "Red Ken") ocupou o cargo de "mayor". Livingstone, que tinha um histórico de fazer a vida negra às lideranças trabalhistas, não "desiludiu": Tony Blair soube-o bem.

Desde 2008, um conservador heterodoxo, Boris Johnson, é o "maverick" de serviço. O primeiro-ministro David Cameron não conseguiu assegurar o seu apoio à campanha pelo "sim" à Europa e, dessa forma, atendendo à sua imensa popularidade, Johnson acaba por converter-se no seu principal obstáculo ao sucesso no referendo. E, se Cameron perder o sufrágio, Boris Johnson será, ao que tudo indica, o próximo primeiro-ministro do Reino Unido - ou do que dele restar, depois da mais do que provável secessão da Escócia. 

Enfim, "interesting times", como Hobsbawm deu por título à sua biografia (que vivamente recomendo), embora referindo-se a tempos em que a turbulência europeia era de uma outra natureza.

O Rossio, a Betesga, Guterres e Barroso

O exercício televisivo ontem conduzido por Paulo Dentinho e António José Teixeira, com a mútua entrevista a Durão Barroso e António Guterres, ficou aquem daquilo que poderia ter sido. "Meter o Rossio na Betesga" é um exercício difícil e a ambição foi excessiva. 

Desde logo, como aproveitamento para lançamento da revista XXI, a iniciativa falhou. Salvo uma breve menção no início do programa, a publicação "desapareceu" muito cedo como pretexto para a conversa. E é pena. Havia boas questões que alguns dos textos da publicação poderiam ter suscitado (e claro que não falo do meu, cujo tema - Schengen - não era de todo relevante para o debate). Assim, a meu ver, a conversa com as duas personalidades portuguesas com maior visibilidade internacional em tempos recentes acabou por não ser algo muito estimulante. 

O antigo presidente da Comissão Europeia assumiu uma postura que poderíamos chamar de "euroentusiasmo" correto, isto é, optou por sublinhar os inegáveis feitos da integração, pretendendo esconder que, não obstante estes, a Europa está num estado caótico, com divisões internas muito fortes e sem um sentido de direção. Remeter toda a responsabilidade para os Estados membros foi também uma forma de iludir as responsabilidades de quem teve nela funções executivas relevantes, as quais, se diferentemente exercidas, talvez tivessem podido atenuar alguns dos problemas atuais.

António Guterres tinha um problema nesta conversa. É óbvio que tem uma leitura muito crítica da situação internacional e da partilha de responsabilidades que incumbe aos vários atores políticos pelo estado de coisas em que vivemos. A sua experiência no terreno, ainda mais recente do que a de Barroso, deu-lhe elementos muito concretos para, se quisesse, "chamar os bois pelos nomes". Mas não pode fazê-lo, num tempo em que é obrigado a fazer a quadratura do círculo, com vista a conseguir apoios à sua pretensão à ONU, procurando harmonizar à sua volta apoios contraditórios.

Barroso defendeu o seu passado, Guterres o seu futuro. Valeu a pena ouvir? Confesso que me soube a muito pouco. Sabendo-se à partida que o contraste de visões seria mínimo, como se verificou, talvez duas mesas redondas separadas em duas ocasiões diferentes, com vários interlocutores a colocarem uma bateria de questões a cada uma das personalidades tivesse tornado esta iniciativa mais viva.

Uma última nota. Na assistência, estava Jaime Gama. Embora sabendo-se ser isso impossível, teria a maior das graças, podem crer!, ter ouvido a sua opinião sobre o espetáculo a que assistiu.

segunda-feira, fevereiro 22, 2016

Déjà vu

Foi hoje, passava um minuto da uma hora da tarde. Eu ia atrasado para a reunião na FCSH, da Universidade Nova, na avenida de Berna. Entrei com o carro para o pátio da Faculdade (privilégio de quem é membro do Conselho da Faculdade). Um aluno ia a atravessar e eu travei a fundo. A culpa era toda minha. Pedi desculpa e fui estacionar.

Aquele episódio, sem consequências, ficou a bailar-me na memória, não percebi então bem porquê. 

Duas horas depois, antes de ir buscar o carro, "caiu a ficha", como dizem os brasileiros.

Havia sido há 43 anos, em 1973. Eu entrei naquele mesmo portão, a guiar um Fiat 128. Não tinha carta, confesso! O carro não era meu, era emprestado. Ali era o chamado "Trem Auto", onde se "tirava a carta" militar. Era o que eu ia fazer. À minha frente, já dentro do pátio, atravessou-se um Alferes. Travei a fundo, pedi desculpa, ele olhou-me de soslaio. Eu era apenas Aspirante, como se via pelas divisas.

Fui para a sala de provas. O Alferes entrou. Era o mesmo! E ia ser o meu examinador!

- Você vinha a guiar o carro? Tem carta civil?

- Não, não tenho...

- Essa agora! E então anda a guiar sem carta?

- É verdade! Trouxe o carro de perto...

- Pois, pois! Bonito!

Ele tinha toda a razão. Temi o pior. Mas passei, sem dificuldade.

Um dia, já na "peluda" (isto é, depois de fazer o serviço militar), lembrei esse episódio ao Alferes examinador. Chamava-se Leal Loureiro, foi uma grande figura da edição portuguesa, fundador da "Afrontamento". A última vez que nos vimos foi na "Bucholz", que ele dirigia. Morreu há alguns anos.

Lembrei-me hoje dele, por este simples episódio da vida.

ps - embora o crime já tenha prescrito, não acredito que venha a ser absolvido em todos os comentários.

O acordo britânico

Eu estava em Londres e lembro-me muito bem da frase vitoriosa de John Major, no seu regresso da negociação do Tratado de Maastricht: "Game, set and match!". Major tinha então conseguido o "opt-out" do protocolo social e da moeda única. O cinzento líder que os conservadores britânicos haviam escolhido depois da defenestração de Margareth Thatcher, para evitar Michael Heseltine, havia obtido o que considerou ser mais um passo no estatuto diferenciado de que o Reino Unido goza perante as instituições europeias. E era verdade!

Alguns leitores mais académicos ou mais ingénuos das realidades da Europa ficam surpreendidos com esta singularidade e, acima de tudo, com a complacência com que os outros parceiros acabam por admitir, ano após ano, este tratamento especial dado a Londres. Ora as coisas são muito simples: a União Europeia é um clube de harmonização de interesses e é do evidente interesse dos restantes 27, e da União como um todo, que o Reino Unido permaneça no clube. 

A bem dizer, não há negociador europeu que não tenha histórias de ter ficado "pelos cabelos" com os britânicos. Com toda a certeza, nos dias que correm, ninguém à volta daquela mesa oval de Bruxelas tem já a menor paciência para aquele ar de filho-família arrogante de Cameron, num "boyish style" com ar de uma "gravidade" estudada, por onde perpassa um descaso óbvio pelas coisas dos outros, assumindo despudoradamente que quer para si "o melhor dos dois mundos". Mas a verdade é que lá vai levando a sua avante, porque todos reconhecem que o preço de uma saída britânica teria um impacto insuportável para uma União em estado cataléptico, com crises a rebentar por todos os lados. Perante este cenário, ceder um pouco aos britânicos terá sido considerado o menor dos males. 

A Donald Tusk e a Jean-Claude Junker terão sido dadas ordens, por quem manda na "casa", para "draftar" um compromisso onde, para além de alguma retórica meramente adjetiva, houvesse uma compreensão pelos custos sociais da imigração para o Reino Unido - é que não é por acaso que os imigrantes se juntam aos milhares em Calais e não na fronteira do Caia...

É claro que alguém teria de pagar estas cedências e, como se viu e já se estava à espera, acabou por ser o elo mais fraco, isto é, os países emissores de migrantes pobres, que tiveram de aceder a aceitar que os abonos de família dos seus filhos deixados no país de origem passem a ser dimensionados em função do seu nível de vida. A solução, dizem ironicamente alguns, é levá-los para o Reino Unido... 

Como se viu durante as longas horas de Bruxelas - em que praticamente só houve negociações bilaterais, como é de regra neste tipo de cimeiras dramatizadas -, a Alemanha foi muito discreta (Tusk devia ter as instruções de Berlim sobre as "red lines") e a França apenas procurou proteger os seus poderes na Eurozona. Dos "grandes", a Itália tem hoje mais crises internas com que se entreter e a Espanha não existe na Europa, nos dias que correm.

Restava assim a Polónia, que acabou por sofrer a dupla humilhação de ter de aceitar um compromisso que afeta claramente os seus interesses nacionais (acabando por funcionar como negociador em nome do "grupo de Visegrado", da Roménia e da Bulgária), apresentado e promovido por um seu antigo primeiro-ministro (Tusk), alguém que é uma "bête noire" para o atual poder em Varsóvia. Estou curioso para ter notícias do regresso da PM Beata ao seu país...

A Europa pode dizer que deu a Cameron alguns (serão suficientes?) argumentos para tentar ganhar o referendo em que a sua própria irresponsabilidade o meteu. Muitos são meramente semânticos e representam, de facto, muito pouco. Aí pode dizer-se que esteve bem. Porém, ao deitar mais achas na fogueira da singularidade do Reino Unido, acabou por escrever mais uma página da Europa "à la carte" em que o projeto integrador se está a transformar.

As limitações aos direitos sociais dos imigrantes são importantes, embora muitos continuem a assobiar para o ar como se o não fossem. Alguém já pensou se, um destes dias, um qualquer Estado, à luz da exceção britânica, que lhe permite reduzir os abonos de família em função do nível de vida do país onde são recebidos, vier a sugerir que também as pensões, que são pagas no fim de uma vida de trabalho num Estado membro mas gozadas noutro Estado, devem passar a ser calculadas com base no custo de vida do local onde o reformado usufruiu dessa reforma, eximindo-se, por exemplo, aos regimes fiscais mais gravosos que teria de suportar no país que lhe paga? Admirem-se!

Isto vai bonito, vai...

domingo, fevereiro 21, 2016

Ainda a esquerda e a direita

Ontem, um certo opinador cujo nome não importa para o que aqui me traz, referia na sua coluna que, para uma geração que hoje tem menos de 50 anos, é praticamente irrelevante a memória da ditadura portuguesa, período em não fez a sua vida, pelo que não identifica minimamente com a luta pela liberdade quantos, revindicando-se das diversas formas de socialismo, durante esse período combateram o Estado Novo. O dito escriba, talvez porque sabia isso chocante para parte significativa da memória coletiva, não foi ao ponto de desprezar expressamente o 25 de abril, mas andou lá por perto.

No texto, o autor justifica ser de direita (diz também ser liberal, mas isso é irrelevante para o que importa) pelo facto da imagem que criou da luta pela liberdade estar precisamente associada ao combate contra a esquerda, contra o socialismo e contra o comunismo, seja no plano internacional, seja no quadro interno, nomeadamente naquilo em que este teria procurado contribuir para a passagem da "África portuguesa" (sic) para esse campo.

Quem é de esquerda tenderá a olhar com alguma sobranceria para esta análise. Mas julgo que faz mal, porque, no seu simplismo maniqueu, ela ajuda a explicar grande parte da atitude de uma certa geração que por aí anda e que, sendo embora fortemente minoritária, tem vindo a ganhar espaço nos media, inicialmente impulsionada pelas redes sociais, e é hoje muito adubada pela doutrina das escolas económicas do "pensamento único" de algumas universidades de sucesso.

Da mesma forma que, numa sociedade como a francesa, já não passa pela cabeça de alguém de esquerda utilizar o fantasma do colaboracionismo ou de Vichy para contestar as ideias da direita democrática, a geração que "fez" o 25 de abril e que se revê em alguns dos valores da esquerda tem rapidamente que saber descobrir um novo discurso para fazer frente à direita. Apodá-la de "fascista", como às vezes por aí se ouve, é de um simplismo ineficaz e redutor. O Estado Novo já lá vai e é pateta pensar que alguém que tem vinte e tal anos ainda se vai emocionar com o Tarrafal ou a "estátua", entre dois "shots" nos bares de Santos ou da Galeria de Paris.

O combate contra a direita pode e deve fazer-se no terreno das ideias, centrado nas políticas de hoje, mas, essencialmente, só pode ter sucesso se tiver eficácia concreta na vida das pessoas. A esquerda, para conservar o poder e justificar democraticamente a razão por que pode exercê-lo, deve conseguir compatibilizar uma forma de vida que seja confortável para largas faixas da população, que se sentem à vontade e gostam de usufruir do modelo da sociedade de mercado que é hoje o "template" comum da Europa, e que marca inexoravelmente o seu quotidiano e os seus legítimos hábitos de consumo e lazer, com uma gestão eficaz da economia, da qual seja possível extrair recursos fiscais que permitam suportar políticas públicas que reforcem a "safety net" social e promovam oportunidades para todos. 

A esquerda só será vitoriosa se conseguir tornar as pessoas felizes, o que passa por conseguir mostrar que as suas políticas são as mais capazes de democratizar o bem-estar, para recriar um ambiente de solidariedade intergeracional assumido como valor ético, para tornar a luta contra a desigualdades um imperativo da consciência coletiva, para gerar uma sociedade onde o quadro social de nascença não seja uma determinante imutável para o resto da vida. A esquerda, se quer derrotar a direita, no campo democrático que é o deste país e da Europa em que estamos, deve conseguir afirmara-se, simultaneamente, como a mais eficaz promotora e criadora de riqueza coletiva e como a força paladina da igualdade de oportunidades, o que tem como contraponto saber conviver com o mérito e o sucesso individual, sem alimentar um discurso de inveja e tensão interclassista. Se o não conseguir fazer, a direita regressará rapidamente ao poder.

Livros da Resistência (1)

"Horizontes Fechados", de Raul Rego

Nos próximos tempos, vou notar por aqui, de quando em vez, alguns livros que, para a minha geração política, tiveram importância ou marcaram um tempo. Serão notas muito breves, contextualizando esse textos e os seus autores. Não seguirão qualquer ordem cronológica, resultando quase do acaso da passagem pelas minhas estantes.

Hoje, vou falar de "Horizontes Fechados / Páginas de Política", um livro de Raul Rego, uma edição do autor, de 1969, distribuído pela Editorial Inquérito. Publicado creio que em setembro, tenho anotado que comprei o meu exemplar em Lisboa, em 22.11.69, pouco tempo depois das "eleições" de outubro desse ano.   

Raul Rego (1913-2002) era, à época, uma das figuras mais destacadas do jornalismo político em Portugal. Escrevia então no "Diário de Lisboa" e, na clandestinidade, estava ligado à corrente socialista da oposição democrática.

Vivia-se um tempo de encerramento de toda e qualquer esperança política. Tendo assumido a chefia do governo em setembro de 1968, rapidamente Marcelo Caetano deixou claro que eram apenas semânticas as mudanças que pretendia introduzir na política portuguesa: os presos políticos, a repressão e a guerra colonial continuavam a ser a marca continuada do regime.

O livro, que teve um certo impacto (surgiu depois dos "Escritos Políticos" de Mário Soares, mas a sua ligação à atualidade era bem maior), tinha como evidente objetivo denunciar a hipocrisia do "marcelismo", a contradição cada vez mais evidente entre a "primavera" alardeada pelo regime e a realidade efetiva das coisas.

A meu ver, o texto mais interessante é a comunicação feita por Raul Rego ao II Congresso Republicano de Aveiro, dedicado à censura à imprensa e as suas perversidades mais recentes. Um outro capítulo curioso analisa o caso do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que Salazar tinha banido do país e com quem Rego se encontrou em Espanha. Mas são também de agradável leitura perfis sobre várias figuras da República e da intelectualidade democrática, bem como um conjunto de excelentes e irónicas notas sobre o quotidiano da "situação".

Como não podia deixar de ser, a edição foi logo colocada "fora de circulação" e apreendida pela polícia nas livrarias. Lembro-me de ter conseguido o meu exemplar através de um contacto na Livraria Barata, na avenida de Roma.

sábado, fevereiro 20, 2016

Umberto Eco (1932-2016)


Há duas semanas, durante uma reunião de trabalho numa fundação (não, não era a Gulbenkian), ao elencarmos alguns nomes possíveis para convidar para um determinado evento com participação internacional, alguém lembrou o nome de Umberto Eco. Com o Google à mão, um dos presentes notou: "Já tem 84 anos, deve não viajar muito". Retorqui que Eduardo Lourenço, bem mais idoso, ainda está aí para as curvas.

Não sabia(mos) que Eco estava doente. Com a sua morte, a Europa perde uma figura de uma natureza cada vez mais rara, uma personalidade de tipo renascentista, um pensador da contemporaneidade, que nos ajudou a olhar coisas simples da vida sob uma perspetiva arrojada e sempre criativa. Estou longe de ser um seguidor atento de Eco. Li, com agrado, "O Nome da Rosa" e "O Pêndulo de Foucault", mas devo dizer que foi a sua "Obra Aberta" que me ensinou a interpretar melhor o mundo, talvez porque por ali estava a semiótica (eu aprendi a dizer "semiologia", do francês, no curso dado por Eduardo do Prado Coelho, no Centro Nacional de Cultura, em 1972). Mesmo assim, a cada entrevista de Eco que apanhava, mesmo com o avançar da idade, ele era sempre um banho refrescante em matéria de ideias. No meu caso, devo também a Eco o reforço do amor pelos livros e a crença profunda no seu futuro.

ps a uma amiga que me fez notar a morte de Harper Lee. Tenho muita pena, mas nunca li nada dela. Sei que a culpa é minha, mas é um facto. E já tenho idade para confessar, sem corar, as minhas fragilidades.

sexta-feira, fevereiro 19, 2016

"Window dressing"?


David Cameron, naquele estilo modesto que lhe é peculiar, já veio apresentar à imprensa a sua leitura dos resultados obtidos na negociação em Bruxelas.

Vale a pena começar por atentar em algumas das "vitórias" proclamadas esta noite por David Cameron:

- "Nunca nos juntaremos ao euro". Já antes o RU tinha essa possibilidade.
- "Não faremos parte dos resgates para a Zona Euro". Idem.
- "... nem do Espaço Schengen". Idem
- "... nem de um exército europeu". Não há a menor perspetiva de tal vir a ocorrer e, a isso ter lugar, seria sempre através de uma decisão por unanimidade.
- "... nem de um super-Estado europeu". Idem.

Cameron irá tentar convencer os ingleses de que o RU poderá escapar à "ever closer union"? Talvez eles devessem saber que, como qualquer outro passo integrador, todos esses passos necessitariam sempre de ser aprovados por unanimidade. O que significa que o RU já poderia dizer não. Não foi Cameron que o conseguiu.

Quanto aos restantes aspetos do acordo, em que parece que, de facto, o RU teve vencimento de causa, temos de esperar pelos textos para poder comentar com mais precisão os seus efeitos reais e consequências.

Este acordo não foi só "window dressing", claro. Mas, pelo que se conhece, há por ali muito de semântico.

Nabeiro e o contrabando


Acabo de ler uma entrevista com Manuel Rui de Azinhais Nabeiro, no site do "Expresso".

Com os anos, e praticamente sem o conhecer, criei uma forte admiração por este homem simples, empresário de muito valor, com um notável sentido de responsabilidade social, bem patente no modo como há muitas décadas intervem em favor da terra em que sempre viveu, Campo Maior. Nunca com ele falei mais do que em momentos de circunstância, tendo-o apenas cumprimentado brevemente uma meia dúzia de vezes.

Nabeiro, o homem que é a cara da companhia dos cafés "Delta", de que foi criador, tem origens humildes e não fez mais que a antiga escolaridade primária. No passado, confessa sem problemas ter estado envolvido em contrabando de café para Espanha, o que terá funcionado como a sua primeira fonte de rendimento. E também não esconde o facto de, ainda na ditadura, ter sido presidente da Câmara municipal de Campo Maior, nomeado pelo regime de então. Com a democracia, viria a ser eleito pelo PS para o mesmo cargo.

Para quem vive em terras distantes das zonas de fronteira, o fenómeno do contrabando é pouco conhecido e compreendido em toda a sua extensão. Com os tempos, aprendi que olhá-lo como um crime fiscal como outro qualquer é uma leitura demasiado simplista.

Uma noite de inícios de 1975, no palácio da Ajuda, no seu gabinete de chefe da 2a. Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, o general (creio que então brigadeiro) Pedro Cardoso, havia juntado para um café um grupo de quatro pessoas. Com uma exceção, éramos todos militares, sendo eu o único miliciano. Além de Pedro Cardoso, estava o também já desaparecido general (então major) Gabriel Espírito Santo. O civil era o pai de Pedro Cardoso, um senhor já bastante idoso e que, ao que lembro, tinha sido diretor-geral das Alfândegas.

O tema da noite - e não era por acaso que por ali estávamos, já bem tarde - era uma operação que estava simultaneamente a ser desencadeada na área de Setúbal pela "Secção de Apoio", uma espécie de grupo operacional da 2a Divisão, que dispunha de grande (e contestada) autonomia. Os resultados da ação demoravam a chegar, nesses tempos sem telemóveis. Tratava-se do desmantelamento de uma rede de contrabando, que me lembro envolver tabaco, mas não só: à época, essas redes eram utilizadas para levar obras de artes portuguesas e outros bens valiosos para o estrangeiro, alguns que vim a encontrar mais tarde em antiquários de Portugal e do Brasil.

Fiquei para sempre com aquilo que o pai de Pedro Cardoso então nos disse. Explicou ele que era uma verdadeira ironia serem agora os ricos a contrabandear, porque "o contrabando é uma arma dos pobres". Era algo irónico ver um antigo diretor-geral das Alfândegas explicar que, nas remotas áreas de fronteira, o exercício do contrabando era um recurso compreensível por parte de quem pouco tinha para comer e que usava essa prática, pela qual se eximia à fiscalidade oficiosa, para dar de comer às famílias. E contou que, sendo a travessia ilegal das fronteiras também um mecanismo para fugir à repressão policial por parte de ativistas políticos, era patente existir uma espécie de cumplicidade objetiva, em especial no Alentejo, entre os contrabandistas e os ativistas revolucionários, particularmente os comunistas. Dizia ele isto com um ar de compreensão, de naturalidade, que nessa noite abalou alguns dos preconceitos que eu tinha criado sobre a matéria.

Hoje, ao ler a entrevista de Nabeiro, que recomendo (pode lê-la aqui), recordei essa noite dos tempos agitados da Revolução. Fazendo eu parte daqueles (poucos?) que persistem em cumprir as leis fiscais rigorosamente "by the book" (impostos, multas, IRS, exigência permanente de faturas, antiga Sisa), sem nunca assumir qualquer relativização desculpabilizante, não fazendo em geral parte dos que olham o Estado como um "outro", ou como meu adversário, registei para sempre essa contextualização sócio-económica do contrabando. E passei a olhar para figuras como Manuel Rui de Azinhais Nabeiro com outros olhos.

A dívida

Há quem se surpreenda pelo facto dos socialistas não se associarem à proposta do PCP no sentido de relançar o debate sobre a reestruturação da dívida pública portuguesa.

Não sei qual é a surpresa! Os socialistas - e não se confundam os socialistas com algumas vozes socialistas, por muito qualificadas que elas sejam - sempre disseram, enquanto entidade com responsabilidade política, que o problema de uma eventual renegociação da dívida pública portuguesa era uma matéria que apenas poderia ser abordada num contexto de debate no seio das instituições europeias, pelo que nunca tomariam qualquer inicativa unilatetal sobre a matéria. Fazê-lo seria passar uma mensagem de desconfiança quanto ao empenhamento de Portugal cumprir internacionalmente os seus compromissos.

O novo rotativismo



Se acaso um dia, por um consenso que infelizmente não vislumbro, decidíssemos passar a ser um país (a) sério, haveria que rever o triste procedimento que são as mudanças nas chefias de órgãos e departamentos do Estado, que entre nós ocorrem sempre que muda o ciclo político.

O argumento eterno é o da “confiança” para levar à prática as orientações do novo poder. Sob essa capa, verifica-se uma espécie de direito natural de atribuição daquilo que os britânicos consagraram como “the jobs for the boys”. Com os anos, as democracias mais sólidas conseguiram institucionalizar mecanismos para limitar a discricionaridade na distribuição de lugares à mesa do orçamento, enquanto que em Portugal tudo continua praticamente na mesma, não obstante a ilusão criada pela criação da CRESAP, cujos resultados têm mesmo a perversidade de legitimarem o arbítrio.

Imagino que a perspetiva da chegada ao poder deva criar anseios fortes numas largas centenas de quadros, alguns de real qualidade, outros apenas de subserviente fidelidade, que o anterior ciclo havia deixado de quarentena. Também para os gabinetes, logo avançam os recém-licenciados próximos da gente que ocupa a nova titularidade política, ansiosos para obterem umas linhas curriculares que, mais tarde, lhes permitam ganhar esporas para cavalarias mais altas.

Exercer o poder, em Portugal, foi sempre a capacidade para satisfazer clientelas, com truques como as alterações às leis orgânicas, como forma de criar um alibi formal para poder concretizar mudanças nas chefias. Nenhum – repito, nenhum! – ciclo político português escapou até hoje a este lamentável tropismo.

Há mesmo algo de muito dramático, em termos da nossa saúde cívica: é o facto de isto já não escandalizar praticamente ninguém! A opinião pública olha para tudo como uma inevitabilidade, daí retirando a (falta de) consideração que a vida política lhe merece. E os agentes políticos provavelmente pensam que, se os seus antecessores fizeram o mesmo, enxameando a máquina político-administrativa de gente sua, não há outra solução senão proceder da mesma forma. E nunca mais saímos disto…

É diferente quando se trata do PSD ou do PS? Nem por sombras! Julgo que há mesmo um “omertà” que faz com que, salvo casos mais escandalosos ou destacados mediaticamente, ninguém ponha em causa esta espécie de direito de saque, inerente às mudanças de poder. Nos anos mais recentes, o CDS havia conseguido intrometer-se no conúbio PS-PSD, que, de há muito, domina o aparelhamento dos lugares pagos pelo erário público. Será que PCP e Bloco terão agora a sua oportunidade? É que ou há moralidade ou comem todos...

quinta-feira, fevereiro 18, 2016

Os ingleses e o continente

Há um resultado que não deveria ocorrer, no debate que hoje e amanhã tem lugar em Bruxelas, no qual o Reino Unido quer consagrar, se possível ainda mais, a sua singularidade face ao resto da União Europeia: um acordo apenas sobre alguns temas, deixando outros para um eventual futuro entendimento.

Porquê? Porque uma negociação é sempre um todo, não deve converter-se num processo "fatiado", em que certas coisas se dão já por aceites e outras ...  "logo se verá". Quem admite uma cedência, sem quaisquer contrapartidas (e, nesta negociação, o resto de Europa não tem rigorosamente nada a ganhar, exceto o abrandamento da pressão britânica) perde todo e qualquer "leverage" para o segundo "round". A regra diplomática é muito simples: "nothing is agreed before everything is agreed".

Mas os britânicos são mestres nestas artes...

Boutros-Ghali e a ONU

Boutros Boutros-Ghali, um antigo secretário-geral das Nações Unidas, morreu agora no Cairo, aos 94 anos. Este católico copta egípcio, colaborador próximo de Anwar el-Sadat, de quem foi ministro, fazia parte de uma geração de francófonos que teve expressão diferenciada em vários países árabes, uma tradição hoje praticamente desaparecida, com a eventual exceção de alguns sectores monoritários no Líbano.

Conheci-o uma noite em Paris, num jantar na embaixada egípcia, aí por 2011. Recordo um homem sereno, já bastante marcado pela idade, com um sorriso agradável e opiniões "mainstream" sobre a vida internacional, muito típicas da cultura retórica das Nações Unidas. E, contudo, haviam sido precisamente as Nações Unidas a deixar uma marca traumática na sua carreira, como ficou patente num livro de memórias que escreveu e que, embora longe de ser brilhante, me ajudou a perceber um pouco mais sobre a organização.

Boutros-Ghali foi o único secretário-geral na história da ONU que não foi reconduzido no cargo. E isso não aconteceu por acaso. A administração Clinton não lhe perdoou a sua rejeição à "American-led" intervenção da NATO na Sérvia, aquando do conflito no Kosovo, sem mandato multilateral legitimador. Hoje já se conhecem melhor os sórdidos bastidores da manobra de Washington para colocar Kofi Annan no seu lugar e que também passou por oportunos "leaks" sobre atuações mais polémicas de Boutros-Ghali na região dos Grandes Lagos e na Somália.

Nestes tempos em que a diplomacia portuguesa desenvolve os seus melhores esforços para bem posicionar António Guterres na corrida à Secretaria-geral da ONU, é importante que saibamos retirar as devidas lições de casos como o de Boutros-Ghali.

O equilíbrio que permite a um secretário-geral sobreviver no cargo passa por um jogo de compromissos que será suicida esquecer. Quem pense que um candidato ao lugar pode, com frontalidade, apresentar um programa de trabalho que reduza, ainda que minimamente, as margens de manobra dos "powers that be" dentro da organização engana-se redondamente. As Nações Unidas são uma organização muito complexa, não imune a regras de cinismo e de "faz-de-conta". Um SG não pode, por exemplo, e em absoluto, tomar decisões que possam ser vistas como desequilibrando o papel da Assembleia Geral, do ECOSOC e do Conselho de Segurança e, no seio deste, afetar ou iludir a preeminência dos P5 (cinco membros permanentes).

Para ser eleito secretário-geral, um candidato precisa de ter uma noção muito clara dos compromissos que terá de vir fazer, da mediocridade de certos setores dentro da máquina que não deve tentar pôr em causa, dos egos e idiossincrasias com que terá forçosamente de se acomodar e, acima de tudo, da necessidade de ser habilmente modesto quanto à agenda que quiser apresentar.

Conseguirá permanecer sem sobressaltps como SG uma figura que não se atreva a contestar os poderes fáticos dentro da organização, procurando ganhar o espaço nas eventuais contradições que esses poderes tiverem entre si, mas tendo permanentemente em atenção que isso o não deve levar a tentar "crescer" no lugar através de um jogo de alianças que possa desafiar, ou ser "desleal", aos equilíbrios que permitiram a sua eleição.

António Guterres sabe tudo isto muito bem.

quarta-feira, fevereiro 17, 2016

Joseph William Crabtree (1754-1854)

                

Começámos (começaram) 100 anos após a data atribuída à sua morte. Desde 1954, um grupo de 200 personalidades, democraticamente cooptadas, reune-se uma vez em cada ano, no University College, em Londres, na quarta-feira mais próxima do "Valentine's day", para ouvir uma de entre elas pronunciar-se, durante uma boa meia hora ou mais, sobre um aspeto da vida, da obra e dos feitos dessa figura única da história polįtico-cultural e sócio-económica britânica que deu pelo nome de Joseph William Crabtree. Juntam-se aos membros da Crabtree Foundation mais de uma centena de convidados, rigorosamente selecionados. Por ali está a nata da sociedade britânica, professores universitários, artistas, membros do parlamento, banqueiros da City, diplomatas, militares, advogados, empresários e outros profissionais de relevo.

O nome do orador seguinte é anunciado no jantar anual, pelo que o indigitado tem suficiente tempo para se documentar com a informação necessária à sua palestra, até porque esta pode vir a ser contraditada (quase sempre é) por outros presentes, nomeadamente por uma figura central da sessão, "The Living Memory and Keeper of the Archives and the Seals", personalidade que vela pela compatibilidade e não contradição entre as "orations" ao longo dos anos. Os temas escolhidos para estas são totalmente livres, desde que revelem estudo aturado, investigação aprofundada e reflexão  intelectual adequada, com amor à verdade e à imaginação tida por necessária. Até hoje, foram já publicados dois belos volumes (edições "hard cover", com ilustrações) que recolhem as "orations" anuais sobre Crabtree. Um terceiro está a caminho, numa tarefa que incumbe ao "Keeper of the Scholars and the Colllected Orations".

Note-se que, no jantar, cujos vinhos são selecionados, com elevado critério, pelo "Vinter of the Foundation", o uso de "smoking" para os homens é obrigatório (é admitido, como exceção, o traje escocês), sendo que algum formalismo elegante (e conservador) no traje é exigido às senhoras. Estas começaram a ser admitidas como convidadas a partir de 1995 (foi uma noite de discussão atribulada, lembro-me bem) e, posteriomente (numa decisão também muito contestada, mas hoje já aceite, embora por alguns com visível resignação), as senhoras passaram a poder integrar a Crabtree Foundation como membros plenos, naturalmente dentro do estrito "numerus clausus", que nunca foi abandonado.

Convidado anteriormente durante dois anos, pela mão do saudoso e grande "scholar" crabtreeano que foi Bartolomeu Cid dos Santos, desde 1992 que tive a felicidade de ser chamado a integrar este distinto cenáculo, para o qual, diga-se, continua a haver listas de espera bem longas. Somos muito poucos os estrangeiros que foram até hoje admitidos, pelo que registo com grande honra o facto de já me ter cabido a presidência da Crabtree Foundation, no ano de 2012, responsabilidade que implicou a direção do rígido protocolo do jantar e a livre escolha do orador e do presidente para ano seguinte (selecionei uma mulher).

Convém sublinhar que não é só em Londres que a Crabtree Foundation se reúne. Há vários "chapters" distribuídos pelo mundo, de Harare a Glasgow, de Florença a Sidney, entre outras cidades. Em Lisboa estuda-se, desde há vários anos, a possibilidade de ser criado um "chapter", tanto mais que há fundada evidência das relações de Crabtree com o nosso país. Aliás, o espírito de Crabtree é cada vez mais universal, a sua mensagem espalha-se rapidamente à escala global e o passado desta personagem de perfil ímpar tem hoje assegurado um futuro radiante à sua frente.

Daqui a horas, lá estaremos, de novo. O tema da "oration" deste ano, anunciado há dias no jantar dos "Elder and Awful Guardians" (sete figuras centrais na direção da Foundation, cuja indicação e representatividade democrática, se bem que desconhecida, nunca é contestada - talvez por isso!), está já a causar "frisson" nos meios intelectuais londrinos: "How Crabtree won the Napoleonic Wars". Não excluo, por amor à verdade da História, no que concerne a Portugal, ser forçado a intervir no período de questões ao orador.

Algum leitor menos atento e menos habilitado é capaz de estar, a esta hora, a perguntar-se: "mas afinal quem foi Crabtree, o que é que essa figura fez de tão relevante que justifique que centenas de pessoas se reunam anualmente para saudar a sua memória?". Pode parecer presunçoso responder desta forma, mas apetece-me dizer que, se não sabe, talvez não mereça saber, o que me dispensa de ir muito mais longe.

Deixo, porém, umas últimas notas. 

Não excluo, em absoluto, que a alguns leitores possa ter chegado, ou vir a chegar, a malévola indicação de que Joseph William Crabtree é uma figura ficcional, inventada pelas "orations" que, ao longo destes 62 anos, foram produzidas a seu respeito. Eu próprio já ouvi dizer que "Crabtree nunca existiu" e outras barbaridades similares.

Outros poderão chegar a suspeitar, imagine-se!, que o retrato a óleo aqui reproduzido, que nos acompanha num cavalete durante os jantares e ao qual faremos a certo passo a reverente saudação, copos erguidos bem ao alto, com toda a sala a ecoar "To the Great Man!", teria, afinal, sido comprado em Portobello ou num mercado de rua similar.

Quem sabe se outros ainda pensarão, na pobre tristeza dos iludidos, que o cajado que, desde há décadas, figura sobre a mesa da presidência do jantar (e cuja guarda cabe ao "Keeper of the Cudgel"),  e que se sabe à saciedade ter sido usado por Crabtree na sua histórica travessia dos montes Apeninos, teria sido adquirido, afinal, num qualquer "car boot sale".

O leitor pode acreditar no que quiser. Nós fazemos exatamente o mesmo. Por mim, convertido em definitivo ao espírito de Crabtree, cá tentarei voltar todos os anos, como, desde 1995, fiz vezes sem conta de Lisboa, de Nova Iorque, de Viena, de Brasília ou de Paris.

Por Crabtree, tudo!

Radio-grafia da Europa

Numa conversa com André Rodrigues, jornalista da Rádio Renascença, por ocasião do 30° aniversário do Ato Único Europeu, falou-se do estado atual da Europa e dos principais problemas que o projeto integrador atravessa.

Pode ser lida aqui.

José Augusto Duarte


Para quem, como eu, não foi um apoiante de Marcelo Rebelo de Sousa, é um agradável "embaraço" ter de saudar as suas anunciadas escolhas pessoais, ainda antes da sua chegada a Belém. 

Já por aqui falei da chefia da Casa Civil, depois do Conselho de Estado onde, entre outras opções acertadas, vejo com agrado os nomes de António Lobo Xavier e António Guterres, dois amigos cujas qualidades são assim distinguidas.

Agora, surge o nome de um colega da minha antiga profissão, o embaixador José Augusto Duarte, que deixa a embaixada em Maputo para chefiar a assessoria diplomática da Presidência da República. 

Trata-se de um dos mais qualificados diplomatas da sua geração, que tem sido um excecional embaixador em Moçambique, sendo além disso possuidor de uma diversificada experiência profissional. Conheço-o há mais de duas décadas e, pelo seu perfil, dá sólidas garantias de um ir garantir um bom relacionamento interinstitucional. Mais uma excelente escolha! 

terça-feira, fevereiro 16, 2016

Brexit?

Estou em Londres no meio da campanha sobre o "Brexit", a expressão de que não gosto mas que, com facilidade, qualifica a possibilidade do Reino Unido vir a deixar a União Europeia.

O primeiro-ministro David Cameron, antes das anteriores eleições legislativas, prometeu aos seus concidadãos um referendo sobre a presença do país nas instituições europeias, na tentativa de reduzir a crescente deriva eurocética do eleitorado, que dava então alento ao UKIP, o partido que fazia da separação de Bruxelas o leit motiv da sua proposta. O UKIP, que tivera um bom resultado nas eleições europeias, acabou por não conseguir mais do que um deputado na Câmara dos Comuns, não tanto por virtude da estratégia de Cameron mas, em especial, pelo sistema eleitoral "first-past-the-post", que favorece a bipolarização e esmaga os terceiros partidos.

Cameron aprentou à UE uma "agenda reivindicativa", baseada na tentativa do Reino Unido se poder auto-excluir de algumas obrigações comunitárias. Algumas delas são inóquas e relevam apenas da idiossincrasia de um país que sempre viveu com um pé dentro e outro fora de uma Europa de que, contudo, usufrui fortemente. Mas outras, como algumas limitação às prestações sociais a trabalhadores oriundos de países da UE que trabalhem no RU, ou um "droit de regard" sobre o funcionamento da zona euro (de que o RU já não faz parte, como o não faz de Schengen, como o não faz da Carta dos Direitos Fundamentais, etc.), configuram um risco para a UE em geral, tanto mais que podem desencadear uma onda de derrogações que ponha em risco o funcionamento do conceito da livre circulação na Europa - uma das maiores conquistas das últimas décadas.

Portugal é o país europeu que tem mais cidadãos a viver noutros Estados da UE. Por essa razão, estamos preocupados com o facto do "acordo" da UE com o RU poder vir a incorporar uma linguagem concessionista que nos possa ser prejudicial. António Costa e o seu governo - em flagrante contraste com a passividade e até algum laxismo do anterior executivo - têm vindo a bater-se, em Bruxelas, por um compromisso equilibrado. O assunto poderá (ou não) ficar fechado esta semana em Bruxelas. Só podemos desejar que Portugal tenha sucesso nesta negociação.

Há dias, comentando a postura britânica na Europa, um responsável político português lembrava que o RU costuma garantir ganhos de causa da parte dos seus parceiros e, logo que "empochados" estes, parte de imediato para novas revindicações, num processo que nunca tem fim. Suscitei, na ocasião, o paralelo com as negociações financeiras com a Madeira. Ao longo de décadas, assistimos a Alberto João Jardim fazer "acordos" com o "continente" sobre a dívida da região. Meses depois, tudo recomeçava de novo. Ilhas! Devem ter aprendido com os ingleses, grande visitantes da Madeira...

O papel de um jornal

Foi anunciado que o diário britânico "The Independent", que tinha uma edição dominical autónoma, "The Independent on Sunday", vai deixar de publicar ambas as edições em papel, ficando reduzido ao "on-line".

O "The Independent" nasceu em 1986 e constituiu uma saudável revolução no meio dos chamados "quality papers" britânicos, desde logo no caráter mais "arejado" do seu grafismo. Um pouco mais à esquerda do que os clássicos "The Daily Telegraph" e "The Times", e de diferente natureza do "The Financial Times", competia, de certo modo, com o espaço político do "The Guardian", embora se distanciasse mais do Partido Trabalhista do que este último, afirmando uma atitude bastante "business-friendly". Nos fins de semana, o "The Independent on Sunday" era também um apreciável jornal, embora, na minha perspetiva pessoal, fosse inferior ao "The Observer", a edição dominical do "The Guardian". E dava-me menos gozo do que o "The Sunday Times", onde alguma irreverência conservadora assegurava grandes textos (não sei como hoje anda).

Quando fui trabalhar para a nossa embaixada em Londres, em 1990, comecei por pedir como jornal diário o "The Independent", que estava então "na moda". Ao final de algumas semanas, dei-me conta de que uma boa parte da "inside information" sobre o governo conservador da senhora Thatcher me escapava, pelo que passei também a ler diariamente o "The Times". Com a as questões europeias a tornarem-se cada vez mais decisivas em Londres (como agora volta a acontecer), passei a mandar vir também o "The Financial Times". Mas, pouco tempo depois, continuando por preconceito a fugir aos tablóides matinais ('The Sun", "Daily Mirror", "Daily Mail", "Today", "News of the World"), converti-me à leitura diária do "The Evening Standard", um (bom) vício do qual nunca me libertei até ao meu último dia em Londres (ainda ontem o li com proveito, agora gratuito). Eram assim quatro os meus jornais diários, para além do americano "The International Herald Tribune" (hoje transformado em "International New York Times", depois de perder as contribuições do "The Washington Post" e do "The Los Angeles Times") e do francês "Le Monde", a que se somavam ainda os semanários "The Economist", "The New Statesman" e o "The Private Eye". Aos domingos, o "vício" era ainda bem maior: comprava o "The Telegraph on Sunday", o "The Independent on Sunday", o "The Observer" e, claro, o "The Sunday Times". Cerca das duas da manhã, saía de casa e ia a uma "loja de conveniência", aberta 24-sobre-24 horas, adquirir todos aqueles quilos de papelada (esses jornais dominicais pesam aí dois quilos cada um), regressando a casa, regalado, para lê-los pela madrugada dentro. Outros tempos, que eram também uma implícita homenagem à melhor imprensa do mundo, a britânica! Qualquer dia, o "on-line" muda tudo e reduz-nos ao iPad.

Quando "morre" um jornal em papel sinto alguma pena, confesso, embora compreenda que não podemos contrariar o destino. E ele vai inexoravelmente no sentido da eliminação do papel, em favor da imagem por via informática. É bom? É mau? Acho que não devemos ter grandes estados de alma. É a vida!

Daqui a pouco, aqui por Londres, vou comprar o "The Independent", quanto mais não seja para verificar se, muito saudavelmente, anuncia o jantar anual da Crabtree Foundation, que aqui me traz.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...