Ontem, no almoço comemorativo dos 90 anos de Mário Soares estava, naturalmente, Freitas do Amaral. E lembrei-me do combate entre ambos, em 1986. E de mim, por essa altura.
Tinha acabado de chegar de Angola, em novembro de 1985. Passara mais de três anos na embaixada em Luanda, em tempo de guerra civil, com recolher obrigatório permanente, numa cidade de vida difícil e muitos riscos. Pouco tempo antes, o diretor-geral dos Negócios políticos do MNE passara por Luanda e sondara-me sobre se eu estaria disposto a vir mais cedo de Angola, sendo que o "timing" normal seria meados de 1996. Oferecia-me a oportunidade de um interessante lugar de chefia em Lisboa, na estrutura dos assuntos europeus, que fora criada para a próxima entrada de Portugal nas comunidades. Isso mudaria inesperadamente a minha vida, mas decidi arriscar, não apenas porque estava bastante cansado de Angola mas, principalmente, pelo interesse que tinha em aproveitar essa experiência inédita na aventura europeia - mais interessante ainda porque, à época, eu estava muito longe de ser um entusiasta pelas ideias europeias. Fiz as malas um tanto à pressa e, ainda com uma casa em obras em Portugal, saí de Luanda e vim para Lisboa. Nesse entretanto, no mês anterior, tinha havido eleições legislativas em Portugal, que o PSD ganhara, já com Cavaco Silva. Quando cheguei às Necessidades, fui apresentar-me ao secretário-geral do ministério. Notei-o algo embaraçado, pouco à vontade. É que me esperava uma desagradável surpresa: o novo governo decidira não confirmar o convite que me fora feito. Eu não teria a chefia prometida. Melhor: não teria mesmo nenhuma chefia! E, por várias semanas, nem lugar para me sentar iria ter...
Não era assim o melhor o meu estado de espírito, nesse início de 1986. Na política e não só. A campanha eleitoral em curso em Portugal não me entusiasmava muito. À esquerda, Mário Soares disputava com Salgado Zenha e Maria de Lurdes Pintasilgo a possibilidade de bater Freitas do Amaral, numa possível segunda volta. Tinha a maioria dos meus amigos distribuídos por aqueles três candidatos. Como cidadão, a minha preferência, embora sem excessivo entusiasmo, ia para Zenha, mas eu nem sequer estava inscrito para votar em Portugal. Confesso que então me assustou bastante o discurso da direita, os chapéus de palhinha e os "loden" verde-garrafa que marcaram a campanha de Freitas, por detrás de quem sentia escondido um Portugal contra o qual, pouco mais de uma década antes, eu fizera o 25 de abril. Algumas das caras que rodeavam Freitas do Amaral eram sinistras e não me mereciam a menor confiança democrática. Por semanas, criei mesmo a exagerada sensação de que a eventual chegada deste a Belém poderia significar o início de um regresso ao "fascismo". Por isso, a vitória de Mário Soares, numa muito difícil segunda volta, acabou por ser um dos mais felizes dias políticos da minha vida. Nessa bela noite de Lisboa, avariei, por excesso de utilização, a buzina do meu carro!
Uns anos mais tarde, numa deslocação a Nova Iorque quando estava no governo, andando pela rua com Freitas do Amaral, depois de um jantar, confessei-lhe: a possibilidade da vitória dele, em 1986, havia sido, para mim, um dos momentos mais angustiantes, como cidadão. Freitas do Amaral sorriu e disse-me: "Espero que, com o passar dos anos, tenha percebido que eu não era um fascista". Tinha toda a razão. Embora o futuro nunca me tenha dado uma absoluta certeza daquilo que Freitas do Amaral politicamente é, reconheço, sem a menor dificuldade, que não é um "fascista". E que, pelo menos por ele, o meu susto de 1986 era exagerado. Mas lá que essa vitória de Mário Soares foi muito saborosa, lá isso foi...