domingo, setembro 12, 2021

Meia dúzia de histórias com Jorge Sampaio - a reunião


1995. Naquele tempo, o “Expresso” saía aos sábados. E, porque era sábado, bem ao final da manhã, eu preparava-me para ir à tabacaria, na zona do Campo Pequeno onde então vivia, recolher aquele e outros periódicos. Abri a porta do meu 5° andar esquerdo e, como às vezes acontecia, dei de frente com a já idosa empregada dos meus vizinhos que moravam no direito, uma simpática senhora com quem vulgarmente falava do tempo e das avarias do elevador. 

“Esteve aí o senhor presidente, à sua procura, logo de manhã!”, disse-me. O “presidente”? O presidente da República era Mário Soares e não era minimamente plausível que ele viesse a minha casa. “Qual presidente?”, inquiri, surpreendido. “O presidente da Câmara, o Dr. Jorge Sampaio”. 

Fez-se-me logo luz! Eu tinha combinado com Jorge Sampaio que ele viesse a minha casa à “nove e meia”. Só que não disse “da noite”, no pressuposto que ele estaria ciente de que as manhãs dos sábados eram sagradas para o meu sono. Sampaio entendeu que era “da manhã” e, britânico nos costumes, lá tinha estado a essa hora, pontualmente. Eu não tinha ouvido o toque da campainha. Telefonei-lhe, de imediato, rimo-nos do equívoco e, pelas “vinte e uma e trinta” desse mesmo dia, ali regressou ele, de novo. 

Para quê? Para a primeira de várias reuniões que o já candidato à presidência da República queria ter sobre temas de política externa, para as quais tinha pedido que fosse mobilizado um grupo de diplomatas da sua confiança pessoal. Ali estavam Luís Castro Mendes, José Filipe Morais Cabral, José Freitas Ferraz e eu. A nós, se juntava Carlos Gaspar, professor universitário, que já tinha sido assessor de Mário Soares. 

Sampaio tinha-nos dito que, para essas reuniões, não queria papéis, só ideias. O objetivo era poder ter connosco um “brainstorming” regular sobre as grandes questões internacionais, cruzando perspetivas, alvitrando cenários de possível evolução. 

Ficou sempre muito claro que Jorge Sampaio estava bem atento ao mundo, que a nossa contribuição apenas podia servir para algum refrescamento de ideias, em particular sobre alguns dossiês mais específicos e técnicos. Não tenho presente quantas destas reuniões tiveram lugar, mas guardo-as numa muito boa memória.

Hoje


No dia de hoje, apetece-me começar com esta fotografia.

sábado, setembro 11, 2021

A História está sem pressa


No dia 11 de setembro de 2001, cerca de oito meses decorridos desde a sua entrada em funções como presidente, George W. Bush ainda não se dignara nomear um embaixador para a ONU - mas sabia-se que, quando o fizesse, essa pessoa não iria ter um estatuto de membro do Gabinete, o que é sempre um sinal claro da falta de interesse de uma administração dos EUA pela instituição central do mundo multilateral. Numa ciclotimia comum na América, a um presidente atento ao diálogo com os parceiros, sucedia-se um outro mais propenso ao autismo na afirmação do poder.

Nos corredores do palácio de vidro de Nova Iorque, por onde andava nesse tempo de 2001, como embaixador português, a vontade americana era ainda pouco visível e explícita. Os meus colaboradores, que frequentavam as várias comissões, diziam-me que os seus contrapartes americanos viviam de ordens pontuais vindas diretamente de Washington, sem a menor autonomia e sentido de coerência dado pela Missão ali presente.

Recordo-me que, no tocante às questões da paz em Angola e em Timor, que nos preocupavam, estávamos a ter grande dificuldade para perceber se haveria algum novo rumo em Washington e de que modo ele se objetivaria em decisões concretas. Esperava-se, claro, uma agenda muito mais conservadora, mas era imperativo saber quanto ela o seria e qual acabaria por ser o papel da ONU nesse contexto. No fundo, todos aguardávamos, com grande curiosidade, o discurso que George W. Bush iria fazer na Assembleia Geral da ONU, que teria o seu início no dia 12 de setembro.

Mas ainda estávamos a 11.

Eu tinha saído de casa a tempo da reunião semanal de coordenação que os embaixadores da UE tinham todas as terças-feiras, num prédio em frente da ONU.

À entrada, Jean-David Levitte, o meu colega francês, disse-me saber que havia um incêndio numa das torres do World Trade Center. Isso explicava uma nuvem escura comprida, que ia muito alta e que eu observara, do carro, no caminho para ali. Segurámos a porta do elevador para o colega britânico, Jeremy Greenstock, que se aproximava e que sabia um pouco mais: um avião fora contra uma da torres.

Não me ocorreu então, com toda a certeza, que quase trinta anos antes, em dezembro de 1972, tinha visitado, como turista, uma das Torres Gémeas, com a segunda ainda em construção. E, seguramente, também não me passou no momento pela cabeça que, três meses antes daquela manhã, com o meu pai, então com 91 anos, estivera no topo de uma dessas torres. O que me veio à memória, disso tenho lembrança, é que, não muito tempo antes, uma avioneta fora de encontro, por acidente, a um edifício, algures em Itália. Poderia tratar-se de um caso idêntico.

Não era. Minutos depois, connosco já dentro da sala de reuniões, fomos chamados para ver novas imagens televisivas, que revelavam que a segunda torre tinha sido atingida por outro avião. Eram atentados, claro. Já não sei quanto tempo depois, surgiu a notícia de um outro avião despenhado no Pentágono. Que mais estaria para acontecer?

Entretanto, Nova Iorque foi mudando. As Nações Unidas foram evacuadas, a cidade foi encerrando, os sons das ambulâncias e os carros de bombeiros, que sempre fizeram parte do cenário sonoro da cidade, foram-se tornando mais angustiantes. As torres, uma após a outra, colapsaram. Nesses momentos, em que se formou a nuvem de pó que iria pairar por muito tempo pelo sul de Manhattan, espalhando mais tarde um cheiro ácido pela cidade, a dimensão real da tragédia abriu-se definitivamente para nós.

Por uma cidade em estado de sítio, fui, a pé, para a nossa Missão, ali perto. As pessoas, apressadas, olhavam-se, caras aturdidas. Mandei o pessoal para casa. As escolas estavam a fechar, as pontes de acesso à ilha de Manhattan iam ser encerradas.

De Lisboa, telefonou-me Jorge Sampaio, presidente da República. Para saber como estávamos. E o secretário-geral do MNE, João Salgueiro. A queda das torres afetara um centro vital de comunicações. Recebíamos chamadas, mas não conseguíamos ligar para o estrangeiro. Aproveitei um telefonema de uma jornalista do “Expresso”, cujo nome não anotei, para lhe pedir que ligasse ao meu pai, em Vila Real, para o sossegar. Fê-lo, ainda hoje não sei quem foi, mas agradeço-lhe muito, vinte anos depois.

Quem fizera tudo aquilo? Ainda antes dos atentados serem reivindicados, quase ninguém tinha dúvidas de que mão radical islâmica estava por detrás da barbárie. O ódio à América era imenso e só um fanatismo sem limites podia ter causado aquela aventura. De uma coisa havia a certeza: nada seria igual, a partir daí. A raiva, o desespero, o desejo de vingança, perante aquela infâmia, viriam ao de cima, com toda a força.

Quando, dias depois, Bush foi falar às Nações Unidas, ao olhar para ele, sentado no meu lugar, por detrás da placa de Portugal, não fiquei com a menor dúvida. Era uma outra América que aí vinha. O mundo do “não vale tudo” tinha sido posto definitivamente de lado. Valeu tudo: liberdades públicas, discriminação étnica, Abu Ghraib, torturas, Guantanamo, Iraque, centenas de milhares de mortos. Foi tudo em vão? Não foi, mas não me consta que os ódios se tenham atenuado, a “rua árabe” não sossegou, as suas “primaveras” invernaram de vez, no Afeganistão as coisas são hoje o que são.

Se o 11 de setembro foi o “dia zero” para um outro mundo, estaremos assim tão longe dele, vinte anos e milhões de gastos e de sofrimentos depois? A História anda devagar, olhando para Cabul, parece mesmo estar sem grande pressa.

sexta-feira, setembro 10, 2021

Jorge Sampaio

(Foto de João de Vallera)

Há uma imagem que me ficou para sempre. Foi numa enfermaria do hospital dos Capuchos, há pouco mais de quatro anos. Nuno Brederode Santos aproximava-se, já inconsciente, do fim da vida. Jorge Sampaio entrou e, ao final de uns minutos, emocionado como ele ficava com as coisas que o tocavam, pediu para ficar a sós com aquele que foi talvez o seu maior amigo. Por longos minutos, deixámo-los ali, numa conversa silenciosa.

Pensei então que aquele encontro significava, verdadeiramente, o fechar de ciclo de uma geração que, não sendo exatamente a minha, mas a que eu me tinha ligado fortemente e que me tinha marcado para sempre. Um corpo de ideias e um grupo de pessoas em cuja atitude e forma de estar na política e na vida eu me revia muito. E que tinha em Jorge Sampaio o seu óbvio expoente.

Há não muito tempo, escrevi isto num jornal: “Sampaio é uma figura muito rara no cenário político português. Nunca o vi vacilar em matéria ética, nunca lhe notei nenhuma transigência em termos de observância dos princípios que a si próprio se impunha para estar na vida pública. Às vezes, surpreendi-me com a constatação de que convivia, com demasiada naturalidade, com o facto de outros não serem assim. Alguns viam nessa sua atitude uma certa condescendência, a implícita afirmação de uma superioridade moral. Não creio tratar-se disso. Sempre interpretei essa postura de Jorge Sampaio como a manifestação de uma saudável distância face àquilo a que os franceses chamam a “politique politicienne”, que entre nós se traduz lindamente por “política politiqueira”.

Acompanhei com atenção, primeiro a alguma distância, depois mais de perto, a vida cívica de Jorge Sampaio. Não o fiz por mera curiosidade, mas muito mais por, desde há muito, ter sido seduzido pela sua forma única de estar na praça política. Nem sempre estive de acordo com opções que tomou, critiquei escolhas que fez, mas, sem a menor hesitação, posso hoje dizer que me revejo largamente naquilo que soube construir, enquanto figura política. A decência (gosto muito da palavra e acho que se lhe aplica como a poucos) que imprimiu à sua forma de atuar soube granjear-lhe uma genuína admiração por parte de gente de quadrantes muito diversos, às vezes contrastantes. Estou certo que História ser-lhe-á justa, tanto mais que se há uma marca que se lhe cola à imagem, desde sempre e para sempre, essa é a de um apurado sentido de serviço público, feito de uma dedicação permanente à causa da democracia e da solidariedade coletiva. A geração a que pertenço fica a dever-lhe um raro legado de ética e integridade política.”

Não tenho muito mais a acrescentar, na hora da sua morte, a este bosquejo cívico. Mas posso e devo somar a isso o sentimento de sincera amizade que, ao longo de todo o tempo que privei com Jorge Sampaio, com ele criei, extensivo à sua família, à sua mulher Maria José, à Vera e ao André, no que sou plenamente acompanhado pela minha mulher, que de todos se sentiu sempre próxima. Ambos devemos a Jorge Sampaio, ao longo dos anos, gestos de imensa simpatia, de grande confiança, de forte cumplicidade. A sua morte, se bem que anunciada, deixa-nos uma imensa tristeza. 

(Ilustro este texto com uma fotografia de Jorge Sampaio da autoria de um seu grande amigo, o embaixador João de Vallera)

quinta-feira, setembro 09, 2021

Sousa Tavares


Não sou amigo de Miguel Sousa Tavares. Conhecemo-nos socialmente, a primeira vez creio que em Brasília, em casa de uma amiga comum, a segunda num jantar com um escritor estrangeiro, aqui por Lisboa. Um dia, fui à TVI, a um telejornal, falar com ele sobre Biden e Bolsonaro. Creio que foi tudo. Fica este “disclaimer” para dizer, com à-vontade, o que, a seguir, vou dizer.

O Miguel Sousa Tavares jornalista é uma figura que, há muito, leio com prazer e, em especial, com proveito, desde os tempos da “Grande Reportagem” à sua página no “Expresso”. Mais recentemente, tenho-o visto pouco na televisão, meio que, desde há um ano, frequento com uma imensa parcimónia. 

Longe de mim, quando o leio ou oiço, estar sempre de acordo com ele! Mas reconheço-o como alguém que pensa a realidade portuguesa com um olhar culto, informado e empenhado. Além de que Sousa Tavares, mesmo quando comete erros, me pareceu sempre genuíno e sério, sem agendas escondidas nem sendo portador de recados de ninguém.

Pode não se apreciar o seu estilo enfático, às vezes quase sobranceiro, outras muito militante de certas causas que parece serem quase “teimas” pessoais. Muitas vezes, nessa frontalidade destemida para afirmar coisas, até em alguma ligeireza menos desculpável de certas abordagens, faz-me lembrar o seu pai, Francisco Sousa Tavares, uma figura muito interessante, um homem que tinha a polémica à flor da boca, e que igualmente correu os riscos de quem teimava em pensar, às vezes com erros e injustiças, pela própria cabeça.

Miguel Sousa Tavares tem algumas “manias” e ódios ou amores de estimação com que às vezes embirro, que me irritam - e imagino que irritem muitos de quantos por aqui me leem. Mas gostava de deixar bem claro que, correndo os riscos que qualquer “tudólogo” sempre corre, ele esteve sempre a anos-luz, em matéria de qualidade, de alguma mediocridade que hoje pensa estar a ilustrar-se, quando fala por aí, às vezes do que não sabe nem estudou nem deu mostras de ter percebido, em colunas e comentários. 

Por isso, reconhecendo o direito a Miguel Sousa Tavares de se ter cansado de tanta exposição mediática e ter decidido arrumar as botas da escrita precária para se dedicar àquilo que também faz muito bem - a escrita literária - quero dizer que não fico feliz com a sua saída do espaço público. E que, decididamente, não me coloco ao lado dos que aplaudem a sua “reforma” do jornalismo. Mas, tomada que foi a sua decisão, só posso desejar que ele se sinta mais feliz assim. Afinal, a vida é dele!

FLAD


A convite da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, debati hoje com António Vitorino, numa conversa posteriormente alargada a convidados, transmitida pelas redes sociais, o 11 de Setembro, as suas decorrências e antecedentes. Tivemos oportunidade de refletir sobre o modo como a América e o mundo mudaram por virtude daqueles acontecimentos, sobre o estado das coisas no Afeganistão depois da saída dos americanos, sobre a posterior aventura no Iraque e, muito em particular, sobre o modo como o islamismo radical evoluiu desde então. E também olhámos para o futuro do combate ao terrorismo. Uma bela iniciativa e um excelente momento de análise, para celebrar um dia muito triste para o mundo.

quarta-feira, setembro 08, 2021

“A Arte da Guerra”


Esta semana, naturalmente, o “A Arte da Guerra” é dedicado ao 11 de Setembro. Pode ver e ouvir clicando aqui: https://fb.watch/7UO8uDOKD0/

‘A Arte da Guerra”

Nos meios audiovisuais do “Jornal Económico”, em “A Arte da Guerra”, falo esta semana com António Freitas de Sousa sobre os “leaks“ relativos aos “paraísos fiscais” que estão a agitar a sociedade política internacional, sobre as dificuldades algo inesperadas que Joe Biden está a encontrar no seio do Partido Democrático, sobre as tímidas aberturas democráticas no Qatar e a situação nos restantes Estados do Golfo Arábico, bem como a questão das provocações militares de Beijing ao regime de Taiwan, com análise ao peculiar estatuto internacional deste território.

Pode ver o programa aqui.

Adriano


Lembro-me muito bem da primeira aula a que assisti, tendo Adriano Moreira como professor. Foi em outubro de 1968, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU), de que Adriano Moreira era diretor. Caramba, foi já há 53 anos! E Adriano Moreira fez agora 99 anos.

Adriano Moreira era, à época, um nome de que muito se falava - mas sobre o qual, por razões que a conjuntura tornava óbvias, muito pouco se escrevia. Dias antes, Marcello Caetano fora nomeado pelo presidente Américo Tomaz para a chefia do governo, em substituição de Salazar, afastado por doença.

Nos conciliábulos do regime e não só, Adriano Moreira havia sido muito citado como uma possível opção, mas os equilíbrios que se refletiram na decisão do presidente da República não o favoreceram. À época, falava-se nas resistências que o seu nome suscitaria em certos círculos militares, embora outras opiniões fossem no sentido de que outras tendências castrenses desejavam vê-lo em S. Bento. A verdade é que, no saldo decisório final, Adriano Moreira ficou arredado da sucessão de Salazar, em benefício de Marcelo Caetano. E, este, logo que pôde, pela mão do ministro da Educação José Hermano Saraiva, herdado da equipa governativa que o velho ditador ainda entronizara pessoalmente no mês de agosto anterior, cuidou em afastá-lo da direção do ISCSPU, nos primeiros meses de 1969.

Para os estudantes, esta evidente conflitualidade com Caetano dava a Adriano Moreira uma auréola de alguma "oposição", que se vinha a somar à imagem vaga, que alguns "connaisseurs" espalhavam à boca pequena, dos seus tempos de jovem advogado, em que chegara a estar detido pela polícia política, pela sua ação de defesa dos interesses da família do general Godinho, cuja morte misteriosa na prisão, na decorrência de uma tentativa de golpe militar nos anos 40, fazia parte das mitilogias recorrentes da Oposição.

Não parecia, assim, estranho que o movimento estudantil dentro do ISCSPU, que se vira provocado pela "não homologação" ministerial da lista vitoriosa nas eleições desse ano para a associação académica, acabasse por se aliar taticamente a Adriano Moreira. Como membro que fui dessa direção associativa, tenho uma memória muito viva da gestão dessa "aliança", que teve em Narana Coissoró, um fiel escudeiro de Adriano, uma figura proeminente. Recordo também a dificuldade que alguns de nós tínhamos em ver a nossa ação articulada com a agenda política e pessoal de um antigo ministro de Salazar, pelo "risco" de estarmos a ser instrumentalizados por uma das fações dentro do regime.

Adriano Moreira era um professor brilhante, com uma exposição atraente, que nos gerava vontade de ir mais longe naquilo que nos transmitia. Começava as aulas em voz muito baixa, para desfazer as conversas residuais na sala. Ao falar, circulava o olhar, fixando-se, por instantes, em cada um de nós, o que dava a impressão de se nos dirigir individualmente. Como a política era, como dizem os franceses, o seu "fond de commerce", nós distinguiamo-la sempre por detrás de todos o seus comentários, onde o esquerdismo de alguns procurava descortinar tudo o que se assemelhasse a odor a heterodoxia.

Adriano - era assim que a ele nos referíamos, entre nós - tinha a rara habilidade de ir suscitando uma controlada polémica política entre os alunos. A minha antiga colega Maria João Bustorff lembrava-me, há tempos, o modo como ele estimulava debates entre mim e o António Marques Bessa, cada um de nós situado em lados bem antagónicos do espetro político, em confrontos nas aulas que sempre tinham temas do programa académico como motivo formal. Belos tempos! (Um abraço para a Maria João e para o António!)

Pouco a pouco, nessas aulas, íamos sendo introduzidos na matriz do pensamento de um homem que, um dia, Salazar escolhera, um tanto inesperadamente, para a pasta do Ultramar, na sequência da rebelião angolana de 1961, mas cujo espírito reformista o regime não conseguira acomodar e cuja frontalidade acabaria por conflituar com o poder administrativo do então governador-geral de Angola, general Venâncio Deslandes, o que levaria o chefe do governo a tomar um dia a decisão de ver-se livre, simultaneamente, dos dois.

Adriano Moreira não era um proselitista deliberado, não cuidava em endoutrinar-nos, não veiculava uma ideologia clara. Era um questionador do quotidiano, alguém que problematizava e nos obrigava a refletir. Sentiamo-lo, claramente, de um "outro lado" que não era o nosso, mas, estranhamente, a suavidade do seu estilo não provocava uma antagonização aberta. E isso, às vezes, como que nos enfurecia interiormente: nós fazíamos parte de uma geração maniqueísta e Adriano Moreira furava essa cómoda dualidade bipolar.

Com o 25 de Abril, o radicalismo saneador dentro do ISCSP (que, entretanto, perdeu o "U", como o país também perdeu o "ultramar"...) fez com que Adriano Moreira se visse obrigado a ir fazer vida no Brasil. Foi uma decisão estúpida e sem sentido, contra alguém que, não obstante as críticas que se pudessem fazer ao seu percurso político anterior, tinha tido sempre um comportamento exemplar face aos alunos e à "nossa escola" (era assim que Adriano Moreira se referia sempre ao Instituto), que nela nunca perseguira ninguém (outros o fizeram, e sei pessoalmente do que falo) e a quem o ensino universitário português - e as Ciências sociais, muito em particular - bastante deviam.

Fiquei satisfeito quando esse seu afastamento chegou ao fim e tive o prazer de lho poder dizer, cara a cara, uma noite de 1979, na Gulbenkian. E gostei muito da sua resposta: "Fico contente de ouvir isso, particularmente vindo de si".

Adriano Moreira, depois do seu regresso de Portugal, envolveu-se na política democrática, sempre de uma forma elegante, sem chicanas nem grandes polémicas. Com naturalidade, a área democrática mais conservadora foi o seu espaço de expressão cívica. Porém, fê-lo sem posteriores "travestismos", sem saltitar em conúbios oportunistas, umas vezes com a esquerda, outras vezes com direita, como aconteceu com certos cataventos da história portuguesa contemporânea. Manteve, em paralelo, uma atividade académica intensa e, pela imprensa, continuou a espalhar um pensamento em matéria de relações internacionais com uma profundidade muita rara entre nós.

Ao longo dos anos, continuei a encontrar Adriano Moreira pelas esquinas da vida, nos diversos tempos profissionais que tive, tendo com ele colaborado em várias iniciativas e dele recebendo gestos de amabilidade e simpatia, que sempre cuidei em retribuir.

Há uns anos, Adriano Moreira publicou um livro com as suas memórias. Nesse seu reencontro com o passado, e embora se possam entender as razões por que o terá feito, Adriano Moreira ficou, na minha perspetiva, bastante longe da síntese de vida que seria de esperar de uma figura com a sua estatura. Senti por ali inesperados compromissos, de uma natureza idêntica àqueles que, no passado, o levaram, algumas vezes, ao desnecessário facilitismo que foi o rodear-se de gente que não estava ao seu nível, nomeadamente no mundo académico, mas também político.

Adriano Moreira tem uma qualidade - moral, humana, política e académica - que, a meu ver, se situa bastante acima do modo como serviu algumas das conjunturas em que esteve inserido. Daí que, sendo um hoje um senador muito respeitado e prestigiado, tenha tido um destino público que ficou manifestamente aquém de um lugar na vida portuguesa que, com justiça, poderia ter sido o seu.

Parabéns ao meu professor Adriano Moreira, por estes seus magníficos 99 anos.

terça-feira, setembro 07, 2021

Merkel


16 anos no poder. Em metade deles, não gostei nada da senhora. Na outra metade, reconheci que estava errado e percebi que era uma notável estadista. E como esta segunda opinião acaba por ser a última, para mim esta é que importa. E mais: já começo a ter saudades dela.

segunda-feira, setembro 06, 2021

Campos Elísios


Jean Seberg já se foi há muito. O Herald Tribune já teve dois nomes depois. Os Campos Elísios, também eles, já não são o que foram. Hoje, foi-se embora Jean-Paul Belmondo. Nada disto é fácil.

Um sete de setembro diferente


De amanhã a um ano, em 7 de setembro de 2022, passarão 200 anos desde que, como reza a História, o príncipe dom Pedro terá dado o chamado “grito do Ipiranga”, a proclamação da vontade de independência da colónia do Brasil, território que o pai, o rei dom João VI, tinha deixado ao seu cuidado depois de regressar definitivamente a Portugal.

O “sete de setembro” é a data que o Brasil comemora como sendo o início da auto-determinação do seu futuro, libertando-se da tutela do poder de Lisboa. É, por ali, um dia que simboliza a unidade nacional, num país que é cioso da sua identidade própria e dos valores daquilo a que chama a “brasilidade”.

Porém, como acontece um pouco por todo o mundo com datas congéneres, este dia foi-se transformando, para a maioria dos cidadãos, num mero feriado, sem particular apelo popular, salvo um ritual desfile, quase sempre com escassa mobilização, que ocorre em Brasília, na presença do presidente.

Este ano de 2021, as coisas poderão ser diferentes.

O Brasil tem atravessado tempos de forte tensão política, que não será ousado dizer que tem como principal fautor um presidente da República que teima em identificar a sua sobrevivência no poder com um desígnio de interesse nacional, tendo vindo a gerar uma crescente tensão com outros órgãos de poder, nomeadamente com a área judicial, que está a colocar um sério desgaste à imagem do país pelo mundo.

Eleito num processo de polarização político-ideológica que ele próprio fez questão de nunca deixar atenuar, praticamente desde o dia do sufrágio, Jair Bolsonaro recheou o seu governo e a estrutura administrativa de topo de figuras militares, a maioria delas claramente saudosa do tempo da ditadura que as forças armadas protagonizaram entre 1964 e 1985. Com este presidente, os militares tornaram-se assim claros usufrutuários de interesses materiais, constituindo hoje um forte lóbi que se sente protegido pela continuidade do Bolsonaro. Este revela uma flagrante impreparação para o cargo que exerce, o que terá já sido constatado por muitos que nele votaram e que, entretanto, com ele se desiludiram. Nos dias de hoje, Bolsonaro é visto como uma figura caricata, aos olhos dos seus pares internacionais, o que não deixa de afetar a imagem do país a que preside.

As recentes decisões do Supremo Tribunal Federal de isentar, por falta de provas e por parcialidade nos processos de que foi alvo, o antigo presidente Lula das acusações que o impediram de disputar as eleições presidenciais de 2018, com evidenciação do artificialismo de muitas das acusações cumulativas que sobre ele impenderam, faz com que ele se torne hoje numa ameaça à recondução do atual presidente, no sufrágio de 2022.

Embora distante do quase unanimismo de apreço popular com que abandonou o poder em 2011, Lula, ao que revelam todas sondagens, pode vir a funcionar como um fator polarizador ganhador contra Bolsonaro. O mal-estar público contra este, expresso em manifestações um pouco por todo o Brasil, muito focadas na gestão caótica da pandemia que o seu governo titulou, aponta no mesmo sentido. A rejeição a Bolsonaro só não será maior porquanto muitos que lhe deram o seu voto em 2018 continuam a não se rever no antigo presidente e prefeririam uma “terceira via”, a qual, no entanto, parece não ter condições de se materializar.

O presidente não se dá, contudo, por vencido. Amanhã, 7 de setembro, pretende suscitar uma forte mobilização dos seus apoiantes, um pouco por todo o país. A escala desse movimento e, em especial, o modo como ele se processar, com a atenção concentrada na atitude das forças armadas e de outras estruturas de segurança, pode ajudar a perceber em que estado de normalidade se encontra, afinal, a democracia brasileira.

O 7 de setembro de 2021 pode, desta vez, não ser apenas uma data ritual.

sábado, setembro 04, 2021

Uma bela noite!

 


No estrado, as clássicas mesas e cadeiras do Café Excelsior onde estávamos sentados traziam o sabor a uma certa Vila Real mais antiga, que o “A Cidade Imaginária” modestamente pretende celebrar. Vitor Nogueira, diretor da Biblioteca Municipal de Vila Real, fez uma simpática e muito culta apresentação do livro, sob cuja chancela a publicação acontece. Na audiência, muitos amigos. Foi uma bela noite! E vão oito!




sexta-feira, setembro 03, 2021

Hoje à noite

 


“A Arte da Guerra”


Naturalmente, tratamos do Afeganistão, mas também falamos do agravar das tensões diplomáticas entre Marrocos e a Argélia, bem como do significado político da agenda anti-vacinas e as suas possíveis relações com a extrema-direita internacional. Tudo isto no “A Arte da Guerra” desta semana, na plataforma multimédia do “Jornal Económico”, na conversa com o jornalista António Freitas de Sousa.

Pode ver aqui: https://fb.watch/7NOdfTF9lA/

Três mil carateres


Foi muito simpático este convite. Deram-me liberdade para escrever sobre o que me apetecesse. O jornal, ao fazê-lo, estava longe de saber que sou um seu leitor, desde o primeiro número. Verdade seja que, de há uns tempos a esta parte, já só me apetece ler aquilo com que sei, de certeza segura, que não vou concordar. Ora o “Novo”, com uma frontalidade rara, traz sempre, nas suas colunas, muito daquilo que eu claramente não penso nem penso vir a pensar. Mais ainda: defende, quase sempre, precisamente o contrário daquilo que são as minhas ideias. E isso é valiosíssimo! Cada vez me convenço mais de que ler aquilo com que sei que vou estar de acordo é uma redundância comodista. Para pensar como eu penso, basto eu! O que hoje cada vez mais me interessa - e não estou a ironizar, podem crer - é o confronto de opiniões, a guerra das trincheiras, verbais ou tecladas. Há nisto um pouco de masoquismo? Seja, mas tem muito mais graça assim. Porém, vindo eu de outra “freguesia”, uma pergunta impõe-se: que diabo posso aqui trazer que leve o leitor médio do “Novo” a ler-me? É que já estou a imaginar a maioria dos que chegaram a esta página três do jornal a refilar: “Quem foi que teve a ideia de pôr aqui este tipo?”. Ora eu tenho a certeza de que quem me convidou sabia bem o que fazia. E não quero desiludi-lo. Surjo aqui na quota da diversidade a cujo luxo o jornal se dá. O “Novo” - honra lhe seja! - não nos leva ideologicamente ao engano, desde que abriu folhas. Por isso, pode permitir-se o gesto de fazer um convite como este que hoje me dirige. "Será que o tipo vai aqui defender o Costa e o quase unanimismo da missa laica algarvia?", alguém deve ter perguntado. "Não é muito o estilo dele", imagino que possa ter dito o Pedro Correia, o único da casa que convive heterodoxamente com este improvável escriba, embora lhe não adivinhe os humores. "Às tantas, vai falar dos talibãs e do Afeganistão, porque aquela é a praia dele, depois de décadas de croquetes nos claustros engravatados das Necessidades”, terá saído a alguém. Estive quase para o não desiludir, mas isto de ocupar um espaço nobre num jornal de direita e resistir à tentação de dar uma bicada na ala política mais triste, órfã e desesperada da pátria seria uma contenção excessiva para alguém como eu. Aproveitar um pretexto, e tenho tantos e tão bem artilhados, para dizer que "a culpa é do Passos!", é algo a que muito dificilmente resisto. Mas, espera aí!, há outras maneiras de levar a cabo uma flor de provocação: fazer aqui a discreta apologia de Rui Rio e, de caminho, deixar uns elogios a Marcelo. Assim, atiçaria a zizânia, matando dois (outros) coelhos de uma assentada. Mas não, não quero ser chato para a LapaNews, precisamente um nome que sugere o bairro em que vivo. Além disso, dizer bem deles só iria confirmar o que alguma direita há muito já pensa: Rui Rio é uma espécie de MDP-CDE do PS e o presidente já se bandeou com Costa (é não o conhecerem!). Mas, sendo as coisas o que são, então vou falar de quê, neste espaço que o “Novo” me concedeu? De nada! Já passei os três mil carateres que me tinham dado!

(Artigo hoje publicado no semanário “Novo”)

Francisco Pinto Balsemão


António Costa decidiu ontem homenagear Francisco Pinto Balsemão, por ocasião dos 40 anos dos governos que chefiou e dos 84 anos daquela que é a mais importante figura política viva da nossa democracia - e a luta de Balsemão pela liberdade começou bastante antes do 25 de Abril, note-se.

Há tempos, escrevi por aqui isto: “Na história do nosso jornalismo, e na nossa história política, Balsemão tem hoje um lugar cativo, por muito que isso desagrade a muitos dos que se politicamente se lhe opõem. Portugal seria um país democraticamente bem mais rico se dispusesse de muitas mais figuras com a estatura cívica de Francisco Pinto Balsemão. É o que penso, muito sinceramente.” Reafirmo-o hoje, com gosto e convicção.

Tenho uma grande consideração pessoal por Francisco Pinto Balsemão, com quem me cruzei muitas vezes, ao longo das últimas décadas. Em tempos mais recentes, estivemos juntos na comissão, nomeada pelo governo Passos Coelho, que elaborou o último Conceito Estratégico de Defesa Nacional. A partir de 2013, integrei o Conselho da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, a que ele presidia. A seu convite, fui orador em encontros de reflexão estratégica, que promoveu em Cascais, com o jornal “Expresso”. Não partilhamos as mesmas opções políticas, mas creio que temos visões basicamente comuns sobre aspetos essenciais da nossa vida cívica. Francisco Pinto Balsemão é, estruturalmente, um grande democrata - e isso, para mim, é muito importante.

Comecei, há pouco, a ler as suas “Memórias”, que ontem foram publicadas. São cerca de mil páginas (!) e, como os meus dias, nos próximos tempos, vão estar muito ocupados com outras tarefas, o ritmo da sua leitura terá forçosamente de ser baixo. Dito isto, tive já oportunidade de ler alguns capítulos do livro, que me parece um testemunho muito relevante. Há muita gente que por ali fica com “as orelhas a arder” e Balsemão tem, para algumas dessas pessoas, uma “mão pesada” - e tem a coragem política necessária para a usar. Fazem falta livros com esta frontalidade, que é um erro fácil confundir com azedume e mero ajuste de contas. São obras desta natureza que vão ajudar a escrever a nossa História.

Deixo aqui, nesta ocasião, um abraço amigo a Francisco Pinto Balsemão.

quinta-feira, setembro 02, 2021

Mikis Theodorakis


Um dia de novembro de 1977, numa escala no aeroporto de Benghazi, na Líbia de Kadhafi, o avião em que eu seguia, na rota de Tripoli para Atenas, ficou estacionado por quase uma hora. Ninguém sabia o que se passava. 

Um tanto inconscientemente, eu tinha aproveitado para fotografar o que me pareceu serem uns caças Mig, que divisei pela escotilha do avião da Olympic Airways, numa zona militar do aeroporto. Não me sossegou o modo como o pessoal de cabine tinha olhado para aquela minha inusitada atividade lúdica. Por isso, sair dali, tão cedo quanto fosse possível, estava a ser o meu desejo íntimo.

A certa altura, tudo se precipitou. Surgiram três viaturas na pista, que pararam junto ao avião. De uma delas, saiu um homem grande, de cabelos largos, cumprimentado por quem dele vinha despedir-se. Entrou e sentou-se do outro lado da fila do avião em que eu estava, com apenas o corredor a separar-nos. 

Aquela cara… Demorei uns segundos apenas no esforço de memória facial: era Mikis Theodorakis. Olhei à volta, mas ninguém no avião dava mostras de tê-lo reconhecido, não obstante o “espetáculo” da sua entrada.

Theodorakis era um compositor genial e havia sido um resistente à ditadura dos coronéis gregos, com expressão marcante em toda a esquerda europeia. Membro do Partido Comunista Grego, tinha-lhe sido dado pelos soviéticos o Prémio Lenine.

Não sou muito dado a abordagens pessoais, mas, a certa altura do voo, mais por curiosidade do que por outra razão, decidi cumprimentá-lo, aproveitando para lhe dizer quanto a sua obra era reconhecida em Portugal, naturalmente depois do êxito do filme “Zorba, o grego”. Theodorakis era muito mais importante musicalmente do que isso, mas eu então não sabia, confesso.

Não me pareceu muito expansivo, mas foi por sua iniciativa que, sabendo-me português, me falou do 25 de Abril e do modo como os militares revolucionários portugueses tinham sido um “exemplo” para a Grécia. Só me referiu dois nomes, com evidente admiração: Otelo e Cunhal. Perguntei-lhe se conhecia José Afonso, autor da “Grândola”. Reagiu: “Ah! A “Grândola”! Claro!”, mas fiquei sem perceber se sabia algo do cantautor. A conversa, curta e banal, ficou por ali, com cada um de nós recolhido às suas leituras.

Chegado a Atenas, vi que ele tinha, de novo, um acolhimento VIP, natural para alguém que era uma cara prestigiada da nova Grécia democrática. Disse-me “Adiós!” (!) e foi-se.

Mikis Theodorakis morreu hoje. Tinha 96 anos. Tenho um pressentimento de que a nossa Isabel da Nóbrega não teria desdenhado a coincidência de partirem, com a mesma idade, neste mesmo dia.

Isabel da Nóbrega


Acabo de saber que morreu Isabel da Nóbrega, uma figura marcante no nosso panorama literário. Tinha 96 anos.

O século XX da cultura portuguesa não pode ser contado sem destacar a sua marca, por bem mais de uma razão. Era, além do mais, uma mulher notável, uma inteligência lúcida e atenta. 

O meu sentido pesar ao filho, Pedro Abreu Loureiro, e à sua neta Alexandra.

quarta-feira, setembro 01, 2021

Sem palavras…




 … e sem espinhas! Um almoço com o bacalhau ímpar do meu amigo Victor, em São João de Rei.

segunda-feira, agosto 30, 2021

Mudar de cenário

 

Esta é uma semana que começa com bastante trabalho. Nada melhor do que um cenário calmo para o realizar.

domingo, agosto 29, 2021

Conversa leve

“Olha lá! Agora deu-te para só escrever sobre coisas levezinhas?” O remoque veio pelo telefone, ontem, de um daqueles amigos em cujos ombros, com a idade, parece ter caído o peso do mundo, que andam com “ar grave e sério”, como o Porto Sentido do Rui Veloso, talvez por frequentarem demasiado Boaventura Sousa Santos ou António Barreto, dependendo do tremendismo apocalíptico por que optem. Ler-me sobre trivialidades - um chá, uma refeição, uma paisagem - parece-lhes quase ofensivo, quando há gente a morrer com bombas em Cabul, quando o clima mundial se degrada e ninguém faz nada de jeito, quando ainda não sabemos se Ricardo Salgado já terminou o périplo pela Sardenha e outros temas magnos, como a atualidade de certas epístolas que falam de senhoras ou o “mood” no congresso socialista em zona de banhos. Alguns desses amigos, que têm a mania que me conhecem, ainda se dão ao luxo de correr o risco de levar a sério o que eu digo, coisa de que eu próprio há muito me deixei.

sábado, agosto 28, 2021

Tea time


Da janela do quarto onde eu dormia na casa da minha avó paterna, onde hoje funciona uma escola de música, avistavam-se, lá ao alto, o templo de Santa Luzia e o hotel.
  
Por um milagre da perspetiva, como constatará quem andar por Viana, a posição relativa dos dois edifícios no cenário vai variando, quando se olha para o monte, dependendo do lugar de onde se está. Acho que os vianenses nunca notaram muito isso. Dessa janela da minha infância, o hotel via-se à e
direita, isso sei eu bem. 

Nesses tempos de miúdo, lembro-me de ouvir o meu pai dizer que o hotel estava sempre cheio de estrangeiros. Ingleses, é o que me ficou de ouvido. Talvez por isso, o chá por ali é sempre bom, como é sempre bom tomar chá por ali.

sexta-feira, agosto 27, 2021

O conselho no Concelho


Passei lá, hoje, naquela pequena praça no centro dos Arcos de Valdevez. E lembrei-me de uma cena, ali ocorrida, vai para 50 anos.

Era um tempo em que rareavam informações escritas sobre os bons restaurantes que havia pelo país. Apenas “A Mosca”, o suplemento que vinha, aos sábados, com o “Diário de Lisboa”, fazia esse “serviço público” sobre a capital e arredores. No resto, vivia-se do “boca-a-boca” de conhecidos, de preferência se fossem conhecedores. 

Um dia cinzento de outono, íamos dois casais a passar, de carro, no meio dos Arcos de Valdevez, bem tarde sobre a hora do almoço. Já não dava para ir à “Miquelina”, em Paredes de Coura (onde até o “Conselheiro” já se foi), nem havia tempo para um salto ao “Panorama”, em Melgaço (que também entretanto se esfumou).

Onde diabo se podia comer por ali? Olhei à volta e vi um cavalheiro num passeio. Tive um pressentimento e disse, para quem me acompanhava: “Aquele é o tipo certo para nos indicar o melhor restaurante aqui perto”. Meu dito, meu feito! Saí do carro e fui falar com ele. Um minuto depois, regressei e, com um “já sei!”, arranquei, com um ar decidido, pela estrada para Monção.

Uma onda de curiosidade instalou-se nos meus companheiros de jornada: porquê aquele tipo? Foi então que expliquei, sobranceiro, com uma elaborada sociologia de pacotilha, uma regra acabada de criar, numa ciência gerada por um estado gastronómico de necessidade. Desde então, tenho-a utilizado, em especial no estrangeiro (cá pelo país, já não preciso de indicações), quando, por um qualquer azar das arábias, arribo a uma localidade e não levo comigo um guia de confiança (e não me falem nunca do inútil “Tripadvisor”, por favor!). 

Qual é essa regra? Deve perguntar-se um conselho para refeiçoar a alguém que cumule quatro requisitos básicos: que tenha mais de meio século de vida (um saber de experiência feito), que seja gordo ou, no mínimo (como o leite) meio-gordo (há lingrinhas bons garfos, mas são raridades descartáveis), que tenha um ar de pessoa abastada (alguém que tenha cabedais para ir com frequência às boas mesas da sua terra) e, finalmente, que esteja trajado com bom gosto (os abrutalhados, mesmo que tresandem a dinheiro, não servem para este teste!). 

De preferência, alguém que ainda use gravata, evitando sempre essa malta modernaça, de camisa aberta até ao oitavo botão, que logo nos recomendará um lugar de sushi e coisas assim, por cozinhar, ou as doses homeopáticas, em pratão imenso, de uma “nouvelle cuisine” para matar cara a fome. Essencial é que seja sempre pessoal que se veja, à légua, que gosta de uma bacalhauzada à maneira, de um bom cabrito, de uns “leves” rojões, de uma feijoada bem apurada, tudo lindamente regado. Gente ainda com aspeto de quem pode facilmente fechar a cena gastronómica com uma bagaceira velha ou um malte de qualidade!

Com os anos, somei um quinto critério, que pode ser cruzado com os anteriores e que, neste período eleitoral em que estamos, talvez convenha ser lembrado: perguntar qual é, na localidade, o restaurante preferido do presidente da Câmara. É que este, por gosto próprio ou por ter sempre de convidar em serviço para sítios decentes, é obrigado a fazer as escolhas mais adequadas. Tudo somado, garanto, nunca falha!

O que é que o homem dos Arcos de Valdevez nos recomendou, naquele dia sombrio? O excelente “Costa do Vez”, onde entretanto regressei mais vezes e que parece que continua a dar cartas por ali. (Hoje, não precisei: vinha de uma bela refeição no magnífico “Carvalheira”, na sua bela segunda encarnação, em Fornelos, na estrada de Ponte de Lima para Braga). E lá continuei, pela lindíssima estrada do Extremo, por este espetacular Alto Minho, que alguns sulistas teimam em ainda não conhecer.

quarta-feira, agosto 25, 2021

“A Arte da Guerra”


A evolução da situação no Afeganistão, as eleições presidenciais em S. Tomé e Príncipe e a tragédia política e humanitária que envolve o Haiti são os temas que, esta semana, abordo com o jornalista António Freitas de Sousa, no programa sobre temas internacionais, “A Arte da Guerra”, na plataforma multimédia do “Jornal Económico”.

Pode ver aqui: https://fb.watch/7CAFdpj73s/

terça-feira, agosto 24, 2021

Há almoços grátis?


Um dia, vivia eu no Brasil, recebi um telefonema de Júlio Miranda Calha, à época deputado socialista. Havíamos coincidido, anos antes, num mesmo governo.
  
Perguntou-me se acaso eu tinha intenção de vir a Portugal, numa data próxima. Por mera coincidência, contava ir na semana seguinte. “Gostava de o convidar para almoçar”, disse-me. Não perguntei o motivo desse interesse. Ficámos de combinar o local.

Não éramos íntimos, mas tínhamos uma boa empatia pessoal. O Júlio, infelizmente já desaparecido, era uma pessoa discreta, sempre sorridente, com humor, um homem moderado, ponderado e sério, bastante estimado pelos seus adversários políticos. Que quereria ele de mim? 

Chegado a Lisboa, numa manhã de sábado, comprei o “Expresso” (foi já há muito tempo: o “Expresso” ainda saía ao sábado…) Trazia uma entrevista com o Júlio Miranda Calha, que o jornal anunciava como coordenador do PS para as próximas eleições autárquicas.

Ainda nessa noite, jantei com o Henrique Cayatte e com o António José Massano no “Café de São Bento”. Já nem sei bem porquê, veio à baila a entrevista do Miranda Calha. Eu referi o almoço que iria ter com ele. Não sei qual daqueles meus amigos disse: “Às tantas, ainda te vai convidar para candidato autárquico!” Passei o resto do bife a matutar no assunto.

Eu já tinha titulado uma candidatura à presidência da Assembleia Municipal de Vila Real, anos antes, como independente, numa lista do PS. Fui então derrotado por Passos Coelho. Não é esse em quem estão a pensar, mas o pai dele, um homem muito afável com quem, a partir daí, estabeleci uma excelente relação pessoal. O PSD era então a força dominante na autarquia. Eu costumava dizer que, em Via Real, “a direita estava no poder desde a ‘pedra lascada’ “. Os meus amigos “do outro lado”, que sempre os tive e tenho, nunca pareceram apreciar a minha graça pré-histórica, ainda hoje estou para saber porquê…

Estaria o PS a pensar em mim para alguma Câmara? A ideia assustava-me, pelo absurdo. Tinha a minha vida profissional bem estabilizada. Acabado que fosse o posto de embaixador no Brasil, iria para outro país e, depois disso, aposentado do serviço público, regressaria calmamente a Lisboa, com data marcada, talvez para dar aulas numa universidade ou fazer outras coisas que me apetecesse e a vida me proporcionasse. A última das que me nunca me passaria pela cabeça era ser autarca, para o que não tinha a mais ínfima vocação. Aliás, não me via a fazer rigorosamente nada na política ativa, dessa ou de outra natureza. Essa porta estava definitivamente fechada na minha cabeça, por muito que alguns continuassem a pensar o contrário.

Estimulado pelos meus dois amigos de mesa, já tão curiosos como eu, decidi telefonar, dali mesmo, ao Miranda Calha. “Ó Júlio! Por acaso, o almoço que querer ter comigo não tem a ver com algum tema autárquico, não?”. Do outro lado, a reação foi a temida: “Por acaso, tem”, disse-me ele. “Então, meu caro amigo, é melhor anularmos o almoço. É que em nenhum cenário, mesmo nenhum!, estou disponível para exercer cargos autárquicos”.

O Júlio Miranda Calha deve ter então percebido que estava equivocado quanto à minha potencial disponibilidade. Mas ainda arriscou: “Mas você não comprou, recentemente, uma casa em Vila Real?” De facto, eu tinha trocado por outro, meses antes, um andar de que ficara proprietário, pela morte do meu pai, mas isso estava muito longe de poder fazer presumir a alguém que eu iria viver para lá. E como é que ele tinha tido conhecimento disso? Nunca soube quem teria “vendido” aquela ideia ao Júlio Miranda Calha. Talvez o António Martinho, que estaria ”no segredo dos deuses”, possa agora esclarecer alguma coisa, se quiser…

Lembrei-me desta história ontem, ao assistir ao debate televisivo com os quatro candidatos à presidência da autarquia de Vila Real. Cidade que está hoje muito bem servida nessa matéria. E onde, daí a pouco, vou jantar. E vou pagar esse jantar, ao contrário do almoço ”grátis” que o Júlio Miranda Calha me ia oferecer e que me podia ter saído bem caro…

segunda-feira, agosto 23, 2021

Filosofias


“Então quando é que vai de férias?”, perguntei à senhora da loja chinesa. “O patrão não dá férias!”, disse-me, a rir, sabendo eu que ela é a patroa de si mesma. E, mais a sério: “Eu não tenho idade para ter férias, agora tenho idade para trabalhar. Quando for velha, terei férias para sempre”. Filosofias de vida.

domingo, agosto 22, 2021

“Mon Oncle”


Em 1958, estava eu a entrar para o liceu, saiu o extraordinário filme “Mon Oncle”, de Jacques Tati. Hoje, esta imagem reapareceu, já nem sei bem porquê, nas redes sociais. E dei por mim a recordar que, há cerca de uma década, quando eu vivia em Paris, foi desaconselhada a exibição pública desta cena do filme. Porquê? O homem ia a fumar, a criança ia sentada de forma insegura e sem capacete, um velhote levava um miúdo de bicicleta, sabe-se lá para onde e para quê…

Testem com algumas pessoas este caso. Verão que há logo quem diga: “A verdade é que é pouco pedagógico estar a divulgar em cinema imagens de pessoas a fumar, porque é uma promoção subliminar de um atentado à saúde”; ou “Mostrar uma criança a ser transportada numa bicicleta em condições de muito escassa segurança constitui uma forma de normalizar situações de risco físico que a educação cívica procura combater”; ou ainda “A ocorrência, muito mais vezes do que se supõe, de atos abusivos contra crianças, por parte de pessoas mais idosas, mesmo de familiares próximos, recomenda que se procure verificar sempre se essa convivência inter-etária se processa em quadros comportamentais regulares e autorizados”.

A obsessão virou doutrina e ai de quem hoje se ria destes preconceitos! O “politicamente correto” passou a policiar-nos. É esta a sociedade do futuro. Habituem-se!

sábado, agosto 21, 2021

Agosto


O que eu tenho, nestes dois dias, descansado da canseira das férias na praia! E dormido! O regresso a Lisboa foi um bálsamo. A cidade está magnífica, menos barulhenta, com lugares para estacionar, com a esmagadora maioria das lojas abertas. Até os restaurantes têm lugares e, como há menos turistas, a simpatia e a disponibilidade aumentaram. Há menos “aceleras” na minha rua!

Há anos que trago comigo a ideia de passar metade do mês de agosto em Lisboa. Depois, acabo por nunca cumprir essa promessa íntima. Deixo isto aqui escrito, para ver se, para o ano, me lembro! 

A ordem alternativa


O que, por estes dias, ocorre no Afeganistão, somado ao desafio colocado pela China, tendo à mistura a profusão de outros modelos autoritários, onde avulta, pela sua importância, a Rússia, parece revelar que estamos a assistir a um tempo inédito de desafio à ordem liberal que, desde a Segunda Guerra mundial, vinha a funcionar como matriz de referência da sociedade internacional.

Verdade seja que o mundo nunca foi democrático. Parte muito importante dos Estados que integram as Nações Unidas está longe de poder ser vista como cumprindo “os mínimos”, no que toca aos requisitos das regras do Estado de Direito e dos padrões da democracia dita liberal.

A ONU, embora esteja imbuída, na Carta e nos termos de referência das suas instituições, de uma filosofia profundamente democrática, nunca exigiu que, para ser seu membro, um país tivesse de ser regido por um “template” dessa natureza. É claro que os Estados se comprometiam a aderir aos princípios da Carta, mas foi sempre óbvio que cada um o fazia à sua maneira, com a eventual reserva mental a não ser nunca tida como fator de exclusão.

Há, contudo, uma grande e substancial diferença entre o que se passava há uns anos e aquilo a que agora assistimos.

Num passado não muito longínquo, muitos dos países que, flagrantemente, estavam longe de ser democracias faziam um constante esforço para serem vistos como tal. Praticamente, nenhum deixava de se afirmar como democrático, colocando embora, por vezes, um adjetivo qualificativo ao modelo de democracia que dizia seguir. As várias “democracias populares” foram disso um flagrante exemplo.

A generalidade das autocracias, nomeadamente nos terrenos multilaterais onde eram avaliadas, mantinha-se, por sistema, “à defesa”, procurando desmontar as acusações de falta de legitimidade das suas instituições e práticas internas. Isso era muito evidente nas estruturas de avaliação de Direitos Humanos da ONU, como também o era na exigência colocada pela União Europeia nos processos de diálogo bilateral ou bi-regional.

Cada um era democrata à sua maneira, mas nenhum parecia ter a coragem de pôr abertamente em causa essa ordem ideal de referência. A democracia liberal podia estar longe de ser a regra universal, mas todos tentavam escapar ao “name and shame” de serem vistos a confrontá-la.

Nos últimos anos, tudo isto está a mudar. A simples “bondade” intrínseca aos modelos democráticos, no formato que se havia tornado uma banalidade no mundo ocidental, começa a ser posta em causa e a ser contestada. Parece estar a fazer o seu caminho um novo paradigma de gestão política das sociedades, menos assente no imperativo da aferição aritmética da vontade popular, responsável pela voz diferenciada das entidades políticas de representação de projetos - os partidos. O que se observa é a emergência de modelos elitistas de direção dos Estados, assentes basicamente em juízos de eficácia da ação desenvolvida. No fundo, a ideia é relativamente simples: a vontade democrática, expressa em eleições, não dá garantias de produzir uma gestão política de qualidade, pelo que é preferível confiar noutros tipos de seleção dos dirigentes, imbuídos do sentimento do “bem comum”.

Este caminho alternativo tem três básicas decorrências. Desde logo, um processo de seleção de lideranças mais “aristocrático”, desconfiando do puro sufrágio universal. Depois, uma contestação ao caráter sacrossanto da ideia da separação de poderes, tida como um empecilho descartável. Finalmente, um controlo apertado da diversidade opinativa expressa na comunicação social. O novo tipo de liderança “sabe melhor” interpretar o que é o interesse comum do que a “fragilizante” alternância provocada pelos acasos do voto.

O mundo está a mudar muito mais rapidamente do que, há poucos anos, parecia poder vir a acontecer. Estamos no seio de uma batalha de ideias, de convicções, de projetos. A grande questão está em saber se esta ordem alternativa de valores terá condições para ganhar maioritariamente a consciência ou a apatia dos povos, condenando à relativização os processos democráticos, que muitos pensavam corresponderem a um patamar superior de representação cívica. Logo veremos.

sexta-feira, agosto 20, 2021

“A Cidade Imaginária”


Correspondendo a sugestões de amigos e leitores, decidi publicar um livro com crónicas, histórias e memórias, de muito diversa natureza, que cruzam episódios que, direta ou remotamente, se ligam Vila Real, a terra onde nasci. 

Trata-se de textos que foram surgindo em jornais, aqui no Facebook e, sempre, no meu blogue “Duas ou Três Coisas”, ao longo dos últimos anos. 

O grafismo da capa é de Adelaide Serra e prometo um exemplar do livro à primeira pessoa que adivinhar o motivo que ali é ressaltado. Comecem pela cor…

Alguns exemplares do livro, que tem uma tiragem limitada e surge sob a chancela da Biblioteca Municipal de Vila Real, estão, desde hoje, à venda na “Livraria Ler”, rua Almeida e Sousa, 24, no Jardim da Parada, em Campo de Ourique, em Lisboa (tlf. 213 888 371).

No final deste mês, haverá também exemplares disponíveis na Livraria e Papelaria Branco (259 322 839) e, posteriormente, na Livraria Traga-Mundos (259 103 113), ambas em Vila Real.

Na sexta-feira, dia 3 de setembro, no espaço fronteiro à Biblioteca Municipal de Vila Real, pelas 21.30 horas, terá lugar uma sessão de lançamento. 

Todos quantos quiserem ali aparecer serão muito bem vindos, sendo observadas as devidas medidas de proteção.

A América está de volta


“America is back” foi a frase usada, há meses, por Joe Biden, para assinalar ao mundo, em especial aos seus aliados, que o interregno traumático de Trump estava encerrado e que os EUA reassumiam, com convicção, o seu papel de potência com ambição de liderança democrática global, com retoma de atenção aos seus parceiros e ao mundo multilateral.

A mensagem era também para os adversários, em especial para a China e Rússia, que, com ela, eram alertados para a nova determinação de Washington em estruturar uma agenda assertiva de interesses com que tinham que contar.

“America is back”, contava poder dizer, dentro de dias, com serenidade, Joe Biden, mas, agora na volta do Afeganistão, onde, nos últimos 20 anos, os EUA haviam empenhado tropas, vidas e muitos recursos.

Tudo começou como uma ação legítima, para a qual foram arregimentados mais de 40 países, no pós 11 de setembro de 2001, com o objetivo de erradicar o terrorismo do Al Qaeda. Depois, para que essa ação tivesse um efeito consistente a prazo, os EUA haviam desenhado um projeto de “State-building”, destinado a travar o integrismo islâmico e construir instituições sustentáveis para um Afeganistão democrático.

Todo esse esforço ruiu, como sabemos, em escassos dias, de uma forma clamorosa.

Vão por aí fervilhar análises sobre as lições a aprender com este falhanço, que se soma ao saldo desastroso da intervenção no Iraque, dois anos depois do Afeganistão, dessa vez numa operação sem a menor legitimidade, que viria a ter como saldo uma trágica desregulação securitária do Médio Oriente, dando origem ao Daesh, contribuindo para a tragédia na Síria.

Neste rescaldo da humilhação, que é americana mas também dos aliados, que ficou simbolizada, no passado domingo, com a queda mansa de Cabul e do governo que se percebeu que só fazia de conta que existia, vale a pena dizer duas coisas, imagino que pouco populares.

A primeira é que foi justa e correta a decisão de ir para o Afeganistão em 2001, procurando liquidar a Al Qaeda e, de caminho, derrubar o poder talibã que o protegia. É importante nunca esquecer as imagens das Torres Gémeas a cair. A luta contra o terrorismo islâmico não era uma guerra americana, era e é também a nossa guerra.

A segunda é que, mesmo que constatemos ter sido um fracasso a sua sustentação, a sociedade que foi tentando criar, ao longo destas duas décadas, no Afeganistão, era um projeto decente e meritório. Muitos afegãos viveram, por bastantes anos, na liberdade que a guerra permitiu, houve uma inteira geração que gozou de democracia, as mulheres recuperaram os seus direitos, havia liberdade dos média, a educação foi expandida e o país usufruiu de fortes investimentos em infraestruturas, que o conflito interno esteve longe de destruir.

As coisas são hoje o que são, estando nós ainda longe de saber o que virão a ser no futuro. Mas o evidente colapso do esforço feito no Afeganistão não nos deve afastar da ideia, talvez mesmo potenciada pelo choque das imagens que dali agora nos chegam, de que, com todos os erros cometidos, havia uma intenção justa na intervenção que foi tentada.

Os piores dias da administração sob tutela americana irão ser vistos como um sonho bom se comparados com o pesadelo da sociedade talibã que aí vem.

quarta-feira, agosto 18, 2021

“A Arte da Guerra”


Em “A Arte da Guerra”, a conversa semanal sobre temáticas internacionais com António Freitas de Sousa, na plataforma multimédia do “Jornal Económico”, voltámos, como não podia deixar de ser, ao Afeganistão. Abordámos também as discretas negociações entre o governo venezuelano e a oposição, que têm lugar no México sob mediação norueguesa, bem como as prespetivas do processo de alargamento da União Europeia aos Balcãs.

Pode ver clicando aqui.

É proibido ter saudades...

... mas não é proibido ter orgulho numa bela ideia. Tive-a em 2004, há precisamente 20 anos.  Eu estava de saída da Áustria e quase de parti...