sexta-feira, agosto 20, 2021

A América está de volta


“America is back” foi a frase usada, há meses, por Joe Biden, para assinalar ao mundo, em especial aos seus aliados, que o interregno traumático de Trump estava encerrado e que os EUA reassumiam, com convicção, o seu papel de potência com ambição de liderança democrática global, com retoma de atenção aos seus parceiros e ao mundo multilateral.

A mensagem era também para os adversários, em especial para a China e Rússia, que, com ela, eram alertados para a nova determinação de Washington em estruturar uma agenda assertiva de interesses com que tinham que contar.

“America is back”, contava poder dizer, dentro de dias, com serenidade, Joe Biden, mas, agora na volta do Afeganistão, onde, nos últimos 20 anos, os EUA haviam empenhado tropas, vidas e muitos recursos.

Tudo começou como uma ação legítima, para a qual foram arregimentados mais de 40 países, no pós 11 de setembro de 2001, com o objetivo de erradicar o terrorismo do Al Qaeda. Depois, para que essa ação tivesse um efeito consistente a prazo, os EUA haviam desenhado um projeto de “State-building”, destinado a travar o integrismo islâmico e construir instituições sustentáveis para um Afeganistão democrático.

Todo esse esforço ruiu, como sabemos, em escassos dias, de uma forma clamorosa.

Vão por aí fervilhar análises sobre as lições a aprender com este falhanço, que se soma ao saldo desastroso da intervenção no Iraque, dois anos depois do Afeganistão, dessa vez numa operação sem a menor legitimidade, que viria a ter como saldo uma trágica desregulação securitária do Médio Oriente, dando origem ao Daesh, contribuindo para a tragédia na Síria.

Neste rescaldo da humilhação, que é americana mas também dos aliados, que ficou simbolizada, no passado domingo, com a queda mansa de Cabul e do governo que se percebeu que só fazia de conta que existia, vale a pena dizer duas coisas, imagino que pouco populares.

A primeira é que foi justa e correta a decisão de ir para o Afeganistão em 2001, procurando liquidar a Al Qaeda e, de caminho, derrubar o poder talibã que o protegia. É importante nunca esquecer as imagens das Torres Gémeas a cair. A luta contra o terrorismo islâmico não era uma guerra americana, era e é também a nossa guerra.

A segunda é que, mesmo que constatemos ter sido um fracasso a sua sustentação, a sociedade que foi tentando criar, ao longo destas duas décadas, no Afeganistão, era um projeto decente e meritório. Muitos afegãos viveram, por bastantes anos, na liberdade que a guerra permitiu, houve uma inteira geração que gozou de democracia, as mulheres recuperaram os seus direitos, havia liberdade dos média, a educação foi expandida e o país usufruiu de fortes investimentos em infraestruturas, que o conflito interno esteve longe de destruir.

As coisas são hoje o que são, estando nós ainda longe de saber o que virão a ser no futuro. Mas o evidente colapso do esforço feito no Afeganistão não nos deve afastar da ideia, talvez mesmo potenciada pelo choque das imagens que dali agora nos chegam, de que, com todos os erros cometidos, havia uma intenção justa na intervenção que foi tentada.

Os piores dias da administração sob tutela americana irão ser vistos como um sonho bom se comparados com o pesadelo da sociedade talibã que aí vem.

10 comentários:

Luís Lavoura disse...

o pesadelo da sociedade talibã que aí vem

Calma. O mundo não volta para trás. Os talibans de hoje não conseguirão, provavelmente nem sequer quererão, fazer no Afeganistão aquilo que os talibans de há 30 anos lá fizeram.

O Afeganistão de hoje é muito diferente, nas realidades e nas mentalidades, e os talibans terão que se conformar com isso.

A.B. disse...

Sim, Lavoura, porque se algo é bem sabido, é que os fundamentalistas islâmicos (ou outros) são gente progressista, respeitadora dos direitos humanos universais, e defensores da inclusão e diversidade multicultural e de género. É claro que se vão “conformar”. No fundo somos todos uns tótós por nos preocuparmos.

José disse...

Há algumas coisas que me chocam nisto:

- ver o foco dado "às mulheres", como se os homens não sofressem naquele regime de loucos, como se não fossem eles as principais vítimas da violência, como se não lhes coubesse a eles a parte de leão a fazer e a sofrer com a violência armada, como se não fossem eles a engrossar as vagas de refugiados.

- ver uma feminista a defender na cada vez mais "woke" RTP3 (e como sempre sem contraditório), que os EUA andavam a retirar os homens que os tinham ajudado mas deviam era focar-se nas mulheres. Já hoje sabemos que começou a vingança Taliban contra os homens que "ajudaram" os ocupantes.

- ver toda a gente preocupada com a "educação das meninas", como se o Afeganistão Taliban fosse uma um país onde os rapazes (nunca se diz "meninos"), fossem uns privilegiados com um futuro risonho à frente.

- ver mulheres de burka (no suposto Afeganistão livre), a procurarem fugir para o estrangeiro. O que pode temer uma mulher que, num país "livre", anda de burka?! Obrigarem-na a usar uma cor de que não gosta?

- ver como todos falam nos direitos das mulheres e na necessidade de as proteger mas ninguém lhes aponta o bravo exemplo das mulheres curdas que, de armas na mão, lutaram como leoas contra o DAESH. Ao contrário, o discurso de vitimização é tudo o que se ouve.

- ver a quantidade de esquerdistas que se comprazem com a "humilhação" dos EUA. São os mesmos que, daqui a uns meses, gritarão que se abra de par em par as portas da Europa para acolher toda esta gente, são os mesmos que já andam com pífias contas de "a quantos refugiados temos direito?", são os mesmos que defendem as ditaduras na Bielorrússia e em Cuba.

Joaquim de Freitas disse...

Sente-se o diplomata no texto do Senhor Embaixador. Nunca estive tanto em desacordo com o Senhor Embaixador.

O Presidente dos EUA, Joe Biden, falou aos jornalistas na Casa Branca, na quinta-feira, sobre a retirada das forças norte-americanas do Afeganistão. Durante a sua resposta sobre a razão pela qual os Estados Unidos invadiram o Afeganistão, fez uma pausa, o que suscitou preocupações sobre a sua memória. É que em 2002, Biden foi um dos 77 senadores que deram ao Presidente George W. Bush o poder de iniciar a sua mobilização no Médio Oriente através do Patriot Act.

O Presidente Biden disse: "Eu estava neste passe quando Osama Bin Laden escapou do perigo.

"Fomos ao Afeganistão por duas razões, uma por... »

Biden olhou então para baixo e parou, aparentemente tentando lembrar-se da razão.

E prosseguiu: "Primeiro, trazer Osama Bin Laden para os portões do inferno, como disse na altura.

"A segunda razão foi eliminar a capacidade da Al-Qaeda de lidar com mais ataques dos EUA neste território.

"Atingimos os dois objectivos, ponto final."

Quando o presidente não se recorda das razoes que levaram à invasão dum pais soberano….

Um acto de policia transformado numa guerra, Senhor Embaixador.

Jaime Santos disse...

Muito bem, Senhor Embaixador, assino por baixo o que diz.

A ocupação do Afeganistão custou muitas vidas, de civis e soldados americanos e dos seus aliados e acabou por se transformar numa guerra injusta, mas cabe lembrar que a primeira razão pela qual o Afeganistão foi invadido (com o aval da ONU, contrariamente à invasão do Iraque, essa sim um crime de guerra) foi porque os EUA foram atacados de forma massiva por uma organização terrorista que se abrigava nesse País.

O Afeganistão não foi invadido para defender os direitos humanos, ou para ajudar o Governo de um Estado cliente, como aquando da invasão soviética, a Mãe desta tragédia toda, sobre a qual muitos dos que aqui escrevem a atacar os EUA não querem falar (não ser capaz de aplicar a si próprio ou aos seus amigos a mesma bitola que se aplica aos outros tem um nome e não é bonito)...

Argumentar que os EUA não o deveriam ter feito por causa das eventuais consequências seria como argumentar que se deveriam ter mantido neutrais após Pearl Harbour e pedido ao Japão a extradição dos responsáveis morais pelo ataque (como ouvi alguns cobardes defenderem depois do 11 de Setembro, argumentando que esse ato era um mero caso de polícia, para não terem que fazer o que fosse, raciocínio mantido até hoje, pelos vistos), porque posteriormente bombardearam massivamente a Alemanha e o Japão, chegando ao ponto de usar duas armas nucleares contra este último País.

E note-se, em Pearl Harbour o objetivo foi uma base da Marinha, um alvo militar, não edifícios repletos de civis usando aviões comerciais cheios de passageiros como mísseis. Os militares japoneses tinham sentido de honra...

Infelizmente, não vejo como algo de bom possa surgir da retirada, tirando talvez o fim das ditas mortes (se não forem substituídas por atrocidades praticadas pelos taliban). Os EUA tiveram que voltar a intervir no Iraque por causa do Daesh, por isso nem sequer há garantias que o Afeganistão não voltará a converter-se num ninho de terroristas.

E muitos afegãos, mulheres e homens (that goes without saying, José, only you cannot figure it out, apparently), que puderam sentir o perfume da liberdade de que fala sentem-se, muito justamente, completamente traídos.

Julgo que a manutenção da ocupação mais não faria do que adiar o inevitável à custa de muitas vidas, mas para todas essas pessoas, respirar livremente mais algum tempo seria o que mais importaria...

O abandono do Afeganistão é verdadeiramente uma tragédia no sentido original da palavra em grego, porque dois bens, Paz e Liberdade nesse País, estavam e estão em oposição...

Mas Biden, cujo raciocínio é impecável (a sua insinuação, Joaquim de Freitas, é asquerosa, mas vinda de quem vem, não surpreende) assim como o secretário-geral da NATO poderiam ter poupado os afegãos a uma humilhação final, em vez de os terem acusado de cobardia. Afinal, se o exército afegão foi treinado e equipado pelo Ocidente, alguma responsabilidade este tem na sua incapacidade em combater os talibãs e rendição sem luta...

É que viver no Afeganistão é um ato diário de coragem...

Joaquim de Freitas disse...

Jaime Santos debita asneiras em cadeia : Ignora que Joe Biden sofre de perdas de memória, o que não é um crime, e que é acompanhado medicamente. Ignora que é apelidado há vários anos de "a máquina a gaffes". , e que os seus erros repetidos são preocupação para alguns democratas.
O discurso de quinta-feira criou certa preocupação, que num tema tão delicado tenha hesitado longamente até encontrar a resposta. Os pontos fracos de Biden são conhecidos do mundo inteiro. Excepto de Jaime Santos.

De qualquer maneira, para mim, só disse a verdade quando disse que os Estados Unidos não tinham vocação a"construir uma nação" no Afeganistão.

Mas então porque invadiram? E é isto o importante.

Esta longa ocupação era na realidade uma empresa de demolição. Obviamente, não foi isso que Joe Biden quis dizer: quer fazer crer que esta derrocada final se justifica pela vitória sobre a Al-Qaeda, enquanto as metástases desta organização patrocinadas pela CIA no início dos anos 80 não param de se espalhar há 20 anos!

Como se não soubéssemos que este vasto país montanhoso é um país fulcral que faz a junção entre os mundos iraniano, turco e indiano, e que ao colocar o seu território sob controlo directo ou indirecto, Washington pretendia obter da retirada soviética dividendos estratégicos.

A principal motivação para a invasão de 2001, escondida por detrás do nobre motivo da chamada luta contra o terrorismo, foi ganhar uma posição perto da Rússia e da China. A este respeito, limitou-se a alargar a presença da CIA entre as facções islamitas, financiando e armando os moudjahidine mesmo antes da intervenção soviética de 1979

Washington deu-se assim a si próprio os meios, a longo prazo, para conter a influência de Moscovo e Pequim, ou mesmo para desestabilizar no seu flanco sul estas potências continentais, seus rivais sistémicos.

Mesmo que isso signifique transformar este país numa creche para extremistas cuja manipulação, durante o reinado de Zbigniew Brzezinski, foi elevada ao posto de um axioma da política dos EUA no Médio Oriente..

Estamos longe da preocupação do futuro das mulheres e das crianças afegãs, tema explorado indecentemente pela média ocidental.Sem esquecer que nunca houve tantas mulheres nas universidades que durante os dez anos do governo comunista derrubado pelos islamistas de Massoud.

Ao constatar o resultado da debandada destes dias, sofreram a síndrome de Frankenstein, a criatura terrorista que virou contra o seu criador.

Os EUA não construíram nada no Afeganistão, contentando-se de uma capacidade de incómodo que acabou por ser frustrada por adversários mais fortes do que eles próprios, e que derivam da sua força de uma vantagem moral considerável: estão no seu país e lutam para exercer a sua soberania naquele país. Se os últimos representantes da tutela imperial partem com o rabo entre as pernas do Afeganistão, é simplesmente porque perderam a guerra.

E foram os talibãs, os antigos aliados transformados em combatentes da resistência por ocupação estrangeira, que os expulsaram depois de dispersarem o exército de papelão de um regime de marionetas.. Como no Vietname, em 1975.

E para o comentador Jaime Santos, que ignora a história, os soviéticos foram chamados pelo governo legal da época, comunista, para combater os moudjahidine de Massoud (Aliança do Norte) aliados dos americanos, que os financiaram e armaram copiosamente, e que finalmente derrotaram os soviéticos, abrindo assim a porta aos Talibã.

Joaquim de Freitas disse...

Se o Senhor Embaixador permite um complemento sobre o discurso de Biden:

O presidente fez afirmações falsas sobre a reacção dos aliados à retirada, e sobre a presença da Al Qaeda:

O QUE O SR. BIDEN DISSE

"Não vi nenhuma questão de nossa credibilidade de nossos aliados ao redor do mundo."

Isso é falso. Embora os líderes de países aliados aos Estados Unidos tenham hesitado em criticar publicamente a retirada, alguns membros de seus governos não têm palavras em questionar a liderança e a credibilidade americanas.

Na Alemanha, o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Parlamento chamou a retirada de "um grave e abrangente erro de cálculo da atual administração" e disse que ela fez "danos fundamentais à credibilidade política e moral do Ocidente".

Laschet, chefe do Partido Conservador da Chanceler Angela Merkel e candidato na eleição para sucedê-la, chamou-o de " omaior desastre" que a OTAN já tinha visto. Merkel também criticou-o em particular, de acordo com a imprensa alemã.

Na Grã-Bretanha, a retirada levantou dúvidas entre alguns funcionários sobre a confiabilidade dos Estados Unidos como aliado. Tom Tugendhat, membro conservador do Parlamento e presidente da Comissão de Relações Exteriores, caracterizou-o como o "maior desastre da política externa" desde a crise de Suez de 1956, dizendo que "precisamos pensar novamente sobre como lidamos com amigos, quem importa e como defendemos nossos interesses".

O ministro da Defesa da Letônia, Artis Pabriks, disse que a retirada causou "caos" e mostrou que o Ocidente estava "mais fraco globalmente".

O QUE O SR. BIDEN DISSE

"Que interesse temos no Afeganistão neste momento com a Al Qaeda desaparecido? Fomos ao Afeganistão com o propósito expresso de nos livrarmos da Al Qaeda no Afeganistão, bem como, bem como de pegar Osama bin Laden, e conseguimos."

É falso. A presença da Al Qaeda no Afeganistão certamente foi reduzida desde que os Estados Unidos invadiram, mas o Sr. Biden está errado em dizer que o grupo terrorista não está mais no país.

Um relatório do Conselho de Segurança das Nações Unidas divulgado em junho estimou que a Al Qaeda ainda tinha presença em pelo menos 15 das 34 províncias do Afeganistão. O Gabinete do Inspetor-Geral do Departamento de Defesa disse em um relatório divulgado na quarta-feira que "o Talibã continuou a manter seu relacionamento com a Al Qaeda, fornecendo um porto seguro para o grupo terrorista no Afeganistão".

Depois que o Sr. Biden falou, John F. Kirby, um porta-voz do Pentágono, confirmou em uma coletiva de imprensa que a Al Qaeda tinha uma presença no Afeganistão.

Trump era conhecido pela sua capacidade de "mentira " , masz Biden nao lhe fica atràs !

Francisco Tavares disse...

Verdadeiramente extraordinário como o embaixador (e os comentaristas) conseguem falar dos 20 anos no Afeganistão, sem mencionar quantos milhões de dólares os EUA lá meteram para
formar a "oposição" nos anos da ocupação soviética, oposição essa que depois se veio a traduzir nas várias Al Qaedas que pululam por esse mundo fora...... Chapeau! "Tudo começou como uma ação legítima, para a qual foram arregimentados mais de 40 países, no pós 11 de setembro de 2001, com o objetivo de erradicar o terrorismo do Al Qaeda"...Ó senhor embaixador, sabe melhor que qualquer de nós que os EUA não funcionam a curto prazo. Muito antes do 9/11 os EUA tinha essa hipótese no seu planeamento de intervenção.... (coisas do ADN estado-unidense, para quem se der ao trabalho de estudar a ação externa dos EUA desde que existe como país...)

sts disse...

Acto de coragem é ter que aturar
melgas no Prakistão.

Jaime Santos disse...

O sts sempre consegue escrever frases com mais que 4 palavras, mesmo que essas palavras sejam curtas... Homem, só melga? Eu espero ser pelo menos um moscardo a zumbir aos ouvidos dos hipócritas...

Joaquim de Freitas, a sua verborreia (para não dizer outra coisa que rima com esta palavra) é tão absoluta que não há mesmo pachorra para lhe responder.

Aprenda a ser mais sintético, se não se importa...

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