sábado, agosto 21, 2021

A ordem alternativa


O que, por estes dias, ocorre no Afeganistão, somado ao desafio colocado pela China, tendo à mistura a profusão de outros modelos autoritários, onde avulta, pela sua importância, a Rússia, parece revelar que estamos a assistir a um tempo inédito de desafio à ordem liberal que, desde a Segunda Guerra mundial, vinha a funcionar como matriz de referência da sociedade internacional.

Verdade seja que o mundo nunca foi democrático. Parte muito importante dos Estados que integram as Nações Unidas está longe de poder ser vista como cumprindo “os mínimos”, no que toca aos requisitos das regras do Estado de Direito e dos padrões da democracia dita liberal.

A ONU, embora esteja imbuída, na Carta e nos termos de referência das suas instituições, de uma filosofia profundamente democrática, nunca exigiu que, para ser seu membro, um país tivesse de ser regido por um “template” dessa natureza. É claro que os Estados se comprometiam a aderir aos princípios da Carta, mas foi sempre óbvio que cada um o fazia à sua maneira, com a eventual reserva mental a não ser nunca tida como fator de exclusão.

Há, contudo, uma grande e substancial diferença entre o que se passava há uns anos e aquilo a que agora assistimos.

Num passado não muito longínquo, muitos dos países que, flagrantemente, estavam longe de ser democracias faziam um constante esforço para serem vistos como tal. Praticamente, nenhum deixava de se afirmar como democrático, colocando embora, por vezes, um adjetivo qualificativo ao modelo de democracia que dizia seguir. As várias “democracias populares” foram disso um flagrante exemplo.

A generalidade das autocracias, nomeadamente nos terrenos multilaterais onde eram avaliadas, mantinha-se, por sistema, “à defesa”, procurando desmontar as acusações de falta de legitimidade das suas instituições e práticas internas. Isso era muito evidente nas estruturas de avaliação de Direitos Humanos da ONU, como também o era na exigência colocada pela União Europeia nos processos de diálogo bilateral ou bi-regional.

Cada um era democrata à sua maneira, mas nenhum parecia ter a coragem de pôr abertamente em causa essa ordem ideal de referência. A democracia liberal podia estar longe de ser a regra universal, mas todos tentavam escapar ao “name and shame” de serem vistos a confrontá-la.

Nos últimos anos, tudo isto está a mudar. A simples “bondade” intrínseca aos modelos democráticos, no formato que se havia tornado uma banalidade no mundo ocidental, começa a ser posta em causa e a ser contestada. Parece estar a fazer o seu caminho um novo paradigma de gestão política das sociedades, menos assente no imperativo da aferição aritmética da vontade popular, responsável pela voz diferenciada das entidades políticas de representação de projetos - os partidos. O que se observa é a emergência de modelos elitistas de direção dos Estados, assentes basicamente em juízos de eficácia da ação desenvolvida. No fundo, a ideia é relativamente simples: a vontade democrática, expressa em eleições, não dá garantias de produzir uma gestão política de qualidade, pelo que é preferível confiar noutros tipos de seleção dos dirigentes, imbuídos do sentimento do “bem comum”.

Este caminho alternativo tem três básicas decorrências. Desde logo, um processo de seleção de lideranças mais “aristocrático”, desconfiando do puro sufrágio universal. Depois, uma contestação ao caráter sacrossanto da ideia da separação de poderes, tida como um empecilho descartável. Finalmente, um controlo apertado da diversidade opinativa expressa na comunicação social. O novo tipo de liderança “sabe melhor” interpretar o que é o interesse comum do que a “fragilizante” alternância provocada pelos acasos do voto.

O mundo está a mudar muito mais rapidamente do que, há poucos anos, parecia poder vir a acontecer. Estamos no seio de uma batalha de ideias, de convicções, de projetos. A grande questão está em saber se esta ordem alternativa de valores terá condições para ganhar maioritariamente a consciência ou a apatia dos povos, condenando à relativização os processos democráticos, que muitos pensavam corresponderem a um patamar superior de representação cívica. Logo veremos.

13 comentários:

Jaime Santos disse...

Discordo de si, Sr. Embaixador. Essa ordem alternativa sempre existiu. Fossem as oligarquias económicas e ou militares que governavam Estados onde existiam ditaduras de Direita, fossem as vanguardas revolucionárias nas chamadas 'democracias populares' compostas pelos quadros do PC local dirigente, o modelo defendido sempre foi um modelo na prática aristocrático.

Não diziam certos Partidos de Esquerda em Portugal após o 25 de Abril que o Povo não estava preparado para eleições (a razão tornou-se óbvia com os resultados da Constituinte)? Não defendia o PCP um modelo de educação elitista (a que o nosso PM se opôs quando era aluno do Liceu), à imagem do que se fazia na URSS?

E os atuais candidatos a déspotas também procuram legitimar-se democraticamente na maioria dos casos (e são populares em muitos Países que governam). As eleições é que não são lá muito democráticas.

Eu diria que a defesa aberta dessa visão aristocrática (uma contradição nos termos, pois um aristocrata é aquele que luta contra as tiranias) só se verifica em Países onde vigoram regimes de Partido Único, lugares como Cuba, a China ou o Vietname...

Francisco Seixas da Costa disse...

O pretenso comentador Mário não percebeu ainda que este boogue não é “cabide” para links? Aqui não se destacam outros endereços. Como não espero que ninguém faça comigo. Por isso, agradeço que “desampare a loja”: só está a perder o seu tempo.

Francisco Tavares disse...

É curioso como a ideia de "... Parece estar a fazer o seu caminho um novo paradigma de gestão política das sociedades, menos assente no imperativo da aferição aritmética da vontade popular, responsável pela voz diferenciada das entidades políticas de representação de projetos - os partidos. O que se observa é a emergência de modelos elitistas de direção dos Estados, assentes basicamente em juízos de eficácia da ação desenvolvida. No fundo, a ideia é relativamente simples: a vontade democrática, expressa em eleições, não dá garantias de produzir uma gestão política de qualidade, pelo que é preferível confiar noutros tipos de seleção dos dirigentes, imbuídos do sentimento do “bem comum”..." parece assentar que nem uma luva às instituições da União Europeia. Ou não foi Jean Claude Juncker que disse qualquer como "...as eleições de um país não podem ir contra os tratados [da UE]....".

Jaime Santos disse...

Existe, claro, Francisco Tavares, um elemento aristocrático numa organização como a UE onde o poder é exercido por burocracias não eleitas (como aliás acontece com funcionalismo público em qualquer País democrático, vide o famoso Yes, Minister), mas isso que Juncker terá dito (não faço ideia se o disse ou não, na ausência de citação) aplica-se a todos os tratados internacionais que vinculam os Países.

Ou então não existe qualquer ordem internacional, boa ou má, existe apenas a Lei do Mais Forte. E isso são más notícias para um País pequeno como Portugal.

Aliás, na ordem interna, a soberania dos povos também é limitada (a CRP diz que ela é exercida em nome do Povo pelos seus representantes, de acordo com a Constituição), porque a soberania não é exercida pela Nação no seu conjunto e sim pelo Governo de turno. E a democracia não é uma tirania da maioria, logo o Povo não é soberano, a Lei é que o é (para evitar os abusos sobre as minorias).

Aquilo que os novos e os velhos autocratas contestam é precisamente a ausência das instâncias de representação e moderação (onde se incluem os tais tratados internacionais, pois claro) e a existência de uma ligação quase mística entre o Povo e eles (a supressão dos mandarinatos em Países como a China e a concentração do Poder num homem só é que é algo de novo, ou pelo menos não era visto desde os tempos de Mao).

Eu penso que o Sr. Embaixador, com o devido respeito, aplicou mal a palavra aristocrático (que utilizou entre aspas, bem entendido). O modelo representativo tem o seu quê de aristocrático e quem melhor o corporifica que o corpo diplomático :) ?

A palavra correta seria oligárquico, sem aspas. E nessa medida a UE também tem elementos oligárquicos (leia-se lobbies de influência)...

A.B. disse...

É ler Isaiah Berlin. Para quem não leu, é assim resumido o pensamento das luminárias que nos querem governar;
- o povo é ignorante e tem de ser educado
- nós que somos educados é que sabemos o que é melhor para o povo
- educar o povo demora muito
- o melhor é impôr já as nossas ideias para ir adiantando o progresso
- um dia o povo, devidamente educado por nós, perceberá que tínhamos razão

Jaime Santos disse...

Não A.B., é muito mais antigo do que isso, você tem é que ler Xenofonte que explica muito bem o que os demagogos conseguem fazer à multidão enraivecida, inclusive condenar militares distintos à morte...

Refiro-me ao episódio do julgamento dos generais após a Batalha de Arginusae... O povo no seu pior...

Os pais fundadores da República Americana conheciam todas as contradições da democracia clássica (que eles consideravam uma forma de anarquia) e foi por isso que inventaram o Governo Representativo.

Olhe para as experiências progressistas que abdicaram do Estado de Direito, Cuba e Venezuela em particular. O resultado não é brilhante...

Joaquim de Freitas disse...

Jaime Santos escreve, tarde, muito tarde - 21 de Agosto de 2021 às 01:21- e isto dá este resultado: “”um aristocrata é aquele que luta contra as tiranias” . Estava a dormir de pé ?

Coitado, Jaime Santos procura fazer boa figura por aqui. Navegou, no seu texto, entre oligarquia e aristocracia., mas não conhece a diferença…

Se fosse mais instruído saberia que são duas formas de governo em que a sociedade é dirigida por um pequeno grupo de pessoas. No entanto, há diferenças: a aristocracia é "governada pelos melhores", a oligarquia é "governada por alguns”. Compreendeu Jaime Santos?

Para o ajudar:
A aristocracia russa nasceu no século XIV e ocupou posições de poder no governo monárquico russo até à Revolução de 1917.

Depois vieram os oligarcas…Não lhe dou os nomes, para fazer "curto" e porque sei que são os seus “inimigos” de estimação!

Encontramos os mesmos em todos os países capitalistas…

Joaquim de Freitas disse...

Jaime Santos - 21 de Agosto de 2021 às 15:02 :

Que escreve: “Olhe para as experiências progressistas que abdicaram do Estado de Direito, Cuba e Venezuela em particular. O resultado não é brilhante... »


Guantanamo é em Cuba, país onde, para Jaime Santos, não existe Estado de Direito.

Nos EUA ali sim, existe um Estado de Direito que não permite fazer o que os americanos fazem em Guantanamo. A solução é de “exportar” todas as violações do estado de Direito, todas as coisas imundas de que são vitimas “os combatentes inimigos” não protegidos pelas Convenções de Genebra e outras, assim definido por Bush.

A poucos dias do final do seu mandato, o Presidente Obama tentou evacuar para países terceiros , com ou sem Estado de Direito, porque os dolares bastam, o maior número possível de prisioneiros, mas não conseguiu cumprir a sua promessa de 2008 de encerrar esta prisão "que o mundo condena", disse desde então.

Em muitos países, esta prisão encarna os excessos na luta contra o terrorismo dos Estados Unidos na sequência dos ataques de 11 de Setembro. Dos quais a invasão do Afeganistão faz parte. A factura a pagar chegou esta semana…

Gostei duma frase que li aqui, neste respeitável blogue: ‘ Vá às favas; Jaime Santos…

Portugalredecouvertes disse...

Espero que não venham um dia destes considerar que o povo é descartável

Frederico Fonseca Santos disse...

O caminho alternativo que o Sr. Embaixador descreve não é nada de novo para nós: foi vivido em Portugal de 1933 a 1974 e chamava-se Estado Novo. Esperemos, lutemos para que não volte mais.
A Democracia Liberal não é um sistema perfeito, mas, como disse Churchill, é o menos mau de todos os sistemas de governo. Não havendo nada perfeito nas acções humanas, o dever dos democratas é lutar todos os dias pelo exemplo e pela palavra para o aperfeiçoamento constante
do modelo democrático de governar

F. Fonseca Santos

Jaime Santos disse...

Joaquim de Freitas, não conhece a definição de Aristocrata que vem da Grécia antiga, nomeadamente de Platão e de Aristóteles, do Governo dos Melhores, dos mais capazes e com maior mérito?

Um Governo que se opõe à Tirania, à Oligarquia (uma forma corrompida de Aristocracia) e à Democracia como era praticada em Atenas...

É a isto que eu me referia, não a um governo por uma elite hereditária, a que se chama habitualmente aristocracia.

Se não conhece esta definição, não tenho que lhe faça... Vá mas é estudar, como se dizia ao Relvas...

E sim, a nomenklatura comunista após 1917 transformou-se numa nova oligarquia. Os comunistas bem anunciavam (e ainda anunciam) uma aristocracia no sentido original, mas a coisa degenerou porque o ser humano é venal e se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente e não há cá doutrinas sobre o Homem Novo que mudem isso...

Como já previa Bakunine, o socialismo transformou-se numa ditadura em nome do comunismo. E o objetivo de uma ditadura é apenas e tão só a sua perpetuação...

E isto tanto é assim que após o colapso da URSS muitos dos membros dessa nomenklatura rapidamente ingressaram na nova oligarquia, económica e política, que governa hoje a Rússia. A começar pelo seu Presidente atual, claro...

Quanto a Cuba, uma visita rápida à página da Amnistia Internacional mostra que esta organização nomeou recentemente 6 novos prisioneiros de consciência nesse País: Luis Manuel Otero Alcántara, José Daniel Ferrer García, Esteban Rodríguez, Thais Mailén Franco Benítez, Maykel Castillo Pérez e Hamlet Lavastida.

Daqui: https://www.amnesty.org/en/latest/news/2021/08/cuba-amnesty-international-names-prisoners-of-conscience/. A página descreve outras violações dos direitos civis de cubanos que não a prisão...

Um Estado que mete pessoas na prisão por causa das suas opiniões não é um Estado de Direito (ou pelo menos a sua ordem legal é injusta) independentemente das malfeitorias dos EUA (você já parece o José mais o seu whataboutism, os extremos tangem-se)...

Ou defende o Joaquim de Freitas que a política externa americana em relação a Cuba e a outros Estados justifica que estes violem os direitos dos seus próprios cidadãos? Se calhar defende...

Ou se calhar defenderia essa violação de direitos de qualquer maneira, afinal uma ditadura do proletariado é sempre uma ditadura...

Mas homem, há uma maneira simples de acabar com o embargo criminoso e porventura convencer os EUA a devolver a base de Guantanamo. Basta que o PC cubano decrete as liberdades cívicas, liberte todos os prisioneiros de consciência e convoque eleições livres e justas.

A única soberania digna desse nome é aquela que se exprime pelo voto livre. E se o povo cubano ama tanto assim a sua Revolução, seguramente que dará a Maioria aos comunistas... Que têm eles a temer?

E eu não vou a lado nenhum. Vou continuar aqui a chamar a atenção para a hipocrisia da posição de muita gente, à Direita e à Esquerda, que se recusa a aplicar a si própria e aos seus amigos a mesma bitola que aplica aos adversários. E se não gostar, pode ir fazer queixinhas ao Sr. Embaixador. Duvido é que ele lhe dê ouvidos...

Por último e mal que lhe pergunte, que tem você a ver com a hora a que eu escrevo o que quer que seja? Não preciso de comissários a velar pelo meu estado de saúde, como no livro do Orwell :), já sou bem crescidinho e estou acordado ou durmo às horas a que me apetece...

Meta-se mas é na sua vida :) ...

septuagenário disse...

As Nações Unidas são uma fantochada, uma meia mentira, que nunca ninguém respeitou, tivemos, nós portugueses essa certeza durante os nossos 13 anos de "guerra ultramarina".

Eramos condenados mensalmente a ser corridos, expurgados e isolados pela maioria de centenas de governos bárbaros uns, ditadores outros e vinha um dos 3 ou 4 grandes e boicotava aquela maioria toda e ficava tudo na mesma.

A ONU, aquela fachada de "faz-de-conta", daquele tempo, hoje impotente tal como a decadente europa, apoiava independências africanas, humanamente impossíveis e condenava as colónias portuguesas, apenas "porque sim".

Isto para dizer que a ONU , e os seus "direitos humanos" e a sua moral não teem a qualquer credibilidade, assim como hoje a Europa, e o seu prolongamento os EUA, já passaram à história, há muito tempo.

Este afeganistão é mais uma das muitas demonstrações.

ass. Retornado

Luís Lavoura disse...

A ordem alternativa esteve bem à vista durante a epidemia de covid-19. A China deu uma resposta autoritária a essa epidemia. Todos os países "ocidentais" (com a exceção da Suécia) imitaram a China, mandaram o liberalismo à malvas e ordenaram e proibiram aos cidadãos, em detalhe, aquilo que deveriam e não deveriam fazer.
Não pode haver qualquer dúvida: a ordem iliberal, autoritária, de controle a partir de cima, da China venceu. A liberdade já era.
(Curiosamente, a Rússia, eu o "Ocidente" gosta de acusar de autoritarismo e centralismo e mais não sei quantos, foi dos países que reagiu mais liberalmente à crise.)

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