Os últimos anos têm vindo a consagrar um tempo saudavelmente diferente no que toca à exigência ética requerida aos agentes políticos. Olhando para trás, fica a sensação de que a opinião pública tolerou, por muito tempo, certas formas desviantes de comportamento, talvez por assumi-las como consonantes com uma cultura bastante generalizada, e até silenciosamente aceite. O facto de raros serem aqueles cidadãos que se podiam dar ao luxo de dizerem que nunca “meteram uma cunha” foi criando como que uma discreta cumplicidade, face a modelos de comportamento que não cumpriam, a 100%, as regras oficiais do jogo.
Porém, iria ser o surgimento de acusações de maior ou menor corrupção, com compra ou desvio de decisões, de atos de grave tráfico de influências, com consequências deletérias para o erário público e para o equilíbrio e legitimidade da ação dos órgãos do Estado, muitas vezes com a emergência de súbitas e inexplicáveis fortunas, que foi gerando um crescente ambiente de escândalo. Essa reação foi claramente potenciada por um maior escrutínio mediático e, muito em particular, pela divulgação sucessiva de acusações e suspeitas. A sociedade está mais atenta e isso é bom e muito saudável para a vida democrática.
Esta atitude de vigilância coletiva, de exigência de maior justiça, acarreta, contudo, alguns aspetos menos sãos. Esse clamor generalizado está a criar, frequentemente, um caldo de cultura acusatória em que não se cuida em separar o trigo do joio, numa atitude de “não há fumo sem fogo”, em que a mera suspeita é logo transformada em labéu, mesmo que, ao fim do dia, nada venha a ser provado. Estamos, nesses casos, perante meras formas demagógicas de justiça popular sumária. Se, para os reais culpados, esse preconceito acaba por ser justificado, para os inocentes esse será sempre um peso insuportável e eterno.
A comunicação social e as redes sociais têm hoje essa dupla face: de denúncia saudável do que está errado e, muitas vezes, de promotores de acusações infundadas, sobre pessoas que nada devem à justiça - apenas numa lógica de irresponsável má língua, de potenciar da inveja, de mero despeito, quando não do levar à prática agendas de difamação e de ódio. E não sendo a verdade como o azeite, que rapidamente vem à tona na transparência das águas, nesse tribunal da opinião pública raramente funciona o motto da justiça segundo o qual “in dubio pro reo” (na dúvida, o réu é protegido).
Este equilíbrio entre a necessidade de divulgação das suspeitas, mesmo das acusações, e a preservação da presunção da inocência dos indiciados, com a possibilidade de recuperação plena da sua reputação em caso de ausência de prova, é um desiderato social difícil de conseguir. Visivelmente, há quem não se importe em preservar esse valor, nota-se mesmo uma espécie de sadismo acusatório, num coro abrutalhado e demagógico, a que chega a ser arriscado alguém objetar. Alguma comunicação social está, aliás, na primeira linha desse comportamento.
A sociedade política não está isenta de culpas neste terreno. Os partidos, que usufruem de um quase monopólio de representação institucional, não podem continuar a não tirar consequências, em tempo útil, das atitudes de quantos atuam em seu nome. Os delitos praticados por quantos acederam a cargos por virtude da confiança democrática dos cidadãos têm de lhes merecer uma atenção muito particular. Sabemos quanto os principais partidos dependem do poder autárquico e de como temem fragilizar quem, a nível local, atua em seu nome. E também é óbvio que essas forças partem sempre do princípio cautelar de que uma acusação não pode ser uma condenação antecipada. Mas não seria prudente, para uma qualquer força partidária, transmitir um sinal de respeito pelo processo judicial, com impacto público, suspendendo preventivamente de órgãos de direção quem houvesse sido objeto de uma indiciação por crime grave por parte do Ministério Público? Não estaria em causa uma expulsão das fileiras, mas um mero afastamento até tudo ficar mais claro. Ao não fazê-lo, deixam-se cair no fácil “são todos iguais”.
(Artigo publicado no “Jornal de Negócios” em 21.6.19)