Ser diplomata português em Angola, por esses dias, não era coisa fácil, podem crer. Tentar ter uma relação normal com entidades oficiais ou oficiosas angolanas era coisa bem difícil, por muito que a empatia pessoal com os nossos interlocutores locais tentasse, e às vezes conseguisse, impor-se. Contudo, quase tudo o que oferecêssemos, como gestos de simpatia e cooperação, era sempre objeto de grande escrutínio, e quase sempre rejeitado.
O “Jornal de Angola” e a agência noticiosa Angop eram as pontas de lança de uma campanha contínua, que tentávamos desarmar, quase sempre sem grande sucesso, dado que ambas as entidades funcionavam como o braço escrito da máquina de propaganda do regime. Os editoriais inflamados, aliás escritos, quase sempre, num irónico português imaculado, as diárias notícias sobre a cumplicidade lusitana com os inimigos do regime (sinónimo de inimigos do país), tudo isso era matéria para um muito difícil “combate”, por parte da embaixada de Portugal.
Por uma qualquer razão, eu acabava por ser, de entre os diplomatas da pátria que por ali andavam, aquele que tinha melhor relação com os jornalistas angolanos. Alguns iam a minha casa, outros acompanhavam-me em eventos públicos, talvez absolvidos pela imagem “de esquerda”, de “homem do 25 de abril”, que eu ainda projetava. Usufruia assim de um estatuto ambíguo, de que eu disfrutava junto de algumas entidades mediáticas angolanas. Ainda hoje estou para perceber como isso “funcionava” realmente, nos setores oficiais angolanos.
Um dia, consegui o ensejo de almoçar com um dos responsáveis da agência oficial de notícias, a Angop. Era um homem ideologicamente férreo, nada aberto a concessões na ortodoxia oficial, que defendia e projetava. Durante a refeição, referi a “cooperação”, palavra muito em voga, que Portugal podia prestar à agência. Ficou, desde esse momento, muito claro que estava fora de causa um intercâmbio informativo com a nossa Anop. A linguagem, a orientação, o estilo - tudo impossibilitava um entendimento.
A certa altura da conversa, falou-se de materiais de trabalho. E referiram-se os dicionários, um dos meus eternos “vícios” (sou um colecionador, quase imbatível, de dicionários de língua portuguesa, portugueses e brasileiros). “Não têm necessidade de dicionários, lá na Angop?”, lancei, como isca. Vi os olhos do meu interlocutor interessados e logo fui a jogo: “Se quisessem, estou certo que a Cooperação portuguesa poderia oferecer-vos uma dúzia de dicionários, para a vossa redação”.
Vi que o nosso homem estava a ficar verdadeiramente interessado. Não sei que dicionários haveria pela Angop. Talvez um Torrinha ou um Lello, seguramente que não um esplêndido Moraes ou mesmo um Cândido de Figueiredo. E o que é que poderia haver de mais “neutral” do que um dicionário? Nunca a aceitação dessa oferta poderia ser interpretada como uma cedência ao “lacaio do imperialismo” que Portugal era, oficialmente, para a Angola de então. Ouvi, então, com prazer: “Seriam muito bem vindos uns dicionários de língua portuguesa”. Não deixei “cair a bola” e inquiri: “Que dicionário gostariam de ter?” O da Porto Editora foi a escolha.
Regressado ao escritório, informei logo o embaixador António Pinto da França e, de imediato, seguiu um “telegrama” para Lisboa a pedir a dúzia requerida de dicionários. A bem dizer, era uma “lança em África”, na verdadeira aceção da palavra, uma brecha hábil na recusa empedernida, por parte de Angola, de aceitar gestos de simpatia por parte da Cooperação portuguesa.
Semanas mais tarde, pela mala diplomática, lá chegaram os dicionários da Porto Editora. E logo seguiram para a Angop, embora com uma pequena “pausa” na embaixada. Já explico...
Desde há uns meses que, numa iniciativa que tinha saído da genialidade do meu colega José Stichini Vilela, conselheiro da embaixada, nós distribuíamos, todas as semanas, pelas empresas portuguesas sediadas em Angola, exemplares dos jornais “A Bola” e o “Record’, que nos chegavam pela mala diplomática.
A “fome” local de imprensa desportiva portuguesa era imensa, entre os expatriados nacionais, vindo a alargar-se a setores angolanos que, por muito que se obstinassem em atacar Portugal nas conversas do dia a dia, acabavam por ter um inescapável tropismo afetivo pelos principais clubes de futebol portugueses, que ultrapassava todas essas barreiras.
Ao final de algumas semanas, tivemos mesmo de reforçar a “dose” de jornais desportivos portugueses. No dia da mala diplomática, ao final da manhã, criava-se, à porta da embaixada uma multidão de “utentes”, à espera dos exemplares dos jornais.
Sabíamos que, em algumas empresas e entidades, era aposta uma folha nominativa de consulta, circulando cada exemplar por várias pessoas em Luanda, “migrando” depois para localidades da província. Alguns gabinetes de ministros fizeram discretas diligências para serem beneficiados com um exemplar. Foi um êxito!
Na minha qualidade de responsável na embaixada pela área da Cooperação, eu tinha entretanto “inventado” um imenso carimbo, em fortes maiúsculas, que era aposto nas primeira, última e páginas centrais dessas dezenas de exemplares da imprensa desportiva nacional, com os seguintes dizeres” “Oferta da Embaixada de Portugal”.
Nos dias em que a mala diplomática chegava, os jornais iam logo para a sala do Silva, um funcionário da embaixada, que era quase cego, e que, por uma boa meia hora, quase sem olhar, fazia ressoar por toda a casa o batimento imperativo daquele carimbo, para que o nome da embaixada ficasse indelevelmente associado àquela distribuição benévola. Para que dali pudéssemos retirar algum subliminar crédito político.
Mas voltemos aos dicionários. Confesso que não resisti. Pela minha própria mão, antes de os enviar para a Angop, enchi várias (dezenas, confesso!) páginas de cada dicionário com esse imenso carimbo: cada vez que um jornalista da Angop viesse, no futuro, a verificar o significado ou a grafia exata de uma palavra, na nossa língua comum (em Angola, o português é o de Portugal, pelo que o Aurélio ou o Caldas Aulete, dicionários brasileiros, eram menos práticos), ali estava a menção inapagável de que isso se tinha ficado a dever à simpatia da embaixada do país que a produção informativa da agência continuava diariamente a diabolizar.
A vingança serve-se fria, embora, com o clima de Luanda, a metáfora fosse ali de mais difícil aplicação.