A França vive dias terríveis. A dimensão dos últimos atos terroristas, a flagrante
incapacidade revelada pelos serviços de informação e pelas forças policiais em
aprenderem as lições do caso “Charlie Hebdo” induz um ambiente de grande
instabilidade no quotidiano dos franceses.
Sempre que um atentado abala uma cidade, emociona-me que a reação de muitas
pessoas ouvidas pela comunicação social vá no sentido de não poderem deixar que
o terrorismo condicione o modelo comportamental das suas sociedades.
Vivi em Londres quando a City foi abalada por bombas do IRA. Estava em Nova
Iorque no dia em que as Twin Towers foram derrubadas. Cheguei a Paris poucas
horas depois dos atentados ao Charlie Hebdo. Em todos esses locais, encontrei sempre
gente chocada, com temores mas também com coragem. Sinto a maior admiração por quantos
teimam em não se deixar abater pelo terror que outros lhes pretendem impor.
Estou certo que os franceses, em especial os parisienses, não deixarão de tentar
preservar o património que é o seu quotidiano, passado que seja algum tempo
sobre a tragédia. Reforçarão talvez a sua tendência de evitar as “no-go areas”
da cidade, aquelas zonas etnicamente de transição, onde se cruzam, com fria
estranheza, os olhares furtivos de quantos se sentem diferentes - na raiz
humana, no vestir ou nos sinais exteriores, com a religião em fundo.
Infeliz mas inevitavelmente, isso irá contribuir ainda mais para isolar
essa França de origem magrebina, saída da imigração e hoje fortemente
estigmatizada. Como sair disto? Confesso não saber.
Num passado não muito distante, um certo discurso fazia acompanhar a
condenação de atos terroristas desta natureza por um inventário das causas
profundas que estariam na sua origem: no exterior, o conflito do Médio Oriente,
a intervenção dos EUA no Iraque e a humilhação histórica do mundo muçulmano; no
plano interno, pobreza e exclusão, discriminações étnicas e outras, razões que
alguns liam como desculpabilizantes. No que me toca, nunca me deixei atemorizar
por esses “polícias de opinião” e sempre sublinhei que, de facto, essas “root
causes” tinham de ser avaliadas, como elementos para se entender toda a
realidade.
Curiosamente, a emergência do Estado islâmico travou por completo a
invocação desse discurso. Ninguém com um mínimo de senso tem hoje palavras que
possam ser vistas como atenuando a ação desse bando de criminosos que pretende instalar
um patético “califado” e que, de caminho, revela os sentimentos e métodos mais
bárbaros, rapta e viola crianças e destrói um insubstituível património
histórico-arquitetónico. Creio ser uma evidência que está fora de causa
negociar com o Estado islâmico, que só importa destruí-lo.
François Hollande, há dias, falava em estado de “guerra”. Alguns acharam
que essa linguagem ecoava George W. Bush, com tudo o que isso trouxe de
desastroso para o Médio Oriente, bem como as feridas morais que Guantánamo
provoca ainda na credibilidade da maior democracia do mundo.
Tenho confiança em que o presidente francês possa gerir essa sua evocação
bélica com a consciência de quem dirige a “pátria das liberdades”, não passando
linhas vermelhas de respeito pelos valores humanistas e direitos essenciais dos
povos, desde logo o próprio povo francês. E, ao contrário de outros, sempre na
observância da ordem multilateral.
Além disso, espero que o sentido daquilo que é fundamental – isolar e
derrotar o Estado islâmico – possa, finalmente, conduzir a comunidade
internacional a chamar à responsabilidade países que se sabe serem cúmplices
dessa máquina de terror, que financiam as suas atividades, ajudam ao seu
rearmamento, deixam circular os seus quadros, facilitam a recolha do seu
petróleo e servem de vias para o tráfico de obras arqueológicas.
Nos dias que correm, Portugal tem de estar ao lado da
França, na proporção dos seus meios. Também tivemos os nossos mortos na noite
de Paris, um luso-descendente esteve envolvido nos atentados. Nada do que é
europeu nos pode ser alheio.
(Artigo que hoje publico na "Visão")