quinta-feira, novembro 19, 2015

O tempo e o medo


A França vive dias terríveis. A dimensão dos últimos atos terroristas, a flagrante incapacidade revelada pelos serviços de informação e pelas forças policiais em aprenderem as lições do caso “Charlie Hebdo” induz um ambiente de grande instabilidade no quotidiano dos franceses.

Sempre que um atentado abala uma cidade, emociona-me que a reação de muitas pessoas ouvidas pela comunicação social vá no sentido de não poderem deixar que o terrorismo condicione o modelo comportamental das suas sociedades.

Vivi em Londres quando a City foi abalada por bombas do IRA. Estava em Nova Iorque no dia em que as Twin Towers foram derrubadas. Cheguei a Paris poucas horas depois dos atentados ao Charlie Hebdo. Em todos esses locais, encontrei sempre gente chocada, com temores mas também com coragem. Sinto a maior admiração por quantos teimam em não se deixar abater pelo terror que outros lhes pretendem impor.

Estou certo que os franceses, em especial os parisienses, não deixarão de tentar preservar o património que é o seu quotidiano, passado que seja algum tempo sobre a tragédia. Reforçarão talvez a sua tendência de evitar as “no-go areas” da cidade, aquelas zonas etnicamente de transição, onde se cruzam, com fria estranheza, os olhares furtivos de quantos se sentem diferentes - na raiz humana, no vestir ou nos sinais exteriores, com a religião em fundo.

Infeliz mas inevitavelmente, isso irá contribuir ainda mais para isolar essa França de origem magrebina, saída da imigração e hoje fortemente estigmatizada. Como sair disto? Confesso não saber.

Num passado não muito distante, um certo discurso fazia acompanhar a condenação de atos terroristas desta natureza por um inventário das causas profundas que estariam na sua origem: no exterior, o conflito do Médio Oriente, a intervenção dos EUA no Iraque e a humilhação histórica do mundo muçulmano; no plano interno, pobreza e exclusão, discriminações étnicas e outras, razões que alguns liam como desculpabilizantes. No que me toca, nunca me deixei atemorizar por esses “polícias de opinião” e sempre sublinhei que, de facto, essas “root causes” tinham de ser avaliadas, como elementos para se entender toda a realidade.

Curiosamente, a emergência do Estado islâmico travou por completo a invocação desse discurso. Ninguém com um mínimo de senso tem hoje palavras que possam ser vistas como atenuando a ação desse bando de criminosos que pretende instalar um patético “califado” e que, de caminho, revela os sentimentos e métodos mais bárbaros, rapta e viola crianças e destrói um insubstituível património histórico-arquitetónico. Creio ser uma evidência que está fora de causa negociar com o Estado islâmico, que só importa destruí-lo.

François Hollande, há dias, falava em estado de “guerra”. Alguns acharam que essa linguagem ecoava George W. Bush, com tudo o que isso trouxe de desastroso para o Médio Oriente, bem como as feridas morais que Guantánamo provoca ainda na credibilidade da maior democracia do mundo.

Tenho confiança em que o presidente francês possa gerir essa sua evocação bélica com a consciência de quem dirige a “pátria das liberdades”, não passando linhas vermelhas de respeito pelos valores humanistas e direitos essenciais dos povos, desde logo o próprio povo francês. E, ao contrário de outros, sempre na observância da ordem multilateral.

Além disso, espero que o sentido daquilo que é fundamental – isolar e derrotar o Estado islâmico – possa, finalmente, conduzir a comunidade internacional a chamar à responsabilidade países que se sabe serem cúmplices dessa máquina de terror, que financiam as suas atividades, ajudam ao seu rearmamento, deixam circular os seus quadros, facilitam a recolha do seu petróleo e servem de vias para o tráfico de obras arqueológicas.

Nos dias que correm, Portugal tem de estar ao lado da França, na proporção dos seus meios. Também tivemos os nossos mortos na noite de Paris, um luso-descendente esteve envolvido nos atentados. Nada do que é europeu nos pode ser alheio.

(Artigo que hoje publico na "Visão")

4 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

Mas o Senhor Embaixador tem razão : estes criminosos merecem a punição suprema e devemos unir-nos nesta punição. Mas é que estamos unidos? Onde começa a verdade e a hipocrisia do Ocidente?

Na Síria cometemos muitos crimes financiando os djiiadistas para servir os interesses políticos e o nosso servilismo à Nato e aos EUA. Como na Libia, aliàs.

Precisamos de banir o falso discurso, a "langue de bois" como dizemos aqui. E assim não esquecer o maior campo de concentração no mundo , no que resta de Palestina. Porque criticar Israel e o seu apartheid, e os crimes do Mossad no mundo, é ser anti semita. O mesmo para o Afeganistão, o Iraque, etc.

Porque no fundo, mesmo se não é a única razão, e o Senhor Embaixador tem razão, o Ocidente , com todas as suas guerras directas ou por procuração, desde há dezenas de anos, criou ou deixou desenvolver-se o caos actual .

Senhor Embaixador, o Senhor diria isto muito melhor que eu, mas vejamos a origem deste caos , a nossa história do 21° século.

As "Corporates" , que imprimem notas de banco 24h/24, depois de ter semeado o caos na Ásia transportaram os seus campos de horror para o Médio Oriente. Para desembarcar aqui, bastou a mascarada do 11 Setembro mas conseguiram : Afeganistão, Iraque, Líbia, e na Síria, arruinaram países onde as fotos de "antes"-depois" nos mostram os estragos.
Há alguns meses atrás, sem dúvida encorajados pelo sucesso das suas revoluções coloridas, meteram-se na cabeça de pôr a Rússia no porão dos escravos. Depois, cercaram-na com as suas bases. Queriam fazer um passo mais, mais caíram em frente dum osso: Putin. Que é um grande estratega.

Não somente Putin recuperou a Crimeia sem dar um tiro, mas face ao imbróglio Sírio e a vontade das Corporates de liquidar Assad para fazer passar os pipelines na Síria, começou a sua guerra contra os rebeldes armados pelo...Ocidente. Provando que a guerrinha que a coligação fazia ao Daesh não era mais que para "inglês" ver. Basta ver a dimensão que Daesh atingiu, até chegar às portas de Damasco!
Duzentos kms de deserto separavam Rakka de Palmira. Quem pode crer que a coligação não tinha os meios de parar as colunas de Toyotas armados de Daesh?

Sexta-feira, em Paris, muitos inocentes morreram. Para que o gás e o petróleo enriqueçam as Coportates Mas quantos o sabem?

Temos a nossa guerra e os nossos mortos. A França reconheceu que vendeu as armas que dispararam contra nós. Os EUA idem.Um pouco de lógica!

Um jogo duplo que explica os atentados de Paris, pelo menos tanto como o obscurantismo assassino dos terroristas.

Majo disse...

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Concordo: é urgente coragem e ação, porém,

a maior contenção a todos os níveis...
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Manuel do Edmundo-Filho disse...

Há um ponto neste post que me toca particularmente. Sou dos que tendo a ler "como desculpabilizante", condenar um atentado terrorista destas dimensões como ocorreu agora em Paris seguido, acto contínuo (muitas vezes sem sequer se colocar uma vírgula antes do “mas”), do desfiar quase mecânico das raízes, já conhecidas de todos - de tão repetidas - do terrorismo islâmico. Nalguns casos a condenação prévia é meramente instrumental, serve apenas para legitimar e dar mais força ao que se diz a seguir. Noutros, é uma tentativa louvável de mostrar algum equilíbrio de análise. Porque não, condenar e repudiar, ponto? Deixar a análise para o dia seguinte.

Mas o que é mais curioso, e revelador também, é que todas as raízes do terrorismo islâmico nascem obrigatoriamente no Ocidente. Todas elas. Dê-se a volta que se der. Somos vítimas e carrascos de nós mesmos. É o “pecado original” do Ocidente.

A este propósito recomendo uma análise do Henrique Raposo, publicada na revista Ler e hoje transcrita no blog Malomil.

Unknown disse...

Estar ao lado das vitimas, de Paris, de Beirute, de Alepo... sim.
Estar ao lado dos políticos franceses que invadem a Libia, interferem permanentemente na Siria e onde calha e depois vêm declarar guerra, quando a fazem encapotados há anos? só de tolos.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...