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quinta-feira, fevereiro 23, 2012

José Afonso

Tive a sorte de poder assistir - de pé, bem à frente - ao espetáculo histórico que teve lugar no Coliseu dos Recreios, de Lisboa, em 29 de Março de 1974, pouco antes do 25 de abril.

Hoje, dia em que passam exatamente 25 anos sobre a morte de José (Zeca) Afonso, aqui fica uma imagem desse momento, na qual se podem ver, da esquerda para a direita, Barata Moura, Vitorino, José Jorge Letria, Manuel Freire, Fausto, Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira. Foi uma sessão memorável, mas, se bem recordo, uma noite em que Zeca Afonso não cantou nenhuma das suas principais canções, porque a isso não estava autorizado.

Da sua produção, e numa versão "pura", escolhi o tema de 1963 "Os Vampiros".

domingo, fevereiro 19, 2012

Igrejas Caeiro (1917-2012)

Imagino que a morte de Igrejas Caeiro possa deixar indiferente muita gente, que nunca nele ouviu falar e que nunca escutou a sua inconfundível voz, que é parte da história da rádio portuguesa.

Igrejas Caeiro, um homem perseguido pelo Estado Novo, pelas suas ideias democráticas, faz também parte da nossa história cívica, nomeadamente como deputado à Assembleia Constituinte.

É sempre triste constatar a morte de um dos nossos "Companheiros da Alegria". Particularmente num tempo em que, cada vez mais, "uma nota de quinhentos não se pode deitar fora".

terça-feira, fevereiro 14, 2012

Café Filho

Há uns dias, falei por aqui de Café Filho. Um colaborador da embaixada, antes de ir googlar as suas dúvidas, perguntou-me quem era.

Café Filho foi um presidente inesperado do Brasil. Sucedeu a Getúlio Vargas, depois do suicídio deste, em 1954. Foi presidente por menos de um ano e meio, tendo-se afastado do cargo por formais razões de saúde (morreu em 1970, com 71 anos). Nem por isso o Estado Novo português deixou de o convidar para uma deslocação a Lisboa, que ficou nos anais das grandes visitas de Estado realizadas a Portugal.

O objetivo de Lisboa era garantir o apoio do Brasil à sua política colonial, atitude que este país só viria a modificar depois da instauração da ditadura militar. Espera-se que que alguém tenha tido o cuidado de explicar a Café Filho que o banho de multidão que teve pelas ruas de Lisboa era menos a expressão da sua popularidade pessoal do que a mostra da imensa simpatia que Portugal tinha pelo país que representava.

Deve ser interessante procurar, nos arquivos do MNE o argumentário que terá estado subjacente ao convite para uma visita de Estado de tão efémero e transitório personagem. Mas a presciência na decisão deve ter sido, pelo menos, idêntica àquela que nos levou, anos mais tarde, a iniciar a construção do monumental palácio de S. Clemente, no Rio de Janeiro, para futura embaixada de Portugal, quando já estava praticamente tomada a decisão de mudar a capital do país para Brasília...

Voltando a Café Filho, foi-me muito interessante verificar, durante os anos que vivi no Brasil, que raramente alguém o identificava como um chefe de Estado da história do país. E que todos ficavam altamente surpreendidos quando eu lhes revelava que essa figura política havia atravessado em glória a rua Augusta, em Lisboa, em carro aberto, sob aplausos e chuva de papelinhos, como o mostram os jornais da época.

Um dia, ao visitar oficialmente a cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, pedi para incluírem uma visita ao "Museu Café Filho". Todos os interlocutores locais ficaram surpreendidos, porque, sem exceção, desconheciam a existência desse museu e, alguns deles, do próprio Café Filho, que não identificavam como potiguar (designação dos naturais do Rio Grande do Norte). Teimosamente, lá consegui colocar a visita na agenda. O museu, afinal, era uma desilusão. Como detetei pelo livro de registo, os seus visitantes eram muito escassos. Recordo-me que havia algumas salas com móveis, estantes com livros e muito pouca documentação. Nesta faltavam fotografias da sua "apoteótica" visita a Portugal, que tanto havia marcado a minha memória de infância. 

segunda-feira, fevereiro 06, 2012

Isabel II

Um grande amigo, residente no Sri Lanka, mandou-me há pouco algumas belas fotografias da visita que a raínha Isabel II, de Inglaterra, fez a Portugal, em 1957, neste dia em que se celebra o 60º aniversário da sua assunção formal de funções. 

Na imagem que reproduzo, vê-se a soberana britânica com a mulher do nosso presidente da República, Berta Craveiro Lopes. E, também, o ministro dos Negócios Estrangeiros de então, Paulo Cunha, à conversa com o duque de Edimburgo.

A visita de Isabel II a Portugal fez parte de outras operações políticas e protocolares de idêntica natureza, muito ligadas à necessidade de garantir apoios à política colonial portuguesa. Lembro, neste contexto, a visita, em 1959, do imperador da Etiópia, Hailé Selassié (que, tal como a raínha, também fez uma vistosa entrada pelo Cais das Colunas), e dos presidentes da República do Brasil, Café Filho (1955) e Juscelino Kubitschek (1960), bem como do presidente Sukarno, da Indonésia (1960) e do rei da Tailândia (1960).

Em todos os casos, a Baixa lisboeta foi cenário de cortejos muito bem recheados de assistência, de que nos ficaram, para sempre, imensas fotografias a-preto-e-branco em "O Século Ilustrado". Mas pode dizer-se que as visitas de Juscelino Kubitschek e Isabel II foram, sem sombra de dúvida, as que mobilizaram um público mais sinceramente motivado. Isabel II viria a Lisboa mais tarde, em 1985, numa visita já sem o fausto de 1957.

Para se medir melhor a longevidade política da soberana britânica, consulte-se aqui.

domingo, janeiro 29, 2012

Curt Mayer-Clason (1911-2012)

Ontem, dei-me conta pelo jornais de que morreu, em Munique, com 101 anos, Curt Meyer-Clason.

O nome dirá pouco a gerações recentes, mas a cultura e a liberdade criativa ficaram a dever bastante a este alemão, que dirigiu o Instituto Goethe, em Lisboa, entre 1969 e 1976. 

Viveu duas guerras e duas derrotas alemãs. Durante a 2ª guerra mundial esteve internado num campo de "observação", no Brasil, onde estava como representante comercial, como estrangeiro suspeito, depois de Getúlio Vargas ter decidido mudar de posição em favor dos aliados. Foi na detenção que tomou conhecimento dos grandes escritores brasileiros, tendo-se tornado para sempre íntimo de Guimarães Rosa. Regressado à Alemanha, em 1954, editou e escreveu livros, tendo-se dedicado a traduzir e a fazer conhecer uma imensidão de autores de língua portuguesa e espanhola. 

Mas foi a chefia do centro cultural Goethe, ao Campo de Santana, onde me recordo dele a preponderar com uma pronúncia bizarra da nossa língua, que trouxe Meyer-Clason mais perto de alguns portugueses. O seu "Diários portugueses" dá conta desse tempo, sendo o livro um culto olhar estrangeiro sobre nós próprios. A instituição que chefiava funcionou com um saudável espaço de acolhimento, de que a cultura democrática portuguesa muito beneficiou. Rui Vieira Nery chamou-lhe "um polo insubstituível de produção artística de vanguarda e um espaço de liberdade criativa inusitada no meio das brumas da censura e da repressão". Sem partidarismos nem radicalismos, Meyer-Clason soube perceber os anseios de um certo Portugal e entender que por aí passava a chave do futuro do país.

Na hora do desaparecimento de Curt Meyer-Clason, e para que não se diga que a nossa memória se torna ingrata, quero aqui deixar uma palavra de saudade por um homem que também ajudou a construir a nossa liberdade.

domingo, janeiro 15, 2012

Ciberdúvidas


Fez ontem precisamente 15 anos, nasceu em Portugal o Ciberdúvidas, essa magnífica ferramente informática que nos ensina a esclarecer as dúvidas que possamos ter na utilização da língua portuguesa. 

Um dos seus fundadores, que ainda hoje é a teimosa alma do projeto, foi José Mário Costa, que, anos antes, fora já o organizador do primeiro "livro de estilo" de um jornal português, o "Público". Contra ventos e marés, tem conseguido levar avante o Ciberdúvidas e quero aqui deixar-lhe um abraço amigo e votos de coragem para o futuro.

Conheci o José Mário em 1968. Com o Fausto (esse mesmo, o cantautor) e outros amigos, fazia parte de um grupo de estudantes que, vindos de Angola, aportaram ao então ISCSPU, à Junqueira, nesses tempos em que Adriano Moreira tentava transmutar uma escola de formação de quadros para a administração colonial num centro cada vez mais dedicado às ciências sociais. Nos anos seguintes, estivemos envolvidos nas lutas académicas que "incendiaram" o ISCSP e a academia de Lisboa, com incidências na impressionante movimentação oposicionista para as "eleições" legislativas de 1969. O "Zé Mário" participou na primeira linha das batalhas políticas desse tempo e, por essa razão, foi preso pela PIDE/DGS. O 25 de abril iria encontrá-lo ainda, creio, na prisão política de Peniche.

Ao tempo da sua detenção, creio que em 1971, o movimento associativo universitário do ISCSPU decidiu inquirir junto da PIDE (que então já se chamava DGS - Direção-geral de Segurança - depois da reforma onomástica da "primavera" marcelista, que também transformou o partido único União Nacional em Ação Nacional Popular, bem como a Censura em "Exame prévio" ) sobre as razões que a fundamentavam e o futuro do nosso colega.

Porque era então presidente da Assembleia Geral da Associação académica, fui designado para me deslocar à sede da PIDE/DGS, na António Maria Cardoso. Expus o essencial da questão ao "pide" que estava na porta do prédio, que logo se mostrou um tanto perplexo com o sentido da diligência, estranhamente "naif", que eu estava a executar. Foi numa taquicardia conjuntural que subi a escadaria daquela sinistra casa, onde por aqueles tempos muita gente continuava a ser torturada, com as paredes recheadas de placas que lembravam agentes dessa polícia política que tinham perdido a vida em operações nas guerras coloniais em África.

Depois de uma longa meia hora de espera (é capaz de ter sido menos tempo, mas a mim pareceu-me uma eternidade), numa sala abafada, apareceu-me um "pide", com ar de mais sénior, a quem dei conta da nossa perplexidade pela detenção do nosso colega, explicando que também estávamos preocupados pelo facto dele não ter família na "metrópole" e, por essa via, poder não ter qualquer apoio.

O "pide", seco mas de bons modos, "sossegou-me": disse-me que o detido tinha uma tia que já tinha sido contactada e que "estava muito bem", pelo que não precisávamos de nos preocupar. Quanto aos motivos da detenção, nada podia dizer-me, mas "ninguém era detido sem razão". À saida, devolveram-me o bilhete de identidade que tinham guardado na portaria e, lembro-me bem, caminhei, sem olhar para trás, até à zona do S. Luiz, onde um grupo de colegas me aguardava. 

Só voltei a entrar na sede da polícia política depois do dia 25 de abril de 1974. Mas, nessa altura, foi já como militar e na minha qualidade de membro da "Comissão de Extinção da ex-PIDE/DGS e LP". A sala de espera onde eu tinha estado continuava idêntica. Mas respirava-se por lá melhor.

quarta-feira, dezembro 14, 2011

Grupo de Genebra

Nos anos 70, em Portugal, a minha geração ouvia falar bastante do "grupo de Genebra", um núcleo de exilados portugueses, alguns deles em rutura com o PCP, que produziam uma reflexão política original, a qual, a certo passo, passou a expressar-se através da revista "Polémica". Sabia-se que nomes como os antigos dirigentes associativos e líderes académicos como Eurico Figueiredo, António Barreto e José Medeiros Ferreira faziam parte desse núcleo. Mais tarde, Ana Benavente (que vim a cruzar no MES) e Valentim Alexandre foram revelados como também integrantes do grupo. Ao lado dessas pessoas, citava-se o nome de Carlos Almeida, um funcionário internacional que nunca regressou a Portugal e que, com Barreto, viria a publicar, ainda antes do 25 de abril, um livro que se tornou importante: "Capitalismo e emigração em Portugal".

Os membros do "grupo de Genebra", após a Revolução de abril, tiveram percursos, políticos e profissionais, algo diversos. Agora decidiram pôr em texto as suas memórias - "Pátria utópica - o grupo de Genebra revisitado" -, prefaciados por outro exilado, o escritor Amadeu Lopes Sabino. Cada um escreveu três capítulos, respetivamente sobre a saída de Portugal, a estada na Suiça e o regresso ao país.

Para quem se interessa por estas coisas, como é o meu caso, trata-se de um repositório interessante de memórias, que nos ajuda a perceber melhor um certo tempo de Portugal. Os textos são desiguais, na qualidade da escrita, na profundidade das ideias e até no modo como cada um tenta ou não desenhar, para a História, o seu caso pessoal. Mas é um livro que vale a pena.

terça-feira, outubro 04, 2011

O 5 de Outubro

Em Portugal, no tempo da ditadura, o 5 de Outubro, dia de implantação da nossa República, era uma data regularmente aproveitada pelos oposicionistas para celebrar a memória da democracia.

O curioso é que, ao tempo, alguém dizer-se "republicano", num regime que não tinha coragem de se afastar terminologicamente do conceito, era quase um ato de coragem, porque afirmava uma explícita rejeição do regime instaurado em 28 de maio de 1926. Ou, muito simplesmente, significava uma implícita colocação no campo da "oposição" ao Estado Novo, cujos defensores eram então designados, até pelos próprios, como a gente da "situação".

Nesses tempos, antes da Revolução de abril, recordo-me de ter participado em algumas iniciativas oposicionistas por ocasião do 5 de outubro. Eram, vulgarmente, romagens a cemitérios lisboetas onde estavam sepultadas figuras republicanas. Um dos momentos altos, nessa data, quase sempre alvo da repressão policial, consistia numa (muitas vezes apenas tentativa de) concentração junto ao monumento a António José de Almeida, ao Arco do Cego. Nunca esquecerei a figura magra, alta e esquálida de um homem que sempre aparecia nessas manifestações em Lisboa, com uma grande bandeira portuguesa, que a polícia, mesmo nos momentos de perseguição aos ajuntamentos, se via obrigada a respeitar. Não sei se a esse homem chegou a ser atribuída a Ordem da Liberdade. Bem a mereceria.

No ano de 1969, passei a data de 5 de outubro em Vila Real. Ao tempo, preparávamos no distrito o movimento da Oposição democrática (a Comissão Democrática Eleitoral, CDE) que haveria de defrontar a lista local da União Nacional. Contrariamente às listas CDE que haviam sido criadas em Lisboa, Porto e Braga, numa base um pouco mais radical, as CDE de província eram movimentos unitários onde se encontrava um pouco de tudo - republicanos "reviralhistas", monárquicos em aberta rutura com o regime, católicos em curso de dissidência com a hierarquia, socialistas de vários matizes, os comunistas "oficiais" do PCP e tantos outros, menos ou mais esquerdistas (como era o meu caso), sem filiação mas com uma imensa vontade de ver o Estado Novo pelas costas.

Organizado por um grupo liderado por essa grande figura de democrata que era o médico Otílio de Figueiredo, teve lugar, na noite de 4 de outubro de 1969, no restaurante Espadeiro, um jantar "oposicionista", que comemorava o "5 de outubro". Nele tomavam parte as figuras mais proeminentes da Oposição do distrito, tendo à frente, além do próprio Otílio de Figueiredo, José Alberto Rodrigues, Júlio Montalvão Machado e Camilo de Sousa Botelho. Eu e um grupo de jovens que fazíamos parte das estruturas organizativas da CDE de Vila Real decidimos dissociar-nos desse ato, por termo-lo considerado uma manifestação "burguesa" e saudosista. Só aparecemos para o café... No meu caso, fui mais longe: publiquei, na véspera, um artigo algo provocatório, no jornal local "A Voz de Trás-os-Montes", onde afirmava (e cito de cor) que "a nós não nos interessa nada o 5 de outubro de 1910, mas apenas o 5 de outubro de 1969". Os respeitáveis democratas vilarealenses devem ter olhado com displicente magnanimidade para essa nossa descabida ousadia. Só assim se compreende que tenham continuado a aceitar a nossa colaboração, nessa bela aventura que foi a campanha para as "eleições" para a Assembleia Nacional de que já falei aqui, aqui e aqui

quarta-feira, setembro 14, 2011

Razão

Mário Soares olhou, um tanto surpreendido, para o homem. Não percebera o que ele queria significar ao afirmar:

- O senhor é que tinha razão. Eu não acreditei.

O português, empregado do restaurante onde ontem jantávamos, acrescentou:

- Em 1973, quando o servia num almoço por aqui, perguntei-lhe se aquilo, lá por Portugal, ia mudar. O senhor disse-me que não tardaria muito. Tinha razão. Mas, na altura, não fiquei convencido. Ando há anos para lhe dizer isto.

segunda-feira, agosto 22, 2011

Pousadas

Uma das poucas coisas que fragiliza a minha animosidade irredutível face ao Estado Novo são as nossas pousadas*. Foram criadas em 1942, por essa figura muito interessante da cultura portuguesa que se chamou António Ferro e representaram uma tentativa de dar realce às diferentes regiões do país, à diversidade da sua gastronomia e dos seus costumes, incentivando o turismo estrangeiro e um turismo interno mais exigente. Em 1945, tinham já sido estabelecidas oito pousadas. Vale a pena dizer que os "paradores" espanhóis, instituídos nos anos 20, foram os inspiradores das nossas pousadas, mas a expansão destas foi mais rápida e sustentada que o do (excelente, aliás) modelo vizinho, que só viria verdadeiramente a desenvolver-se a partir dos anos 70.

Ferro deixou bem claro o que pretendia das pousadas, ao afirmar, na inauguração da primeira daquelas unidades, em Elvas: "o luxo e a ostentação, muitas vezes sem conforto nem bom gosto, não constituem, obrigatoriamente, a matéria-prima do turismo", pelo que as pousadas deveriam ser "pequenos hotéis que não se parecessem com hotéis". Embora isto possa chocar os espíritos de hoje, nada melhor para qualificar o seu objetivo do que esta sua frase: "se o hóspede, ao entrar numa destas Pousadas, tiver a impressão de que não entrou num estabelecimento hoteleiro onde passará a ser conhecido pelo número do seu quarto, mas na sua própria casa de campo, onde o aguardam os criados da sua lavoura, teremos obtido o desejávamos". E também: "o conforto rústico, bom-gosto fácil no arranjo das coisas e também no paladar, simplicidade amável, eis as grandes linhas do programa das nossas Pousadas", que se pretendiam "pequenos conservatórios da cozinha portuguesa". Os tempos mudaram muito e as pousadas também.

Inicialmente, as pousadas eram relativamente baratas e - imagine-se! - tinham um limite imperativo de três dias de ocupação por utilizador. A forma da sua gestão teve um percurso que partiu da plena dependência estatal até ao modelo atual, em que o grupo hoteleiro Pestana detém uma posição maioritária, numa forma de semi-privatização, que não deixou de ter consequências sensíveis na oferta atual de serviço e qualidade das Pousadas, sujeitas a um padrão de exploração onde praticamente desapareceram as preocupações originárias de serviço público. Algumas unidades vivem num regime de "franchising" que, igualmente, afeta fortemente a identidade do conceito.

Atualmente (2011) estão em funcionamento 40 pousadas **. Verifico que já dormi em 33 destas unidades hoteleiras mas, na realidade, já estive alojado em 48 pousadas... Como é isto possível? Porque, ao longo das últimas décadas, pelas minhas contas pessoais, desapareceram 17 pousadas (de que conheci 15). Recordo unidades que encerraram como pousadas, como as de Miranda do Douro (ia-se jantar à Balbina), de Póvoa das Quartas (ia-se ao Camelo, em Seia, ou ao Júlio, em Gouveia), de Castelo do Bode (ia-se, claro!, ao Chico Elias), de Serpa (jantava-se na Pousada mas, antes, ia-se beber a melhor imperial "do mundo" ao Lebrinha), de S. Brás de Alportel ou de Sousel, todas com panoramas magníficos. Mas, devo dizer, não verto lágrimas por pousadas desaparecidas como as de Monsanto, de Almeida, de Proença-a-Nova, da Quinta da Ortiga ou da Batalha. Apesar de tudo, confesso que tenho pena de já não existirem as unidades tão históricas como as de Santo António de Serém, de Santiago de Cacém, do Torrão ou de Vila Nova de Cerveira (onde se comia muito bem). Houve ainda uma pousada, em S. Martinho do Porto e uma unidade na Madeira, a pousada dos Vinháticos, não tendo conhecido ambas.

Durante alguns anos da minha vida, por razões diversas, tinha obrigatoriamente de trabalhar todos fins-de-semana. As pousadas eram o meu "pouso" preferido para isso. Nesse tempo, quando os preços eram outros, cheguei mesmo a passar férias em pousadas. Por isso, tenho sobre elas muitas e diversas experiências, que vão desde grandes exemplos de profissionalismo a monumentais descasos. Mas, apesar de algumas razões que possa ter em contrário, ainda hoje sou "addicted" das nossas pousadas e, sempre que posso, frequento-as.

* Uma nota curiosa. O conceito de "pousada", no Brasil, qualifica, em regra, estabelecimentos hoteleiros com um nível abaixo do das nossas pousadas. Assim, quando o grupo Pestana recuperou, em Salvador da Baía, o Hotel Convento do Carmo, que era, à  época, a mais bela unidade das "Pousadas de Portugal", não lhe essa designação.  

** Anoto aqui as primeiras Pousadas: Santa Luzia, Elvas (1942), São Gonçalo, Marão (1942), Santo António, Serém (1942), São Martinho, Alfeizerão (1943), São Braz, S. Braz de Alportel (1944), Santiago, Santiago do Cacém (1945), São Lourenço, Serra da Estrela (1948)

terça-feira, maio 17, 2011

Délio Machado

Chegou-me a notícia: morreu, em Vila Real, Délio Machado. Imagino que a esmagadora maioria dos leitores deste blogue não faça a menor ideia de quem ele era. Tratava-se de um homem simpático, na casa dos 80 anos, com um permanente sorriso, uma figura cuja imagem fazia parte do meu cenário da cidade, desde a infância. De uma família visceralmente "republicana" (vocábulo para significar "democrata"), foi um cíclico activista nas escassas aberturas "eleitorais" do Estado Novo.

No pequeno mundo que era Vila Real, no final dos anos 60, aproximei-me dele por via da política. Ele era um moderado, num tempo em que eu era um radical. Recordo, por exemplo, discordarmos fortemente sobre o modo de abordar o tema da política colonial. Trabalhámos juntos, e conhecemo-nos melhor, na montagem da máquina da Comissão Democrática Eleitoral, que, em Vila Real, concorreu às "eleições" de 1969. No alto dos meus 21 anos, com ele e com Otílio de Figueiredo, coube-me então a honra de integrar a delegação que fez a entrega formal da lista oposicionista do distrito ao Governador civil do regime.

Délio Machado era um eficaz operacional político. No seu rápido NSU - ele que foi sempre um homem dos automóveis - corremos "seca e meca" a tentar mobilizar figuras tidas como "gente fixe", em diversas localidades, pessoas que tinham estado "conosco" (não comigo, claro) nos tempos "do Norton e do Delgado". Tivemos então algumas boas surpresas, muitas outras desilusões e, numa tarde, escapámos por uma unha negra a uma sova de varapau em Abaças, ameaçados por gente da "situação". No final dessa bela aventura política, levámos uma já esperada "abada", sob a criativa aritmética de resultados da ditadura. Mas divertimo-nos imenso. E ficámos, para sempre, com uma relação de amizade e solidariedade.

Passaram, entretanto, quatro décadas. A vida fazia com que nos encontrássemos apenas a espaços, nas minhas passagens por Vila Real. Falávamos da política de hoje e recordávamos, por vezes, episódios dessa intensa jornada de outrora. Chegámos mesmo a planear organizar algo para fixar a memória desses tempos. Tal, porém, nunca se proporcionou.

Há poucos anos, teve a amabilidade de me oferecer a sua documentação política, que ainda não tive oportunidade de tratar. Agradeci-lhe o gesto, numa visita que lhe fiz, no lar onde estava alojado, no último dia de 2009, a desejar-lhe um bom ano. Não tive possibilidade de lhe ir dar um novo abraço, como era minha intenção, no final do ano passado. E, agora, já não o posso fazer.

quarta-feira, maio 11, 2011

Mulheres

Lembrei ontem a figura de Maria Lamas, na intervenção que fiz, na universidade de Nanterre, na abertura do importante colóquio internacional "As mulheres portuguesas na diáspora", que ali decorre até 14 de maio.

Julguei importante relembrar esta corajosa mulher portuguesa, desaparecida em 1983, que esteve exilada em Paris entre 1962 e 1969, e cujo trabalho pela emancipação da mulher deve ser relevado. A obra e a vida de Maria Lamas deveriam ser melhor conhecidas dos portugueses.

domingo, abril 10, 2011

La Lys e a Legião Portuguesa

No próximo fim de semana, vamos de Paris a La Lys, perto de Lille, rememorar, como anualmente fazemos, a batalha trágica em que morreram muitos militares portugueses, no termo da primeira Grande Guerra.

A batalha teve lugar em 9 de abril de 1918. Na minha infância, em Vila Real, a data era comemorada com uma romagem ao monumento a Carvalho Araújo, na avenida com o mesmo nome. Nas comemorações, tinha um papel mobilizador a Legião Portuguesa que, nas vésperas, vendia pela cidade miniaturas de capacetes militares, para pôr ao peito, financiando a Liga dos Antigos Combatentes.

As novas gerações desconhecem essa organização, criada num tempo em que o Estado Novo tinha uma vocação protofascista. A Legião era uma espécie de milícia armada, comandada por figuras políticas do regime ou por militares na reserva, que frequentemente era encarregada de levar a cabo algum "dirty work", muitas vezes em íntima ligação com a polícia política.

Nos anos 50, o regime pressionava fortemente os funcionários públicos a fazerem parte da Legião. Muitos aceitavam, as mais das vezes por temor a represálias do que por uma sincera adesão ideológica, outros recusavam, com dignidade e coragem. Após o desencadear da guerra colonial, a Legião desenvolveu, no seu seio, a Defesa Civil do Território, que tentou, sem grande sucesso, mobilizar esses setores oficiais do país para um cenário improvável de guerra no território europeu.

Com o tempo, com a desaparição do entusiasmo dentro do próprio regime pela "Revolução Nacional", a Legião foi-se "apagando" na província, embora subsistindo com algum vigor em Lisboa. A organização destacou-se em ações provocatórias perante a episódica emergência de movimentações democráticas, nos chamados "períodos eleitorais". Foi também responsável por algumas ações de vandalismo, como o ataque à Sociedade Portuguesa de Escritores (em 1965) ou à Comissão Democrática Eleitoral (CDE) de Lisboa (em 1969). A Legião, em especial através da sua FAC (Força Automóvel de Choque), levou ainda a cabo diversos atos de natureza repressiva e persecutória, alguns já no período do marcelismo.

Nessa fase terminal da "situação" (delicioso nome dado popularmente à ditadura, por contraste com a "oposição"), a Legião já se não sentia muito à vontade, tendo ainda como principais dirigentes figuras ligadas a setores de saudosismo salazarista, que contestavam a "primavera marcelista". Recordo, porém, em 1971, já na chamada "abertura" marcelista, o cerco feito por elementos da FAC a uma reunião do associativismo universitário, no Instituto Superior Técnico, que obrigou os integrantes da mesma a terem de saltar muros e a algumas corridas pela madrugada lisboeta.

Nesses últimos anos do regime, a Legião havia sido reforçada por algum "lumpen", por elementos da antiga OPVDCA (uma organização paramilitar criada em Angola, em 1961) e por militares desmobilizados. Ao que julgo saber, a ação da Legião Portuguesa concentrava-se então em ações de segurança de instalações petrolíferas na zona oriental de Lisboa. No 25 de abril, alguns dos revoltosos temiam, por mero desconhecimento, a força da Legião Portuguesa e a sua capacidade de resistência. Afinal, a organização viria a revelar-se um mero "tigre de papel", para usar uma expressão à época muito em voga.

Vale a pena reconhecer, em abono da verdade, que, ao menos no que respeitava às comemorações da batalha de La Lys, a Legião acabou por desempenhar um papel meritório. Era patrioticamente pedagógico, para as crianças das escolas, ver de perto o valoroso soldado Milhões, bem como os seus colegas veteranos da primeira Grande Guerra, orgulhosos com as suas condecorações ao peito, perfilados em frente ao monumento a Carvalho Araújo, ouvindo hinos e honras militares. 

Hoje, já não há velhos militares vivos dessa guerra e nem sei se alguém honra, em Vila Real, os mortos de La Lys. Aqui em França, e desde há muito, os embaixadores de Portugal e as Forças Armadas portuguesas cumprem, com empenhamento, esse ritual de respeito. No meu caso, regresso, com gosto, ao passado. Agora sem a Legião Portuguesa, claro.

quinta-feira, fevereiro 10, 2011

Alberto Oliveira e Silva (1924-2011)

Alberto Oliveira e Silva tinha um belo historial de luta contra a ditadura. Era advogado. Foi ministro da Administração Interna, em 1974, e governador civil de Viana do Castelo. 

Em Outubro passado, por motivos ligados à sua qualidade de provedor da Santa Casa da Misericórdia de Viana de Castelo, tivemos uma derradeira e longa conversa ao telefone. Relembrámos então a sua velha amizade com a minha família e, em especial, um último jantar em que havíamos estado juntos, aquando de uma iniciativa do jornal "Aurora do Lima". Prometi visitá-lo no Natal, compromisso que não cumpri. Faleceu em Viana, hoje, com 86 anos.

sexta-feira, fevereiro 04, 2011

Guerra colonial

Faz hoje 50 anos, iniciou-se em Angola a revolta contra a administração portuguesa, tema que, no ano passado. nesta mesma data, aqui abordei. Iniciava-se a nossa primeira guerra colonial.

Um amigo chamou, há poucos dias, a minha atenção para o facto de eu utilizar, com regularidade, a expressão guerra colonial, entendendo-a, aparentemente, como algo agressiva face a certos setores nacionais. Perguntou-me por que não falava em "guerra do ultramar" ou "guerra de África".

No léxico público português, o conceito de "guerra do ultramar" está ligado à ficção de que os territórios africanos que estiveram sob administração portuguesa, até 1974, eram "províncias ultramarinas", escondendo desta forma a realidade atrás das palavras. O facto de estarem "para além do mar", conceito de natureza geográfica, não retira a dimensão colonial à realidade que se pretende qualificar. Curiosamente, parece esquecer-se que o termo "colónias" (e até o de "império colonial") foi utilizado até muito tarde, pelo Estado Novo. Só quando os ventos descolonizadores se tornaram ameaçadores no plano internacional é que apareceu oficializado o conceito de "províncias ultramarinas" - no nunca convincente mito do "Portugal do Minho a Timor". Mais tarde, e como alguns se lembrarão, Marcelo Caetano viria mesmo a crismar com o equívoco nome de "Estados" os territórios de Angola e Moçambique, a exemplo do que fora usado para o "Estado da Índia".

As "possessões" (outro termo que, significativamente, se usava no salazarismo, paralelamente ao conceito de "ultramar") africanas e asiáticas eram simples colónias e, como tal, foram sempre consideradas pela comunidade internacional - a qual, valha a verdade, nunca foi "inimiga" de Portugal mas sim da ditadura que sobrevivia no nosso país. Contrariamente aos tempos do Estado Novo, em que quem falasse de "colónias" tinha a certeza de vir a sofrer represálias, hoje é perfeitamente legítimo, na democracia que a Revolução do 25 de abril nos trouxe, referir o "ultramar" ou as "províncias ultramarinas".

É óbvio que esta questão se prende com o problema da "guerra". Para alguns, o conceito de "guerra do ultramar" é mais confortável e a ideia de guerra colonial pode ser lida como potencialmente deslegitimadora da luta dos nossos soldados, entre 1961 e 1974.

Nada de mais errado. As Forças Armadas portuguesas conduziram, nesses 13 anos, um esforço de preservação da soberania portuguesa sobre as suas colónias, conforme lhe era ordenado pelo regime então vigente. Fizeram-no com o profissionalismo e o sentido patriótico a que sempre nos habituaram, arcando com sacrifícios em termos humanos que o país deve reconhecer e prestigiar. Os militares portugueses que intervieram nas guerras que Portugal disputou nessa África - todos os combatentes, mas, em especial, os feridos e os mortos - não são de "esquerda" nem de "direita", sendo patético ver a sua dignidade, muitas vezes, refém de aproveitamentos sectários, como se vê em algumas romagens de saudade. Esse militares lutaram por Portugal, na perspetiva do país que o regime impunha, defendendo o que lhes apontavam como sendo a nossa bandeira. E, contrariamente a certas vozes que por vezes emergem, tão patriotas eram os soldados que lutavam contra os movimentos independentistas das colónias (chamados então de "terroristas") como quantos se opunham, no interior ou exilados no estrangeiro, ao regime ditatorial que vigorava no país. Desigualizá-los em patriotismo é assumir a ideologia da ditadura. Hoje isso não é proibido, mas não deixa de ser significativo.

Convém também lembrar que foram essas mesmas Forças Armadas - as quais, com o seu esforço, tinham dado ao regime muito tempo para uma resolução política da questão colonial - que derrubaram o regime ditatorial e instauraram o sistema democrático. Foi a necessidade dessa rutura, que teria sido evitável se tivesse havido uma negociação tempestiva, que conduziu a uma independência atribulada das colónias, com dramas humanos - para os portugueses e para os povos colonizados - que eram perfeitamente escusados.

Por tudo isso, porque as coisas são o que são, continuarei a usar, aqui e como noutros contextos, a expressão guerra colonial. Outros podem optar por uma "terceira via", para fugir ao dilema: falar das "guerras de África" ou das "campanhas de África". Eu continuarei a chamar as coisas pelos seus nomes.

sexta-feira, dezembro 10, 2010

Craveiro Lopes (2)

A graça de um blogue está muito para além daquilo que um post acolhe. Às vezes, os comentários acabam por ter uma densidade própria e servir de valioso complemento informativo.

Em Agosto passado, publiquei um post sobre Craveiro Lopes (na foto, com a raínha Isabel II, em Fevereiro de 1957), que foi presidente da República entre 1951 e 1958. Ontem, um seu familiar juntou elementos interessantes, em jeito de comentários. A quem se possa interessar pelo assunto, recomendo uma visita aqui.

sábado, agosto 28, 2010

Salazar

Filipe Ribeiro de Menezes, um investigador português residente na Irlanda, publicou uma biografia política de Salazar nos Estados Unidos, como aqui já se referiu, há meses. Essa obra está prestes a ser editada em português, pela Dom Quixote.

De uma entrevista que concedeu à última "Visão", acho interessante citar:

"Não encontrei nada que me fizesse acreditar que Salazar alguma vez pensou, a sério, e desejou, sinceramente, retirar-se da cena política e, sobretudo, da presidência do Conselho de Ministros."

"Salazar era mais dono do seu tempo do que qualquer seu sucessor o conseguiu ser. Não tinha de comparecer perante o parlamento, raramente reunia o Conselho de Ministros, não se tinha de preocupar em manter a liderança partidária, não tinha de ir a Bruxelas semana sim, semana não... Tinha a vida que queria e trabalhou como quis."

"Salazar desejava o poder, e convenceu-se que governaria melhor que qualquer outro português. Estou convencido de que ele acreditava ser (ou que a certa altura acreditou ser) uma figura providencial."

"Se o Estado Novo mal sobreviveu a Salazar não foi devido ao enorme vazio que este deixou e que Marcelo Caetano não conseguiu colmatar - foi porque, graças à guerra colonial, Salazar deixou o regime numa situação impossível de resolver."

"O homem que se orgulhava de ter 'nascido pobre' é insensível à pobreza extrema que se encontra no país, ou à emigração que a política económica dos seus governos provoca."

"O facto de Salazar nunca ter denunciado o Holocausto, mesmo depois de finda a guerra, conta contra ele."

"O 'orgulhosamente sós' foi muito mais perigoso para a soberania nacional, e o papel de Portugal no mundo, do que qualquer outra política desde então seguida."

quarta-feira, agosto 25, 2010

Craveiro Lopes


O nome, agora conhecido, do próximo candidado presidencial do Partido Comunista Português, Francisco Lopes, leva a recordar que o nosso país já teve um presidente com um nome similar: Francisco Higino Craveiro Lopes.

Craveiro Lopes, um general da Força Aérea, surgiu na ribalta por virtude da morte súbita do presidente Óscar Fragoso Carmona, em 1951.

"Eleito" sob ditadura, em 1928, Carmona havia sido a resultante final dos golpes e contragolpes no seio das forças que fizeram o "28 de Maio", em 1926. O seu mandato, discretamente renovado em 1935 e  1942, viria a ser contestado, em 1949, pelo general oposicionista Norton de Matos, que desistiu antes do sufrágio. Ao que se sabe, as relações de Carmona com Salazar já não seriam as melhores, nos últimos anos de presidência, mas o velho general nunca se sentiu impelido a pôr em causa o aval que os militares, por seu intermédio, sempre deram formalmente ao Estado Novo. É que outro tipo de aval, complementar deste, e provavelmente mais eficaz na prática, era concedido ao ditador por Santos Costa, um hábil manobrador da corporação militar, que Salazar alcandorara à pasta da Defesa. 

A morte de Carmona induziu no regime um tempo político muito interessante, com os monárquicos a vislumbrarem, na conjuntura, uma oportunidade para colocarem, como "rei", Duarte Nuno. Este último era um "herdeiro da coroa", oriundo da linha miguelista, ungido como candidato ao trono pelo facto do último rei efetivo, dom Manuel de Bragança, exilado desde a implantação da República, não ter deixado descendentes. Salazar, ao que parece, não nutria especial apreço pela figura de Duarte Nuno, quanto mais não fosse pelo facto de este falar um português sofrível e por ser muito duvidoso que um "estrangeirado" desconhecido pudesse vir a criar uma relação afetiva com o país, numa "restauração" realista que poderia mesmo abalar alguns equilíbrios internos do regime. Há quem entenda que Salazar, ao levar o partido único, União Nacional, a não acolher a ideia de uma reimplantação da Monarquia, optando por voltar a escolher um novo presidente, terá quebrado definitivamente o laço que, praticamente desde 1926, vinha a manter com setores da linha monárquica, numa hábil ambiguidade que havia permitido o esmagador apoio desta corrente à ditadura. Seja isto verdade ou não, o facto é que, a partir desse momento, alguns monárquicos passaram a contestar publicamente Salazar e a alinhar, com alguma regularidade, com a oposição contra o regime.

Para a "eleição" em que Craveiro Lopes foi escolhido - que decorreu já sob a égide da Guerra Fria, sem que a ditadura, recém-admitida na NATO, sofresse grande pressão internacional para a democratização - o regime considerou inelegível um oposicionista mais radical, o professor Rui Luis Gomes, e criou condições repressivas que forçaram a desistência de um militar moderado, o almirante Quintão Meireles. O general da "situação" acabaria por ser, assim, o candidato único.

Francisco Craveiro Lopes revelou-se, de início, um presidente dócil, mostrando mesmo uma grande reverência face a Salazar. Tinha uma boa presença protocolar e a memória fotográfica portuguesa recorda um tempo recheado de visitas de Estado que protagonizou pelo lado português, desde a rainha Isabel II à rainha Juliana dos Países Baixos, passando pelos presidentes brasileiros Café Filho e Juscelino Kubitschek. As suas deslocações a África ou ao Brasil (35 dias!) ficaram no imaginário de quem, por essa época,  lia a "Flama" ou "O Século Ilustrado". Sinais há, porém, de que, a exemplo da distância criada com Carmona, também Craveiro Lopes, nos últimos anos do seu mandato, pode ter dado a Salazar razões políticas que aconselharam a sua não reeleição. Fala-se, em particular, do progressivo agravamento das relações do presidente com o ministro da Defesa, Santos Costa, com o primeiro a dar crescente expressão política junto de Salazar do desagrado de setores castrenses contra o segundo. Talvez por isso, em 1958, Salazar levou a União Nacional a prescindir de Craveiro Lopes e optou pelo contra-almirante Américo Tomás, que, depois de uma "eleição" contra o general oposicionista Humberto Delgado (ver aqui e aqui), haveria de ficar na chefia formal do Estado até ao 25 de Abril.

Craveiro Lopes terá ficado agastado com o seu afastamento e, após este, viria a tomar duas atitudes públicas com algum significado político. A primeira foi o seu inesperado prefácio ao livro do advogado Manuel José Homem de Melo, "Portugal, o Ultramar e o Futuro", em que subscreveu aquela que foi considerada uma proposta muito heterodoxa de nova política para as possessões africanas. A segunda atitude foi o seu aberto apoio à chamada "abrilada de 1961", a tentativa de golpe de Estado liderada pelo general Botelho Moniz, gorada por ingénuos formalismos dos seus promotores. É histórica, embora de certo modo caricata, a cena de Craveiro Lopes a entrar no Palácio da Cova da Moura, em 13 de Março de 1961, com uma mala na mão, na qual traria a sua farda de Marechal, com que tencionava reassumir as funções de chefe de Estado, após o esperado êxito do "pronunciamento".

Há uns anos, autorizei que fosse filmado no meu antigo gabinete de secretário de Estado - lugar exato onde a reunião final da conspiração de 1961 se realizou - o que julgo ter sido um "remake" desse patético momento. O último em que alguns generais das Forças Armadas portuguesas tiveram oportunidade de dar um novo rumo à política colonial, poupando o país a 13 anos de  tragédia. Não o fizeram e tiveram de ser os capitães a intervir...

quinta-feira, agosto 12, 2010

O comício

Numa conversa recente com Délio Machado, uma figura importante da luta pela democracia durante o "Estado Novo", em Vila Real, lembrámos a campanha eleitoral para a Assembleia Nacional, em 1969. Foi um tempo complexo, o último teste (falhado) da (falsa) abertura política do "caetanismo". Com essa personalidade notável que foi o médico e escritor Otílio de Figueiredo, líder oposicionista local, e com Délio Machado, fiz parte do trio de responsáveis que fez entrega formal ao governador civil, Torquato de Magalhães, da lista de candidatos da Comissão Democrática Eleitoral (CDE). Lembro-me de Otílio de Figueiredo dizer, à saída: "Isto foi o mais fácil. Agora é que 'vão ser elas!'".

E foram. As dificuldades criadas pelo regime à atividade da oposição sucederam-se, ao longo das semanas seguintes, com intimidações e obstáculos, desde pressões sobre as tipografias e proprietários de espaços para potenciais reuniões públicas até à não disponibilização das listas dos eleitores. Tivemos uma elevada despesa para mandar fotografar (é verdade, não havia fotocópias!) esses cadernos eleitorais, porque (para quem não saiba) os boletins de voto eram impressos sob responsabilidade de cada lista e tinham de ser entregues, individualmente, no endereço de cada eleitor. Nada que se parecesse com as "cruzinhas" atuais, no boletim recebido na assembleia de voto.

Verdade seja que não facilitávamos nada. Em plena campanha, fizemos um requerimento em "meia-folha-de-papel-selado", alegando ilegalidades formais na propaganda da União Nacional, o que levou a que o "partido único" tivesse de pagar uma humilhante coima. E ainda me surpreende a coragem que tivemos, dois ou três comparsas, ao sentarmo-nos na terceira fila do comício da União Nacional, ovacionando ruidosamente quando palavras como "liberdade", "democracia" ou "paz" surgiam no meio de um qualquer discurso dos candidatos da "situação", silenciando-nos ostensivamente durante todo o resto das intervenções. Claro, fomos insultados, várias vezes...

Imagine-se agora o que significava organizar um comício da Oposição Democrática, nessas condições. Conseguiu-se alugar o Cine-Teatro Avenida, de Vila Real, para a "sessão de esclarecimento" de encerramento da nossa campanha. Papeladas e mais papeladas, diligências durante as quais éramos tratados com uma sobranceria oficial só atenuada pelo facto de algumas das pessoas nos conhecerem de há muito, bem como às nossas famílias. Isso não evitava provocações, bocas acusatórias ("comunas!", "anarquistas!") e irritantes chamadas à polícia e ao Governo Civil, por tudo e por nada. Mas, se bem me lembro, vivíamos isso como uma bela "festa".

O nosso objetivo era ter a sala cheia e mobilizada, pelo que contávamos com o reforço dos oposicionistas vindos de todo o distrito. A sessão convocara também muitos "bufos", servidores do regime que iam "ver quem estava", para poderem avisar o seu "patronato". Como reforço, umas caras novas andavam pela terra, com ar-de-quem-não-quer-a-coisa, isto é, com ar de pides.

A noite começou com uma imensa "gaffe" política. Alguém tinha instruído o Manuel "Pataquinhas", assalariado para algumas tarefas logísticas, para "pôr discos" com marchas mobilizadoras, do tipo "John Philip Sousa". A certo momento, começou a ouvir-se o "Angola é nossa!", talvez o mais emblemático expoente da propaganda musical do colonialismo. Foi preciso um de nós saltar para o palco, atrás de cuja cortina estava o gira-discos, quase despedaçando o aparelho, com fúria, aos berros ao "Pataquinhas". Lá se compôs tudo, com ordens rigorosas sobre as músicas que poderiam ser tocadas.

E o comício começou, com os nossos candidatos em palco. Depois de tocado o hino, todos sentimos, contudo, que o ambiente não "arrancava". Havia uma nítida falta de entusiasmo, apenas umas escassas palmas a sublinharem as frases mais sonantes dos oradores. Alguma coisa não estava a ir bem. Não percebíamos a razão.

Foi então que, num segundo, se entendeu o que estava a falhar: as luzes da sala, que iluminavam o público, que deviam desaparecer após o hino, permaneciam acesas. Alguém "voou" para os bastidores, a sala enegreceu-se e a "coragem" do auditório explodiu. A partir daí foi um fartote de "Viva a liberdade", "Abaixo o fascismo", "Abaixo o Caetano", "Abaixo a Ditadura" e coisas similares. Até que enfim! E a noite acabou em glória!

Porém, o comício só não havia sido um sucesso completo pelo facto de um dos nossos candidatos, revelando abertamente uma orientação política própria, que já vinha a ser clara há uns tempos, ter afirmado, a certa altura, que o "o ultramar é português" (teria sido ele a encomendar o "Angola é nossa!"? Quatro décadas depois, ele garante-me que não...). Alguns dentre nós ficámos furibundos com essa declaração. Como a oposição, em Vila Real, era de natureza unitária e comportava uma multiplicidade de tendências, havíamos tentado iludir as profundas divergências, que entre nós existiam, face à questão colonial. Mas, neste caso, a procurada ambiguidade fora quebrada. A reunião da direção de campanha, que teve lugar após o comício, não consensualizou uma rejeição formal da tomada de posição do candidato (o que, aliás, teria sido um imenso erro). Num gesto de radicalismo pateta, recusei-me a integrar uma delegação dos oposicionistas vila-realenses que deveriam, no dia seguinte, ir a uma reunião da Oposição Democrática à escala nacional. Coisas de quem tinha então 21 anos!

Agora, neste Agosto quente em Vila Real, deu-me para recordar este episódio.

quarta-feira, agosto 11, 2010

Humberto Delgado (2)

Há dias, falei aqui de Humberto Delgado. Tinha comigo, desde há mais de um ano, o livro "Humberto Delgado - biografia do general sem medo", de Frederico Delgado Rosa. Não o tinha lido, à espera de tempo para um trabalho de mais de 1300 páginas. O autor é neto do general e, por regra, mantenho sempre uma grande desconfiança no rigor deste tipo de obras, quando há relações familiares entre biógrafo e biografado. 

Numa conversa recente, Artur Santos Silva recomendou-me que lesse o livro. Não perdi o meu tempo, mas igualmente confirmei algumas das minhas preocupações.

O livro é, de longe!, a mais bem informada obra existente sobre Humberto Delgado - e julgo ter lido  muito de quanto se escreveu sobre o general. A recolha informativa é excelente, servida, aliás, por uma muito boa escrita. Apesar da sua extensão, o livro lê-se como um romance.

Mas há um "mas": o texto é manifestamente "biased", às vezes a roçar o hagiográfico, tomando sistematicamente por más as posições de todos quantos - no regime ou na oposição - se opuseram frontalmente a Delgado, às suas ideias e às suas propostas, assumido estas como quase indiscutíveis. O modo cruel como são tratadas algumas das personalidades portuguesas da oposição ao salazarismo, no exílio no Brasil ou na Argélia, diabolizando-as e crismando-as de uma forma que se aproxima da abordagem feita em obras desprezáveis, desvalorizam desnecessariamente este trabalho, o qual, nem por isso, deixa de ser de grande mérito e de constituir um apoio historiográfico da maior valia. Cuja leitura, recomendo, claro.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...