Em Portugal, no tempo da ditadura, o 5 de Outubro, dia de implantação da nossa República, era uma data regularmente aproveitada pelos oposicionistas para celebrar a memória da democracia.
O curioso é que, ao tempo, alguém dizer-se "republicano", num regime que não tinha coragem de se afastar terminologicamente do conceito, era quase um ato de coragem, porque afirmava uma explícita rejeição do regime instaurado em 28 de maio de 1926. Ou, muito simplesmente, significava uma implícita colocação no campo da "oposição" ao Estado Novo, cujos defensores eram então designados, até pelos próprios, como a gente da "situação".
Nesses tempos, antes da Revolução de abril, recordo-me de ter participado em algumas iniciativas oposicionistas por ocasião do 5 de outubro. Eram, vulgarmente, romagens a cemitérios lisboetas onde estavam sepultadas figuras republicanas. Um dos momentos altos, nessa data, quase sempre alvo da repressão policial, consistia numa (muitas vezes apenas tentativa de) concentração junto ao monumento a António José de Almeida, ao Arco do Cego. Nunca esquecerei a figura magra, alta e esquálida de um homem que sempre aparecia nessas manifestações em Lisboa, com uma grande bandeira portuguesa, que a polícia, mesmo nos momentos de perseguição aos ajuntamentos, se via obrigada a respeitar. Não sei se a esse homem chegou a ser atribuída a Ordem da Liberdade. Bem a mereceria.
No ano de 1969, passei a data de 5 de outubro em Vila Real. Ao tempo, preparávamos no distrito o movimento da Oposição democrática (a Comissão Democrática Eleitoral, CDE) que haveria de defrontar a lista local da União Nacional. Contrariamente às listas CDE que haviam sido criadas em Lisboa, Porto e Braga, numa base um pouco mais radical, as CDE de província eram movimentos unitários onde se encontrava um pouco de tudo - republicanos "reviralhistas", monárquicos em aberta rutura com o regime, católicos em curso de dissidência com a hierarquia, socialistas de vários matizes, os comunistas "oficiais" do PCP e tantos outros, menos ou mais esquerdistas (como era o meu caso), sem filiação mas com uma imensa vontade de ver o Estado Novo pelas costas.
Organizado por um grupo liderado por essa grande figura de democrata que era o médico Otílio de Figueiredo, teve lugar, na noite de 4 de outubro de 1969, no restaurante Espadeiro, um jantar "oposicionista", que comemorava o "5 de outubro". Nele tomavam parte as figuras mais proeminentes da Oposição do distrito, tendo à frente, além do próprio Otílio de Figueiredo, José Alberto Rodrigues, Júlio Montalvão Machado e Camilo de Sousa Botelho. Eu e um grupo de jovens que fazíamos parte das estruturas organizativas da CDE de Vila Real decidimos dissociar-nos desse ato, por termo-lo considerado uma manifestação "burguesa" e saudosista. Só aparecemos para o café... No meu caso, fui mais longe: publiquei, na véspera, um artigo algo provocatório, no jornal local "A Voz de Trás-os-Montes", onde afirmava (e cito de cor) que "a nós não nos interessa nada o 5 de outubro de 1910, mas apenas o 5 de outubro de 1969". Os respeitáveis democratas vilarealenses devem ter olhado com displicente magnanimidade para essa nossa descabida ousadia. Só assim se compreende que tenham continuado a aceitar a nossa colaboração, nessa bela aventura que foi a campanha para as "eleições" para a Assembleia Nacional de que já falei aqui, aqui e aqui.
14 comentários:
Errata:
Onde está: "porque afirmava uma explícita rejeição do regime derrubado em 28 de maio de 1926"
deveria estar: "porque afirmava um apoio explícito ao regime derrubado em 28 de maio de 1926"
E quando a democracia é feriado, mais interessante se torna a alusão e homenagem a respeito.
Nas «eleições» de Outubro de 1969, estava em Angola e ajudei a constituir uma lista da Oposição que eu próprio integrei. Eram o dentista Zeferino Cruz, ex-deportado, o economista Marques Teixeira, o comerciante João Cachipembe, o arquivista Gomes Sebastião, entre outros, que a tentaram apresentar a sufrágio.
Resultado. rejeitada por falta de documentos obrigatórios e por não integrar os supremos objectivos da Nação. Recorremos; nada. Por isso não participámos no simulacro eleitoral. Iria votar pela primeira vez; guardei-me para o depois do 25 de Abril. Viva a República!
Caríssimo Embaixador Francisco Seixas da Costa,
Na verdade, a Ética Republicana foi uma das fontes de inspiração da cultura oposicionista ao Estado Novo. Também, por essa razão, os primeiros estudos históricos que apareceram sobre a 1ª República devem-se a personalidades ligadas à oposição ao Estado Novo. Estou a lembrar-me, por exemplo, de Raul Rêgo. No entanto, só com a distância dos dias de hoje e as novas gerações de historiadores se começam a desenvolver em maior número, estimulados pelo Centenário da República, as investigações e as publicações nesta área como referiu o Professor Fernando Rosas na sessão de encerramento do Ciclo de Conferências sobre a República Portuguesa a 14 de Julho deste ano no salão nobre da Câmara Municipal de Lisboa.
A fotografia deste "post" foi simbolicamente bem escolhida, porque representa uma "tabuleta" de uma rua da Ericeira, o último sítio onde o rei D. Manuel II teve os pés antes de sair de Portugal a 5 de Outubro de 1910.
Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão
www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt
Caro Professor Nuno Sotto Mayor Ferrão: há um ano, saudei já aqui a Ericeira: http://duas-ou-tres.blogspot.com/2010/10/ericeira.html
5 de outubro é sem duvida uma data importante na história politica e constitucional de portugal. Mas a 1a republica, apesar das boas intenções e seus principios, foi uma sucessão de infelizes e pouco competentes governos que provocaram, com os seus erros,a chegada dum estado novo, encarnado numa figura salvadora, messianica, o salazar.Este tipo de situações aconteceu noutros paises onde a situação foi derrubada e substituida pela reacção. Claro, ao estado novo aconteceu o mesmo, foi derrubado.
Depois das eleições de 69, as mais mobilizadoras depois das de humberto delgado, a ditadura assustou-se e modificou o regime eleitoral. O novo regime eleitoral já não chegou a ser aplicado, creio.
Ser republicano ou celebrar o 5 de outubro durante a ditadura de salazar era de facto uma forma de celebrar a democracia.
A nossa historia, dos que vivemos esses tempos e acontecimentos (1969) acaba por se confundir com a história do país.
É curioso que se refira à CDE, fora dos grandes centros, como movimento unitário.
Ainda jovem, e cheio de ilusões, fiz parte de um grupo activista da CDE numa freguesia do concelho de Sintra. Sucede que a CEUD do dr. Mário Soares também lá tinha uma "estrutura" activista, com um único militante: o nosso amigo "Zé do carro".
"Zé do carro", porque do grupo de amigos, na circunstância, de militância dissidente, só havia o carro dele e o do Esteves, que colaborava com a CDE, quando necessário.
Acontece que nós tínhamos máquina de escrever, mas o Zé não a tinha, pelo acabávamos por colaborar: o Zé ficava à espera que acabássemos de dactilografar os nossos comunicados, para fazer os dele, às vezes pela madrugada dentro.
Por outro lado, se precisávamos de dois carros, avançava com o dele.
Numa das reuniões da estrutura concelhia, fomos seriamente censurados pela cooperação, que a força dominante do movimento não aprovava.
Tempos interessantes, aqueles.
Carlos Fonseca
ERA UMA VEZ
Também este dia me lembra um conhecido e reconhecido médico pediatra de Lisboa, Dr Abílio Mendes.
Contava-me com muita graça o seu filho Carlos Mendes(talentoso cantor e compositor) que era certo e sabido que o saudoso médico nesta data convocava os três filhos, Abilio, Jaime e Carlos (não havia cá desculpas) e lá iam desde crianças, solenemente, os quatro fazer as respectivas homenagens.
Ajudou-me a curar as maleitas dos meus filhos mas para além disso, era uma figura imponente, simpatiquíssimo e (já se percebia) muito consciente do País em que vivia.
Ensinou-me tanto...
Quanto ao "5 de outubro" se o Sr. Embaixador me permite, digo:
- Presto homenagem a todos aqueles que me deram a possibilidade de hoje festejar o 101º aniversário da REPÚBLICA PORTUGUESA. Bem hajam.
Francisco F. Teixeira
Hoje o país "celebra" a República. Uma chuva de BMWs, Mercedes, Audis, invadem a Praça do Município, contrastando com discursos do "temos de poupar mais". Parece irónico que o regime que levou o país à bancarrota seja celebrado dentro do luxo mas com o discurso do coitadinho.
Hoje fala-se do que se tem passado há 101 anos. Floreia-se, "emboneca-se", porque se falarmos verdade temos de sentir vergonha. Se reflectirmos um pouco percebemos que nada há a celebrar. Celebramos um regicídio? Celebramos a expulsão de uma família que nos servia e representava? Celebramos a perseguição aos opositores do regime da primeira república? Celebramos a noite sangrenta de 1921? Celebramos a imposição de uma ditadura por 48 anos? Celebramos a 3ª república falida? O que é tão digno de gastarmos o que gastamos a celebrar numa altura em que não temos o que gastar?
As celebrações da república, com direito a Audis, BMWs, Mercedes, segurança privada, discursos, palácios são, na verdade, uma ofensa a um povo que está a ser perseguido pelos impostos, que não tem emprego, que passa fome.
Celebramos para recordar algo que tentamos mostrar como algo positivo. Tentamos, há 101 anos colocar na memória colectiva uma recordação positiva de um acontecimento que, se reflectirmos bem, verificamos ser negativo. E no entanto esquecemos... Não só esquecemos que não temos nada para celebrar com o nome da data assinalada, como esquecemos aquilo que, de facto, merecia ser celebrado que é a Fundação do nosso país.
Portugal foi fundado a 5 de Outubro de 1143. A partir dessa data crescemos. Com orgulho nos tornámos portugueses e alargámos as nossas fronteiras. Somos o país europeu que mais cedo ficou com as fronteiras definidas. Somos um país ancião, com uma bela história que começou a 5 de Outubro de 1143. Que cresceu e se expandiu pela mão dos reis. Que foi diplomata, que fez cedências e tentou manter-se orgulhoso. Tornámo-nos um império, dentro da monarquia, aquela que hoje esquecemos para celebrar a república que acabou com o império e arrisca a acabar com Portugal. O que temos, de facto, para celebrar?
Eu por mim celebro sempre o 5 de Outubro, mas o de 1143
http://www.tvi24.iol.pt/videos/video/13495913/1
E foi 1143 que celebrei ontem em Coimbra, ao lado daquele que um dia espero venha a ser o nosso Rei.
Era Uma Vez, o cantor Carlos Mendes é irmão, e não filho, do Abílio Mendes.
Não comemoro o 5 de Outubro de 1910, porque não sou republicano, mas somente o de 1143, que devia ser festejado como o dia do nascimento de Portugal (outros consideram que é o 24 de Junho, dia da batalha de S. Mamede), e é somente feriado por causa de uma controversa alteração de regime.
Mas a propósito das listas da CED, lembrei-me do meu avô, vilarealense monárquico (contemporâneo do Pai do Senhor Embaixador, que ainda tive o prazer de conhecer), que chegou a ser eleito pelas listas da União Nacional, mas que em 1969 já estava afastado da política activa, desiludido com o rumo do regime e prevendo que não duraria muito mais tempo. Morreu 3 semanas antes do 25 de Abril, que não o teria apanhado de surpresa. Uma das razões que o tinham afastado era precisamente o facto de ser um monárquico convicto, coisa que o levou, a ele e a mais uns quantos que partilhavam as mesmas ideias, a serem olhados com desconfiança e afastados pelos círculos mais próximos do poder.
Não comemoro o 5 de Outubro de 1910, porque não sou republicano, mas somente o de 1143, que devia ser festejado como o dia do nascimento de Portugal (outros consideram que é o 24 de Junho, dia da batalha de S. Mamede), e é somente feriado por causa de uma controversa alteração de regime.
Mas a propósito das listas da CED, lembrei-me do meu avô, vilarealense monárquico (contemporâneo do Pai do Senhor Embaixador, que ainda tive o prazer de conhecer), que chegou a ser eleito pelas listas da União Nacional, mas que em 1969 já estava afastado da política activa, desiludido com o rumo do regime e prevendo que não duraria muito mais tempo. Morreu 3 semanas antes do 25 de Abril, que não o teria apanhado de surpresa. Uma das razões que o tinham afastado era precisamente o facto de ser um monárquico convicto, coisa que o levou, a ele e a mais uns quantos que partilhavam as mesmas ideias, a serem olhados com desconfiança e afastados pelos círculos mais próximos do poder.
ERA UMA VEZ
Caro anónimo
A proximidade que tenho dos "MENDES"
permite-me garantir-lhe que estou certa
O Dr. Abílio Mendes pai faleceu há uns anos.Foi pediatra dos meus filhos.Era a ele que me referia como um grande republicano.
Era pai de outro pediatra com o mesmo nome de Abílio que também já faleceu.
Jaime Mendes é outro filho e também pediatra e o mais novo o nosso cantor Carlos Mendes.
Espero que o tenha esclarecido.
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