Há uns anos, numa conversa de família, alguém me perguntou um dado qualquer sobre um nosso antepassado. Disse que não sabia. A pessoa em causa reagiu assim: "Se tu, que és o mais velho, não sabes, então ninguém sabe".
Nesse instante, interiorizei algo que era muito óbvio, uma evidência, mas que ainda não tinha explicitado perante mim mesmo: era, por ali, na minha família materna, "o mais velho", conceito que não tendo, entre nós, a simbologia social prestigiante que tem nas sociedades africanas, era uma realidade que, desde há uns anos, se me impunha, por muito que eu evitasse encará-la. Tinham partido os avós, tinham-se ido os pais e os tios, ficaram apenas os primos. E, de entre eles, eu era, definitivamente, o mais velho.
É um estatuto estranho. Não nos traz a menor autoridade, salvo, às vezes, uma cadeira mais simpática em alguns jantares ou um lugar cómodo num sofá, em reuniões de família. Ou ser dos primeiros a ser servido de café e de whisky. Pouco mais.
Ser velho, por muito que assobiemos para o ar, não é coisa agradável, ainda que persista uma narrativa social, artificialmente animada, que pretende edulcorar a coisa. Ser velho - deixemo-nos de tretas! - é uma chatice, é ter à nossa frente, essencialmente, um crescente passado. Ser "o mais velho" é tudo isso ao cubo.
Por que razão me lembrei disto hoje? Porque acabo de saber do falecimento de uma senhora que, por muitos e bons anos, foi uma grande amiga de toda a nossa família - dos meus avós, do meus pais, dos meus tios, dos meus primos -, pessoa que, não tendo connosco um parentesco formal, sempre vimos como muito próxima, "one of us", como dizem os anglo-saxónicos. Vê-la desaparecer é como assistir ao fechar, agora de forma definitiva, de uma porta geracional que, através dela, ainda se mantinha entreaberta, pela memória, para quem nos antecedeu. A sua existência atenuava a minha condição de "mais velho". A sua saída de cena consagra isso, em definitivo.
16 comentários:
Ser o mais velho significa que já não há quem fale da nossa infância e só ele pode ainda falar da infância dos outros.
O mais velho é o estado de já estar só.
jose neves
Isto das idades de cada um não tem muito que se lhe diga (escrevi “não” de propósito).
Quanto muito há que fazer as asneiras quando se é novo e deixar de as fazer quando se deixa de o ser, viver a vida na hora certa, não se andar armado em teenager aos 60 ou 70 anos (conheço vários), só se é ridículo.
Aprendi muito com uma pequena historieta familiar de há 36 anos, dirão que é óbvio mas tudo é óbvio quando caímos na real, assim é fácil.
Tinha o meu filho mais novo 14 anos e portanto eu 42 anos, chegou ele a casa muito indignado com um professor lá do liceu, lembro-me lá porquê (nem ele), nem nos lembramos se o problema era com ele ou com algum colega.
Só sei que o comecei a ouvir com muita atenção, a experiência com os irmãos mais velhos já me tinha ensinado que naquelas idades se tem, pelo menos, que ter uma posição cuidadosa sob pena de ouvirmos “já sei, os meus problemas nunca interessam” e estragar tudo.
À medida que o fim da história e da indignação ia chegando eu cada vez estava mais à rasquinha, pois aquilo era muito importante para ele mas para mim nem por isso, não podia deixar de lhe dar toda a minha compreensão como pai, mas sem deixar que ele se convencesse que tinha o meu apoio para aquele espírito “coitadinho”, que como educador eu não podia aceitar transmitir.
Veio-me então uma primeira ideia: se o professor já tivesse alguma idade podia sempre explicar que com a idade umas pessoas ficam menos pacientes, outras mais exigentes e outras patetices que me surgissem na altura (hoje já não pegava mas hoje já não tenho filhos – nem netos – adolescentes).
Portanto deixei-o acabar e encetamos o seguinte diálogo:
- Que idade tem esse senhor?
- Não sei mas já é velho.
- Mas velho de que idade?
- Não faço ideia.
- Mas é muito mais velho que eu?
- Não! É muito mais novo!
Grande lição, nunca mais fui o mesmo.
Ainda hoje e nas relações pessoais do dia-a-dia entro sempre em consideração com isto, de “como é que a outra pessoa me está a ver”, sem isso o diálogo pode não ser o que se queria e quanto mais “intergeracional” mais depressa se pode estragar.
Claro que o meu filho chegou aos 42 anos e por acaso nesse ano a filha dele fez 14 anos, a história repetiu-se com alguma precisão.
E quando lhe perguntava pelos estudos dela, uma vez por outra lá vinha o caso de algum professor com quem a rapariga não se entendia ao que eu retorquia de imediato “E esse professor é muito mais velho que tu?”.
Este tema acabou sempre numa boa galhofa.
Compreendo essas angústias, a ideia de que já se viveu mais tempo do que se viverá e algumas maleitas de vez em quando impõem-se, mas alguém com o nível de atividade, a argúcia intelectual e a aparência física do Senhor Embaixador não entra definitivamente no meu conceito de "velho".
Chegar a "velho" é sinal de que não se ficou pelo caminho e isso é muito bom, especialmente quando a vida é frutuosa em boas relações, ideias e experiências.
Manuel Campos,
Os adolescentes de vez em quando vêm com essas saídas, tudo o que tenha mais de 20 e picos é "bué da velho", ups, "bué velho", o "bué da" já é coisa de "cota" dos 30s aos 50s.
Francisco de Sousa Rodrigues
É isso mesmo.
O que também teve a sua graça foi que o meu filho, chegada a vez dele, só dizia "Não me digam nada, naquelas idades somos mesmo parvinhos".
Bem observado o "bué da" ser um nível acima do "bué" e destinado a indiscutíveis cotas.
Vá que os meus netos, todos agora acima dos 20 anos, nunca foram dessas terminologias (excepto num caso que não sei se está melhor, pelo menos ao pé de mim "trava").
Abraço para si
Belíssimo texto Sr. Embaixador.
Muita sabedoria, na história de Manuel Campos.
Sei por vivência própria, dos muitos longos anos passados em África, o significado do “mais velho” na cultura africana, e já agora naquela que conheço melhor, a moçambicana.
~
Como afirmou o poeta maliniano Amadou Hampaté-Bâ “Quando em África morre um velho tradicionalista é uma biblioteca inexplorada que arde”, querendo com isso significar o valor atribuído ao “mais velho” na sociedade tradicional africana, cuja principal função é transmitir, oralmente, às demais gerações, a cultura e a sabedoria popular vividas no seio de cada comunidade.
Ao contrário das sociedades europeias/ocidentais – mas também diga-se de passagem das actuais sociedades africanas urbanas, cada vez mais regidas e orientadas pelos modelos individualistas ocidentais – que se regem pelas marcas de exclusão dos mais velhos, como no nosso país o então governo do PSD de Passos Coelho (e do seu líder parlamentar e hoje primeiro-ministro Luís Montenegro) que atacou os mais velhos, chamando-lhes "peste grisalha" e defendendo a chamada "justiça geracional", que era tirar aos mais velhos com a “ofensiva sobre os direitos dos pensionistas e reformados”, para salvaguardar o futuro dos jovens.
Porque estou sempre a pensar no passado?
Não sei, se calhar e plagiando Heródoto para “pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro” (sendo que no meu caso particular e atendendo à provecta idade o futuro não augura nada de bom!)
Manuel Campos,
Por acaso por essa parvoíce das idades e afins não passei por ela, sempre tive muita afinidade com pessoas de bastante idade, adorava estar com o meu avô materno que quando eu nasci tinha 76 anos, nós os dois era uma paródia.
Um abraço também para si.
Caro Francisco de Sousa Rodrigues
Ao fim de uns tempos por aqui já começamos a conhecer-nos todos um pouco.
No seu caso sempre considerei que a maturidade das suas observações não vinha só dos conhecimentos que a sua actividade lhe proporciona mas também de vivências muito diferentes das habituais em pessoas mais novas.
Por aqui há um neto que foi em grande parte criado por nós, nasceu tinha a Avó uns 50 anos e eu uns 55 anos, foi um privilégio raro porque éramos os dois razoavelmente jovens, a ligação continua fortíssima, como imagina, apesar de ele ter uma profissão digamos que “menos vulgar e calma”, sempre que pára por aí vem direito cá a casa, falamos de carros clásicos e jazz dos anos 50 e 60 e eu, que até “sei umas coisas”, fico babado de aprender com ele.
AV
Obrigado pelas suas palavras.
Ser velho é uma porra!
Mas lá não chegar é uma porra bem maior!
Manuel Campos,
Obrigado pelas suas sempre muito simpáticas palavras. É recíproca a grande simpatia que tenho por si.
Tem razão quanto às vivências, até à discoteca fui pela primeira vez mais cedo que os meus amigos (não sou de saudosismos, mas o verão de 1999 foi memorável).
Com avós da vossa categoria só poderia ser assim.
Falando em música, o estilo musical em que sou um inculto-especialista é o Trance, que tem diversos subgéneros e até diferentes tradições "genéticas", de resto arranho diversas coisas, agora Jazz dos anos 50-60 teriam de me dar umas "aulas". Aqui há uns tempos falou no DISCOGS, ainda sou do tempo em que era só uma base de dados de música eletrónica, já sou usuário há mais de 20 anos e vou dando os meus contributos modestos.
Francisco de Sousa Rodrigues
Muito obrigado, dessa mútua simpatia e respeito nunca houve lugar para qualquer dúvida.
Como disse atrás os netos nasceram ali seguidos durante 3 ou 4 anos algures nos nossos “fifties” e isso foi um privilégio para nós, ainda relativamente “novos”, sem mazelas e com alguma pedalada, pudemos ainda dar-lhes um acompanhamento que poucos avós dão, passámos ainda algumas vezes por pais “tardios” (ainda hoje nenhum de nós tem rugas), era muito engraçado quando as pessoas descobriam que afinal éramos avós, cheguei a puxar do BI e mostrá-lo por brincadeira.
Do Trance confesso que fiquei nos Kraftwerk e no Moroder, suponho que seja a “pré-história”, sei que passou por muitas fases e vem evoluindo para alguma “acalmia sonora” mas não mais que isso (tinha aí o álbum “The man machine”, portanto ainda o devo ter).
Os nossos contributos nunca são modestos porque os damos.
Só não sei como posso chegar ao conhecimento dos seus na Discogs, se achar por conveniente dar-me umas dicas para o ler seria bom, gosto sempre de saber mais de música.
PS- O seu verão de 1999 em discotecas foi memorável mas admito que não seja este o local ideal para o rememorar…
Manuel Campos,
Os contributos são mais na submissão ou edição de dados dos discos. Tenho lá duas ou três reviews nada mais (o meu user é F.Rod).
Francisco Sousa Rodrigues
Agradeço o seu cuidado, irei espreitar.
A submissão ou edição de dados dos discos são importantes porque muitas vezes menosprezadas, as próprias editoras nem sempre são cuidadosas.
PS- Uma das coisas mais parvas a nível das editoras são os tempos totais indicados no CD, tenho por aí alguns com a indicação de 61'76'' ou 44'68'', por exemplo.
Manuel Campos,
Imensas falhas, por exemplo no campo onde me movo mais, da Música Eletrónica, muitos discos com as listas de faixas sem créditos de remisturas ou com erros nas versões. E depois as gralhas nos nomes dos autores, produtores, etc., por isso é que Discogs tem aquela coisa do ANV - Artist Name Variations.
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