terça-feira, julho 02, 2024

Franvo Charais, o MFA e o CDS


Morreu Franco Charais. Para as novas gerações, o nome dirá pouco. 

Franco Charais foi um oficial de Artilharia que esteve fortemente envolvido no 25 de Abril. Integrou o Conselho de Estado, fez parte do Conselho da Revolução, foi comandante da Região Militar Centro e foi um dos subscritores do chamado “documento dos nove” - um manifesto de nove figuras moderadas do MFA, publicado no auge do “Verão quente” de 1975, de “resistência” ao “gonçalvismo”. Foi uma figura de grande equilíbrio no período revolucionário, com um perfil sóbrio de militar e genericamente apreciado pela sua seriedade.

Cruzei-me com Franco Charais no palácio da Cova da Moura, em maio de 1974. Ele era tenente-coronel. Eu era então aspirante a oficial miliciano e adjunto da Junta de Salvação Nacional, ligado às questões da extinção da PIDE/DGS, colocado no gabinete do general Galvão de Melo. 

Recordo-me que Charais ocupava por ali um belo gabinete com azulejos, que toda a gente invejava, num dos extremos do primeiro andar do palácio. Dizia-se então: "Aqui no palácio, mais bonito só o do Spínola, no andar de baixo". Sou um sortudo. Duas décadas depois, em 1994, eu viria a ocupar, por uns meses, como subdiretor-geral dos Assuntos Europeus, o então gabinete de Charais e, de 1995 até 2001, "mudei-me" para o antigo gabinete de Spínola. 

Voltemos a 1974. Por essa época, o CDS estava a ser alvo de uma forte campanha política adversa, com atos de violência que, nomeadamente, levaram ao saque da sua sede nacional em Lisboa e ao boicote sistemático de muitos dos seus comícios, um pouco por todo o país. Casos houve em que os seus dirigentes tiveram de abandonar os locais pelos telhados das casas e correram riscos de integridade pessoal.

A acusação mais vulgar, feita pelas forças de esquerda, era a de que o CDS era uma formação política onde se refugiara muita da direita saída diretamente do salazarismo e do marcelismo. Ora isto, não sendo necessariamente mentira, estava longe de esgotar a verdade. Muita gente conservadora, sem atividade política no Estado Novo, a quem o 25 de Abril abrira a possibilidade de intervenção e defesa democráticas das suas ideias, não se revia no socialismo e nos partidos da esquerda dominante, optando igualmente por não seguir as ideias em torno das quais Sá Carneiro instituíra o PPD. E havia decidido apoiar o partido que Freitas do Amaral criara logo após a Revolução e que apelidou de "centrista", pretendendo identificá-lo com uma matriz democrata-cristã. 

Um dia, um grupo de responsáveis do CDS, chefiado por Victor Sá Machado e integrado por Emídio Pinheiro e uma outra personalidade que até hoje não recordo quem era, foi recebido, a seu pedido, pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), numa reunião que teve lugar naquele que é hoje o Instituto de Defesa Nacional, na calçada das Necessidades. 

Não consigo precisar a data, mas tenho a ideia de que deverá ter sido em fins de outubro ou novembro de 1974, isto é, depois do 28 de Setembro, que forçou o afastamento de Spínola e levou ao isolamento temporário de um importante setor da ala direita militar. 

A delegação do MFA era dirigida pelo então tenente-coronel Franco Charais, meses mais tarde graduado em general e que viria a chefiar a Região militar do centro. Com ele, em nome do MFA, estavam três pessoas.

Nessa reunião, Sá Machado expôs, com elegância e sem dramatismos, a penosa existência do novo partido, praticamente desde a sua criação. Ele sabia, de certeza segura, que o CDS estava longe de ser visto com bons olhos no seio da maioria dos setores que haviam feito a Revolução, mas também não desconhecia que as Forças Armadas, que conviviam com Diogo Freitas do Amaral no Conselho de Estado, não se podiam dar ao luxo de aceitar a exclusão da vida política, por via da força, de um partido que afirmara cumprir os princípios básicos que orientavam a Revolução e cuja ação não suscitava objeções importantes. 

A certo passo da sua intervenção, feita no tom calmo embora um tanto pomposo que era o seu, Sá Machado inquiriu se as Forças Armadas estavam ou não disponíveis para garantir condições básicas de segurança para as sedes e as reuniões de propaganda que o CDS procurava organizar pelo país. Recordo ele ter dito mais ou menos o seguinte: "São os senhores que têm de decidir se querem ou não que continuemos a existir. Se o direito de reunião e organização política nos continuar a ser negado, talvez tenhamos de vir constatar que deixa de haver condições para o exercício da nossa atividade enquanto partido. Nesse caso, o MFA deve ter consciência de que um setor da opinião pública portuguesa se sentirá alienado do sistema político instituído pelo 25 de Abril. E isso terá naturalmente as suas consequências na própria legitimidade futura do regime". 

Foi uma declaração frontal, corajosa para os padrões da época. Vários partidos considerados extremistas de direita e saudosistas haviam já desaparecido (Partido do Progresso, Movimento Federalista Português, Partido Liberal) e, com isso, o CDS ficara "colado" ao limite direito do espetro político.

Charais reagiu, dizendo que "outros partidos de direita, como o PPD" (nem o CDS se assumia como de direita, quanto mais o então PPD, mas a linguagem dos tempos era essa...), também sentiam dificuldades em organizar-se em certas regiões, mas que isso era devido ao facto de, nesses locais, CDS e PPD serem "o refúgio dos fascistas", pelo que a aceitação "popular" da sua legitimidade de afirmação política passava muito por uma escolha mais criteriosa dos seus quadros, que deviam ter "sólidas credenciais democráticas". Sá Machado retorquiu que o CDS não permitia a adesão de pessoas ligadas ao anterior regime e que, por isso, eram infundadas as acusações feitas ao seu partido. 

A discussão prolongou-se por bem mais de meia hora. Já não me lembro se houve algum "follow-up" no âmbito militar. Mas a mensagem passou. À distância dos anos, há que reconhecer que a criação do CDS acabou por permitir a organização de um espaço político para enquadramento democrático de uma certa direita. E isso não foi um serviço menos relevante que o CDS prestou à vida política portuguesa. O facto do partido, um ano depois, não ter votado a Constituição emanada da Assembleia Constituinte, viria a fixar claramente a sua identidade no contexto político-partidário futuro. Mas, nesse futuro, o CDS não deixou de evoluir muito, de uma forma que se pode mesmo considerar singular. Até ser o que hoje é.

Lembro este episódio no dia da morte, com 93 anos, desse democrata e homem de bem que foi Manuel Franco Charais, que, nos últimos anos, viveu no Algarve, onde se dedicava à pintura.

segunda-feira, julho 01, 2024

Costas quentes

É Diogo Costa! Foi António Costa! Eu nem quero dizer nada... a) Seixas da Costa

Ni-Ni

O vergonhoso "Ni-Ni" ("ni Rassemblement National, ni Nouveau Front Populaire") de Édouard Philippe e François Bayrou, que pode entregar o poder à extrema-direita, dá, uma vez mais, razão póstuma a Mitterrand: em França, "le centre n'est ni de gauche, ni de gauche"... 

Pode?

O prémio da cretinice do dia vai para uns energúmenos, escondidos atrás da sua incultura, que andam hoje aí a insinuar que o Fausto, nas suas canções, fazia a apologia do colonialismo. É nestes dias que me surge a tentação da peça de Kark Valentin, "E não se pode exterminá-los?"

Refletir sobre a França


Ver aqui.

Simples

Para alguém da esquerda moderada, a chamada extrema-esquerda, tal como a direita democrática, são adversários políticos. A extrema-direita, pelo contrário, é, sempre, um inimigo. A diferença é abissal. As coisas são mais simples do que parecem.

Na morte do Fausto


Tinha então o ar típico de um menino "certinho", acabado de aterrar em Lisboa, vindo da Angola onde nascera para a música e concluíra o liceu. Projetava uma imensa simpatia, um sorriso sereno que, com naturalidade, construia amizades. Tínhamos exatamente a mesma idade (nós, a malta de 48, não é, Zé Ferreira Fernandes?), os mesmos 20 anos que Paul Nizan achava que não eram "a idade mais bela da vida", mas estava errado.

Naquele ambiente universitário atípico, há 56 anos, naquele que era o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina - leram bem, "ultramarina" -, uma escola de formação de quadros para a administração colonial, que Adriano Moreira esforçadamente procurava transformar numa incipiente escola de ciências sociais, recordo-me dele se ter integrado muito bem, fazendo mesmo a "ponte" entre os filhos, mais ou menos rebeldes, de uma Lisboa "social" que por ali andavam a queimar os dias nas mesas de "king" e a turbamulta associativa que então se divertia a subverter a ordem salazarenta que se respirava na maioria dos setores da casa. 

Pelos muitos poisos de conversas no Palácio Burnay, à Junqueira, tal como em noitadas da Rua da Paz, essa nova e improvável versão meio anarca da "Casa dos Estudantes do Império", onde imperavam a política, os copos e grandes tainas, construí com ele uma amizade para a vida.

Não nos víamos muito. Antes da pandemia, com o João Paulo Guerra, calhou irmos almoçar na sua "Tertúla do Silêncio", no Paço do Lumiar, e também jantar, com famílias, no "Miudinho", em Carnide. Há uns anos, consegui juntá-lo com alguns outros amigos do tempo da Junqueira num animado almoço em minha casa. Um dia, telefonou-me a desculpar-se por ter utilizado o meu nome, sem antes me consultar, num programa da Fátima Campos Ferreira. (Ora eu tinha ficado "flattered" pela lembrança dele). Mais recentemente, liguei-lhe a saber da saúde, que sabia debilitada. 

A pessoa que motiva este texto chama-se Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias. Todos o conhecem: é o Fausto, do "Por este rio acima". Morreu hoje, ao que me diz agora Viriato Teles, que sobre ele está a fazer um livro e com quem falara há semanas sobre o Fausto.

Nesse mesmo e inesquecível ano de1968, ambos fizemos parte da mais radical lista associativa que aquele venerando ISCSPU vira nascer. E ganhámos, numas eleições divertidas, bem coloridas, com gente muito diversa, mulheres lindas, sob uma bandeira programática que fora beber o essencial ao maio parisiense, escassos meses antes. Quem, por esse tempo, leu o (proibidíssimo!) n° 1 da revista "Ibis" sabe do que estou a falar.

A nossa vitória, contudo, viria a ser algo pírrica: semanas depois, o Ministério da Educação Nacional informou que toda a lista eleita fora "não homologada", porque, como era a regra da época, a democracia parava à porta da vontade arbitrária da ditadura. E o ditador de turno, precisamente por esses dias, até mudara: chamava-se Marcelo Caetano. A Associação viria mesmo a ser saqueada, à nossa frente, pelos esbirros do capitão Maltez e o sonho lindo foi adiado, com a raiva a subir.

O Fausto, já por essa altura, compunha coisas musicais bem interessantes, embora ele talvez se reconheça menos numa canção em que se falava de "meninos com olhos de cratera", com letra do João Bettencourt da Câmara, que então gravou num (hoje raríssimo!) 45 rotações. O mesmo Fausto que cantava nos "convívios" da Junqueira, em tardes em que o Tossán e o José Carlos de Vasconcelos declamavam o neo-realismo empolgado das poesias das "notícias do bloqueio". O Fausto que então namorou a Rita Vinhas, a mais bonita colega das nossas tardes do magnífico jardim e da "sala verde". (Um beijo para ti, Rita, que ainda há pouco tempo me perguntavas pelo Fausto).

Dois anos mais tarde, o Fausto e eu voltámos a ganhar as eleições para a Associação. E, dessa vez, para alguma surpresa nossa, o ministério não ofereceu quaisquer objeções à lista. Eu era presidente da Assembleia Geral e o Fausto era membro da direção. O ano académico foi muito turbulento. No meu caso, tinha mesmo sido objeto de um processo disciplinar.

No ano seguinte, apresentámos uma nova candidatura. E voltámos a ganhar. Só que, dessa vez, o presidente da Assembleia Geral cessante (isto é, eu) recebeu uma carta do Secretário-Geral do ministério, num tom muito formal, informando "V. Exa. de que a lista vencedora nas eleições para os corpos gerentes da Associação Académica do ISCSPU foi homologada por despacho de S. Exa. o Ministro da Educação Nacional". Tudo igual ao ano anterior? Não. O texto não acabava aí e acrescentava "... , com exceção dos senhores Francisco Manuel Seixas da Costa e Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias, que estão superiormente impedidos de tomar posse".

A "medalha" de termos sido "não homologados" pelos dois ministros da Educação da ditadura já na sua versão marcelista, Hermano Saraiva e Veiga Simão (este último que o destino me levaria a cruzar à mesa do mesmo governo, um quarto de século mais tarde), ninguém nos tira, ao Fausto e a mim.

O Fausto, além de se dedicar ao ensino, teve a carreira musical brilhante que o país conhece. Construíu alguns dos álbuns mais notáveis da música portuguesa contemporânea e, amizades à parte, faz hoje parte desse (julgo) indiscutível "top five" que integra com Sérgio Godinho, José Afonso, José Mário Branco e Jorge Palma.

Lembro-o com muita saudade, na hora da sua morte. 

Iliteracia eleitoral

Nas eleições francesas, como é de regra nos sistemas eleitorais em que há circunscrições uninominais, é eleito à primeira volta o candidato que tenha mais de 50% dos votos expressos.

No caso de nenhum candidato obter esse resultado, haverá obrigatoriamente uma segunda volta, que terá lugar no dia 7 de julho. Quem passa a essa segunda volta? Passam sempre os dois candidatos mais votados nessa circunscrição na primeira volta, independentemente do nível dos seus resultados. Mas pode passar também à segunda volta um terceiro (e, teoricamente, mesmo um quarto) nome. Em que condições?

É sobre isto que anda aí uma grande confusão. Desde há dias que, na imprensa, em rádios e canais televisivos, se repete a afirmação de que podem passar à segunda volta os candidatos que, na primeira volta, tenham obtido um mínimo de 12,5%. de votos.

É falso! 

Para passar à segunda volta, um candidato tem de obter o voto de 12,5% DOS ELEITORES INSCRITOS nessa circunscrição eleitoral, NÃO 12,5 % DOS VOTOS EXPRESSOS. Ora isto faz uma imensa diferença, tendo em conta as abstenções. Por exemplo: se a abstenção, nessa circunscrição tiver sido de 50%, um candidato só passa à segunda volta se tiver obtido 25% dos votos expressos.

Como fazer passar esta mensagem?

Fausto


O fato claro era de quem tinha acabado de chegar de África, nesse final de 1968. O cabelo era standard para a época, com umas patilhas à maneira. Morreu agora. Morreu-nos a todos, à nossa geração. Lá se foi o Fausto, por esse rio acima. 

A questão

Não me parece justo criticar os outros por não votarem como nós. Temos de ser modestos. Partindo da óbvia evidência de que nós é que estamos certos - um princípio básico, na política como na vida - há que tentar perceber por que estranhas razões os outros não nos seguem...

Simples

Os números são claros. No termo da primeira volta das eleições legislativas, a esquerda francesa tem menos de 6% de votos do que a extrema-direita. Há cerca de 30% de votos nas mãos do centro e da direita democrática. Estes não conseguirão governar, mas estará nas suas mãos o futuro imediato da França. Respeitarão eles o princípio republicano (a expressão, em França, tem pouco a ver com o seu significado em Portugal) de barrar o caminho à extrema-direita ou serão tentados pelo abismo, pelo repúdio primário da esquerda?

Aviso à navegação

Dei comigo, pela primeira vez, a planear serenamente os meus dias. Para já, até dezembro. Não aceitarei escrever rigorosamente nada, pago ou de borla, salvo estes textos ligeiros para as redes sociais. Pelo menos até ao final do ano, não me peçam artigos, prefácios, posfácios ou depoimentos escritos de nenhuma natureza. E também não vou escrever nenhum livro, claro. Ah! E não vou estar disponível para dar aulas e fazer palestras, salvo nos escassíssimos casos em que já me tinha comprometido (não têm nada que agradecer). No resto, continuarei focado no trabalho nas empresas com as quais regularmente colaboro - e sinto-me muito bem e útil ao fazê-lo. Mas, além disso, o que vou fazer? Viagens? Nem por isso. Vou ler, muito. O meu programa de leitura até dezembro é ambicioso. E ouvir bastante música. E procurar estar mais com os amigos, sempre sem a menor agenda. Não me invejem: isto é apenas um sintoma de serena velhice. Embora alegre.

A rua

Imagino que para um eleitor francês conservador, que desteste a extrema-direita e não confie em Le Pen e suas descendências, o surgimento de manifestações violentas de rua, ontem organizadas em protesto contra o bom resultado dessa mesma extrema-direita, não deve ser um fator estimulante para o levar a um voto na esquerda mais-ou-menos-unida. A abstenção na segunda volta pode assim ser o destino da sua vontade política.

Não esquecer isto

Nestas horas de debate, a propósito das eleições francesas, sobre quem vai desistir a favor de quem parece esquecido o pequeno pormenor de que ninguém é proprietário do voto do eleitor. Os líderes podem aconselhar um sentido de voto, mas, à boca da urna, o cidadão votará sempre e só em que lhe der na real gana.

Franvo Charais, o MFA e o CDS

Morreu Franco Charais. Para as novas gerações, o nome dirá pouco.  Franco Charais foi um oficial de Artilharia que esteve fortemente envolvi...