sábado, setembro 16, 2023

Cuba e o G77


Nos últimos dois dias, falou-se bastante do G77, que teve uma reunião em Cuba, onde estiveram presentes António Guterres e Lula da Silva. Muitos se interrogaram sobre que diabo era isso do G77.
Vou contar uma história a propósito.
Em 2001, poucos meses depois de chegar a Nova Iorque para representar Portugal na ONU, e de ter sido eleito para a vice-presidência do Conselho Económico e Social (ECOSOC), fui aproximado pelo meu colega do Reino Unido, que ia deter dentro em breve a presidência do Conselho de Segurança, pedindo a minha ajuda para se organizar uma ação conjunta entre esse órgão e o ECOSOC.
Seria uma jornada de um dia, já não recordo sob que temática, que se me afigurava relativamente neutral e até interessante. Eu estava encarregado de desenvolver um conjunto de ações para dar visibilidade ao trabalho do ECOSOC e uma ideia dessas vinha mesmo a calhar.
Perguntei-lhe se a China estava de acordo, porque o peso do G77 (grupo de países do Sul, onde a voz de Pequim era influente) era essencial. Garantiu-me que sim, que todos os cinco membros permanentes não criariam dificuldades. Achei "fruta a mais", mas falei com o colega camaronês que presidia ao ECOSOC e obtive luz verde para avançar.
As primeiras sondagens tornaram-me otimista. Procurei o colega iraniano, que tinha considerável poder de mobilização para um potencial bloqueio no G77, que, sem mostrar grande entusiasmo, disse que, por ele, não objetaria. Mas advertiu-me: "Não faças nada sem falar com o Bruno!" E lá fui à procura do simpático embaixador cubano na ONU. Na semana anterior, tivera-o a jantar em casa com a mulher. Achei que estava "no papo". Pois isso!
Bruno Rodriguez foi encantador, como sempre, começando por me dizer, com aquela memória de elefante que se cria no mundo multilateral: "Sabes que essa ideia já não é nova?" Eu não sabia. "Mas tens alguma coisa contra a iniciativa?", perguntei-lhe. Expliquei que a temática me parecia inóqua, que os restantes membros permanentes não pareciam ir criar dificuldades, que alguns "key players" do Sul que já tinha contactado também não objetariam. Porém, a influência de Cuba no G77 era grande, pelo que precisava do seu apoio.
Bruno olhou para mim, para a minha "naïveté", e disse-me: "Tens de perceber que não é o tema a tratar que interessa, porque o que importa é quem o propõe. Se essa iniciativa vem dos britânicos é porque interessa "a los yankees" e, Francisco, se a ideia interessa a Washington não nos interessa a nós. E posso assegurar-te uma coisa: os americanos fariam o mesmo, se fôssemos nós a ter a iniciativa. Só que nós nunca o faríamos, porque consideramos importante que o ECOSOC fique imune às iniciativas do Conselho de Segurança, em especial se vindas de certos países. Por isso, tenho muita pena, mas não podes contar com o meu apoio". E a ideia foi "por água abaixo". Quando expliquei, com pena, ao meu colega inglês que não pudera ser-lhe útil, fiquei com a sensação de que não estava à espera de outra coisa...
O Bruno Rodriguez de quem falo nesta história é hoje, nem mais nem menos, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Cuba. O mundo é pequeno.

Tentei explicar na CNN Portugal o que é o G77. Pode ver aqui

2 comentários:

Unknown disse...

Será inócua

Anónimo disse...

Sr. Embaixador, parece-me (ou estou errada?) que os vários G (7, 20, 77) vão ganhando relevo a medida que a ONU o perde. Na próxima assembleia geral da ONU não estarão presentes: Sunak, Macron, Modi,... além, claro, de Putin. Duvido que essas ausências resultem apenas de razões circunstanciais.
E obrigada por partilhar as suas "pequenas" histórias. Mesmo quando são leves, são História.

Bernardo Pires de Lima

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