sábado, setembro 16, 2023

Botero e o presidente


Em alguns países da América Latina, a assunção de funções de governo por um substituto, na ausência do titular efetivo do posto, tem uma consagração formal muito expressiva. Se um ministro sai para o exterior, por uma qualquer razão, a pessoa que fica responsável pelo seu cargo passa, de imediato, a ser designada por "ministro interino" e, como tal, a ser qualificada obrigatoriamente em cerimónias e na imprensa. Diga-se que, de certo modo, isso lhe confere um suplemento de autoridade e dá aos seus atos um significado diferente, como que colmatando o que poderia ser um vazio político.

No Brasil, o caso mais flagrante prende-se com as ocasionais ausências simultâneas do presidente e do vice-presidente da República. Neste caso, assume o cargo o presidente da Câmara dos Deputados. Se este estiver ausente, essa titularidade passa, sucessivamente, ao presidente do Senado e ao presidente do Supremo Tribunal Federal. Em alguns casos, estes titulares interinos fazem questão de assumir a plenitude dos direitos do cargo e mudam-se - nem que seja por escassos dias! - para o gabinete presidencial e recebem em audiência nesse cenário, com abundância de fotografias oficiais. Para a história divertida ficou mesmo o caso de quem, no precário exercício dessa fortuita e ocasional função, foi bem longe no usufruto das benesses logísticas a que a mesma dava lugar, requisitou um avião oficial e, com um grupo de amigos, foi visitar o Estado de onde era originário...

A prática europeia, pelo menos nos casos que conheço, parece ser bastante menos formal. Em Portugal, a um secretário de Estado que fica a chefiar um ministério na ausência do ministro não lhe passaria nunca pela cabeça intitular-se "ministro interino", do mesmo modo que - como uma exceção histórica que só confirma a regra - um presidente da Assembleia da República jamais seria tentado a mudar-se para Belém, durante a ausência do país do presidente da República. Cada terra com seu uso...

Vem isto a propósito de uma conversa que, há mais de 20 anos, um grupo de embaixadores na ONU (em rigor, deve dizer-se de "representantes permanentes", designação para os chefes de missões diplomáticas junto de organizações internacionais) estava a ter em casa do meu querido amigo e colega espanhol Inocencio ("Chencho") Arias, à volta de um almoço. Por qualquer razão, veio então à baila esta prática latino-americana. Alguns comentaram, de forma irónica, a profusão de "presidentes interinos" a que a mesma pode conduzir. Nem todos, porém, comungaram dessa visão ligeira.

Um dos colegas latino-americanos, aliás um dos mais qualificados entre todos os colegas que cruzei em Nova Iorque, pediu a nossa indulgência e, um tanto embaraçado, revelou: "Também eu, um dia, assumi por três dias as funções de presidente da República. Era o ministro mais antigo e coube-me ocupar o cargo. E, devo confessar-vos, não resisti: coloquei a faixa presidencial e, com a família, tirei fotografia oficial, com constituição na mão e bandeira por detrás. Com os diabos: aquilo só acontece uma vez na vida!".

O quadro do artista colombiano Fernando Botero, que ontem morreu, que tem o título de "El Presidente", é talvez cruel de mais, mas não resisti a utilizá-lo a ilustrar este post.

5 comentários:

Flor disse...

Não é cruel... é uma obra de arte :) Acho muita graça às pinturas de Botero.
Que descanse en paz.

afcm disse...

Um Homem que deixa beleza para se admirar por muitos e muitos anos.
Adoro as obras com as figuras sempre excessivas, mas com vida dentro.

manuel campos disse...


Pego no “Com os diabos: aquilo só acontece uma vez na vida!".

Fez-me lembrar uma historieta que em tempos me contaram, um sujeito que foi eleito na respectiva Assembleia como administrador de condomínio.
Pessoa apagada e pouco ambiciosa, com um emprego daqueles em que se deve ter reformado com o mesmo nível hierárquico de quando foi admitido uns 40 anos antes, viu ali uma oportunidade única na vida e apressou-se a mandar fazer cartões de visita com o cargo de “administrador de condomínio” em letras bem gordas.

Noutro registo, sei de alguém que enviava as mensagens e os avisos aos vizinhos condóminos do prédio e assinava nos seguintes termos:

O Administrador do Condomínio – Prof. Dr. Eng. Fulano de Tal

Nuno Figueiredo disse...

e a cadeira...aguenta?

manuel campos disse...


A cadeira aguentou e a menina não se sabe se engripou.

Se a história da cadeira nem consigo comentar, no outro caso acho mais infeliz dizer na cara da senhora que a filha é mais bonita, podendo ter dito que "sai à mãe" ou qualquer das outras frases de circunstância que se dizem nestas alturas (quem as diz, eu nunca caio daí abaixo, não vou mentir só para me armar em simpático).

Mas isto sou eu, que tal como a quase todos nós, não é tudo perdoado.


A brigada do Júlio de Matos ataca de novo

Pronto! Lá começaram os maluquinhos do costume a criar uma teoria da conspiração sobre a coincidência temporal nos acidentes aéreos de hoje....