O mundo acordou, nos últimos dias, para a tragédia que atravessa o Nagorno-Karabakh, um território do Cáucaso do Sul cuja soberania, desde o final da União Soviética, tem sido disputado pelo Azerbaijão e pela comunidade arménia que lá vive. Esta última chegou a reivindicar a criação de um Estado, designado Artsakh, que nunca obteve reconhecimento internacional.
Nas últimas décadas, vários sangrentos ciclos de guerra ocorreram no território, entre as forças armadas do Azerbaijão e da Arménia, sempre com tardias tentativas de apaziguamento feitas pela Rússia, que ali mantinha uma pouco eficaz "operação de paz".
O crescente apoio da Turquia às pretensões azeris, a fragilidade conjuntural da Rússia e a incapacidade militar da Arménia para conseguir acorrer aos cidadãos com essa origem que vivem no Nagorno-Karabakh terão estimulado o Azerbaijão a executar agora um derradeiro golpe de mão para se apossar da totalidade do território. Uma tragédia humanitária é expectável.
Quando, em 2002, fui para Viena chefiar a nossa representação junto da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), durante a presidência portuguesa da organização, o tema estava bem presente na nossa agenda.
A questão vinha a ser tratada, desde 1994, pelo chamado "grupo de Minsk", uma entidade criada no seio da OSCE para mediar o conflito, composta por 11 países (que Portugal, curiosamente, integrava), cujo trabalho negocial não tinha dado resultados visíveis, "to say the least".
Em Viena, dependente politicamente do "grupo de Minsk" e funcionalmente da OSCE, existia uma estrutura militar, o HLPG (High Level Planning Group). Devo dizer que, até aterrar na Áustria, eu nunca ouvira falar do HLPG.
Tempos depois da minha assunção de funções, o diplomata português que seguia o dossiê na nossa presidência, José Manuel Carneiro Mendes, transmitiu-me o convite do chefe do HLPG para que eu visitasse essa estrutura.
Fui então simpaticamente acolhido num andar central de Viena por um grupo multinacional de dez oficiais (idealmente seriam 13, mas havia países que estavam em atraso no envio dos seus oficiais), secretariados por uma simpática senhora, que me fizeram um "briefing" sobre a situação no terreno, a qual nada diferia das informações que o "Conflict Prevention Centre" da OSCE me transmitira.
Mas, afinal, para que servia o HLPG? O objetivo da estrutura era estar preparado para montar uma operação de "peacekeeping", logo após o estabelecimento de um acordo entre as partes, eventualmente a ser obtido pelo "grupo de Minsk".
Com exceção de algumas missões de observação no terreno, quando as partes assim o consentiam, o grupo vivia encerrado há oito anos naquele andar, com mapas desatualizados, sem um serviço mínimo de "intelligence" que o abastecesse de dados relevantes, sendo as "missões" da OSCE na Arménia e no Azerbaijão os seus escassos suportes informativos. Assim era desde 1994...
O ambiente, naquele escritório, era algo estranho. Entre um chá e um bolo que nos foi oferecido pela senhora, pressentia-se um sentimento de inutilidade por parte daqueles militares. No final, para coroar a minha visita, o militar que chefiava a entidade, um oficial suíço, ofereceu-me um canivete do seu país...
Na ingenuidade de que a razão podia prevalecer, nas semanas seguintes sondei discretamente os "major players" da OSCE, bem como as duas partes diretamente interessadas, com vista a tentar perceber se não seria possível fazer "destroçar" a tropa acantonada naquele dispendioso andar da capital austríaca. A minha ideia era fazê-los regressar aos respetivos países, reconstituindo-se o HLPG se e quando uma hipótese remota de acordo viesse a ser viável. A poupança orçamental seria significativa, fosse para os cofres da OSCE (200 mil euros/ano, à época), fosse para os países de onde os militares (de várias patentes) eram "seconded".
O que eu fui dizer! Com maior ou menor ênfase, não houve um só dos meus interlocutores que desse a menor abertura a essa minha "bizarra" ideia, a começar pela Arménia e pelo Azerbaijão. Para todos eles, se levada à prática, a minha proposta indiciaria um menor empenhamento internacional na resolução do conflito. E assim fracassou a minha inocente ideia. E por ali foi ficando o HLPG, desde há 29 anos...
Por estas horas, em que a hipótese de uma operação de paz no Nagorno-Karabakh deixou de poder sequer conjeturar-se, imagino que o "vigilante" HLPG possa estar em processo de "destroçar", como se diz na tropa. Ou, se calhar, ainda é cedo, porque encerrar uma estrutura institucional, em regra, demora bastante mais tempo do que criá-la...
Quando ouço falar nas "gorduras do Estado" e de gastos supérfulos, lembro-me tantas vezes do HLPG...
6 comentários:
Lembro-me de um amigo meu (este não era só conhecido), me ter contado há uns 15 anos que tinha acabado de descobrir por acaso um "HLPG" na sua área de tutela, mas nesse não havia nem chá, nem bolo, nem mapas desactualizados, nem mesmo pessoas porque ninguém lá punha sequer os pés (talvez houvesse canivetes).
Só havia o andar dispendioso, com que ele acabou depois de recolocar as pessoas noutros locais, onde já não passavam tão despercebidas.
Acabe-se de vez com este problema. O território é reconhecido internacionalmente como sendo do Azerbaijão e os arménios têm um país para onde ir.
É uma situação triste? É. Mas a verdade é que as "limpezas étnicas" que ocorreram na Europa depois da 2GM contribuiram para a paz prolongada que temos tido na nossa casa comum. Quando as etnias entraram em choque tivemos a guerra da Jugoslávia (e não da ex-Jugoslávia como se costuma dizer). Temos agora o gordo de Budapeste a levantar ondas com a Ucrânia por causa dos "húngaros étnicos" e nem me passa pela cabeça o que sucederia se a Roménia continuasse a ter uma grande população "saxónica" (já tem problemas, também, com os húngaros).
Na Hungria visitei uma aldeia na área da grande Budapeste que era de origem... sérvia mas, como ali é zona turística, talvez tudo se normalize.
Onde há misturas há sempre problemas porque também há uma etnia com poder sobre a outra. E quem tem poder, usa-o.
Os arménios são um povo martirizado mas que, ao contrário dos seus algozes curdos do início do Séc. XX, tem um Estado. Que recebam os seus irmãos vindos do Azerbaijão e que estes possam iniciar uma nova vida com paz para que também a Arménia possa ter paz.
A ONU devia estar no terreno com um sentido prático: promover a transferência segura e o menos drmática possível de todos aqueles que queiram deixar o enclave. Não quero acreditar que o Azerbaijão se opusesse a isto.
Por outro lado, era interessante saber o que o aliado russo da Arménia vai agora fazer. Calculo que, à semelhança do que acontece com os pérfidos ocidentais, a Rússia vá ajudar a Arménia economicamente, construindo casas e infraestruturas de apoio para os desalojados, não?
Uma tragédia humanitária é expectável.
Não vejo bem por quê. O Azerbaijão conquistou militarmente o enclave. Agora a guerra acabou, e em princípio a violência acabará também. Suponho que o Azerbaijão não vai começar a matar a torto e a direito todos os cidadãos de etnia arménia do enclave. Não acredito que o faça.
Naturalmente que haverá muitos arménios étnicos do enclave que se deslocarão para a Arménia, mas isso não constitui por si só uma tragédia humanitária - será uma migração como qualquer outra - só que, feita em muito melhores condições do que outras migrações, e com a promessa de boas vindas à chegada.
Já agora, concordo com Francisco F: é desejável, para a paz futura, que os arménios étnicos todos se reúnam no território da Arménia, abandonado o enclave no Azerbaijão. Não fiquemos tristes por isso ir (se fôr) acontecer.
Ainda bem que concorda comigo, Lavoura.
Só é pena que a mesma lógica não tenha sido seguida na Ucrânia. Se os "russos étnicos" tivessem ido para a Rússia, pouparíamos uma guerra ao mundo. Ainda por cima, com tanto espaço na Mãe Rússia!
Francisco F
Só é pena que a mesma lógica não tenha sido seguida na Ucrânia.
De que forma? Através da violência organizada?
Repare que eu não propugno a violência nem a limpeza étnica. Eu digo que é bom que os arménios do enclave migrem, voluntariamente, para a Arménia. Não digo, de forma nenhuma, que se deva forçá-los, através da violência ou da coação, a migrarem para a Arménia.
Lavoura,
Através da diplomacia! Mas como há estados que só percebem a linguagem da violência e do confronto, isso nunca seria possível.
Os "bons russos" a viver na Ucrânia tinham mais era que fazer a malas e irem viver para a Mãe Rússia, onde seriam certamente imensamente felizes. Em vez disso, optaram por tentar destruir o país onde viviam.
Na Transnístria, temos exemplo igual, com a agravante de aí serem, ainda por cima, uma minoria na própria região. Porque não partem para a Rússia?
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