quarta-feira, setembro 20, 2023

O pirata


A década de 80 estava a terminar, por esses tempos. 

Torci um pouco o nariz quando aquele membro do governo, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, me chamou e pediu que recebesse um determinado jornalista. A ideia era que eu pudesse transmitir-lhe, "off the record", a perspetiva oficial portuguesa sobre uma determinada questão de política externa. Como é de regra nestas coisas, o homem poderia usar essa conversa para refletir no texto a nossa posição, mas não ficaria autorizado a revelar a fonte. 

Acontecia que eu, uns tempos antes, eu tinha tido uma má experiência, num contexto similar, em que esse anonimato não fora respeitado, pelo que estava de pé um pouco atrás para levar a cabo o exercício.

A minha reserva tinha, além disso, uma outra razão cumulativa. A figura da imprensa com a qual me era pedido que falasse merecia-me as maiores reservas. Era um nome bem conhecido na praça, mas desse reconhecimento fazia também parte um historial de tropelias e de atitudes de duvidoso rigor deontológico. Contudo, a insistência da pessoa que me formulava o pedido fez com que eu aceitasse receber o homem.

No dia seguinte, lá se apresentou ele no meu gabinete. Histriónico, de gesto largo, dava-se ares de facilidade no manejo da temática que determinava a nossa conversa. Mas tudo correu bem.

Uns dias antes, aquele mesmo membro do governo tinha pedido que eu lhe apresentasse uma proposta com a lista dos ministros que poderia ser útil que o chefe do governo levasse consigo, numa visita que ia fazer a um importante país de expressão portuguesa, prevista para ter lugar semanas depois. 

Eu tinha colocado essa proposta numa "informação de serviço" mas, por qualquer razão, não a tinha ainda entregue. Esse papel estava em cima da minha secretária, no topo de uma pilha de outros, durante a conversa que tive com o jornalista. Tinha, no entanto, voltado as suas folhas ao contrário. 

Por uns escassos minutos, durante esse encontro, tive de me ausentar da sala. Quando regressei, fiquei com a sensação de que os papéis estavam numa posição ligeiramente diferente. Mas logo esqueci o assunto.

Passaram dois ou três dias. O membro do governo chamou-me. Quando entrei no seu gabinete, estava sorridente, tendo na mão o semanário em que o tal jornalista trabalhava: "Já leu o artigo? Está impecável. O homem sabe da poda. E você desconfiava dele, achava-o sem ética. Confesse lá: foi preconceituoso! Outra coisa: vem também aqui no jornal uma notícia um pouco estranha, com uma lista dos membros do governo que devem acompanhar o primeiro-ministro na ida a África. Lembra-se que este foi precisamente o assunto sobre o qual eu lhe tinha pedido uma proposta?"

Sem dizer palavra, passei-lhe para as mãos o texto da minha "informação de serviço". Num segundo, ele percebeu que as listas coincidiam, em absoluto. Olhou para mim, com um ar desagradado: "Você deu esta informação ao jornalista?". Respondi: "Não dei, como é óbvio. O que aconteceu é que, enquanto saí da sala, por uns minutos, ele "pirateou" esse documento. Pelos vistos, deixou a ética à porta do meu gabinete. Percebe agora melhor as dúvidas que eu tinha?"

Ontem, num almoço de amigos, falou-se do homem, sobre quem saltaram para a mesa várias histórias, nem todas edificantes. Guardei esta para hoje. 

9 comentários:

Luís Lavoura disse...

A ideia era que eu pudesse transmitir-lhe, "off the record", a perspetiva oficial portuguesa sobre uma determinada questão. [...] O homem poderia usar essa conversa para refletir no texto a nossa posição, mas não ficaria autorizado a revelar a fonte.

Procedimento muito interessante, que eu desconhecia.

Portanto, não se trata de o jornalista ter uma "fonte" confidencial, mas sim de um Governo utilizar um jornalista para dar a conhecer a sua posição.

Assim fico a saber melhor como devo interpretar certas "notícias" e as respetivas "fontes" não identificadas que leio, em particular, no "Economist". Não se trata de verdadeiras "fontes", mas sim de recados transmitidos através de alguém combinado para o efeito.

Nuno Figueiredo disse...

oh Lavoura, vá mas é dar uma volta ao bilhar grande!

manuel campos disse...


Se ao começar a ler uma notícia, nacional ou internacional, me deparo com “fontes não identificadas” fico logo por ali.
No caso das internacionais ainda é mais complexo pois quando identificam a fonte nem sequer, na maioria das vezes, nos é possível sequer saber se aquela pessoa existe ou se o nome foi inventado para dar um ar de seriedade àquilo tudo, apostando na velha máxima de que “se vem no jornal ou disseram na TV é porque é verdade”.

Lembro-me assim de um período da minha vida que ainda hoje é motivo de gozo nas tertúlias de amigos e conhecidos (friso sempre isto porque amigos tenho/tive muito poucos na vida, conhecidos é que tenho/tive muitissimos, uns mais “conhecidos” que outros, uns quase íntimos e outros quase desconhecidos).

Estava eu aí á frente de uma empresa de alguma dimensão (cerca de 600 pessoas) mas a atravessar uma fase difícil, dado que fortemente dependente dos valores das matérias-primas nos mercados internacionais numa fase de alguma volatilidade, portanto ou fechava ou investia.
Portanto iam saindo umas notícias nos jornais a dizer ou que ía fechar de vez ou que ía arrancar de vez, notícias muitas vezes postas a circular por entidades sem voto na matéria mas naturais interesses no que queriam ir transmitindo cá para fora.
E no dia seguinte lá começava eu a receber telefonemas uns atrás dos outros.
“Então isso sempre vai fechar?” ou “Então isso sempre vai para a frente?”, conforme os dias, quando eu respondia que nada estava decidido, lá vinha o inevitável “Mas não é isso que diz o jornal”.
Com a paciência e a delicadeza possível eu ainda insinuava que, sendo o PCA lá do sítio, era capaz de ter alguma informação em primeira mão (e até em última mão) sobre o tema.

Nada feito pois ainda levava com um “Isso é muito estranho, não é o que diz o jornal”, houve assim alguns telefonemas que não acabaram no mesmo tom em que tinham começado.
Mais ainda, quando os accionistas acabavam por esclarecer a situação, ainda recebia telefonemas do tipo “Afinal parece que tinhas razão”.
Se fosse hoje acho que os tinha corrido todos a “Daaahhh!”, mas era expressão ainda rara nessa época.

Estamos assim neste admirável mundo em que toda a gente acredita em tudo, o que permite que meio mundo ande a enganar alegremente o outro meio mundo e, como o balanço final fecha sem lucro ou prejuízo aparente para quem gosta de viver assim, toda a gente acaba contente e feliz.

Para acabar, pois se até dentro das famílias e dos grupos de conhecidos se “passam” recados através de terceiros, qual o espanto que a política seja em grande parte feita também disso ("et pour cause")?

PS – Tive uma situação semelhante a essa, também no fim dos anos 80, mas dentro dos quadros de uma empresa onde era director de Planeamento
A partir daí passei a deixar bem à vista em cima da secretária um papelito com a palavra “confidencial” no canto superior e criei uma situação divertida, pois várias pessoas foram sendo desacreditadas por contarem versões estapafúrdias dos acontecimentos, sem poderem sequer desculpar-se com a “origem” da informação.

J. Carvalho disse...

Curioso, não deixo de pensar
Quem será? Quem Será?
“era um nome bem conhecido”,
tinha “um historial de tropelias”,
“histriónico, de gesto largo”
Quem será? Quem será?
Pelo que se vê, deixou o tal semanário
Será que, por onde quer que ande
(se é que anda)
ainda tece e cria o que não se sabe?

manuel campos disse...


Nesta última empresa a que me refiro no Post-Scriptum havia um Director Comercial com quem não se sabia como lidar, tinha tanto de educado como de despistado.
E como é que se lida com alguém que perde os papéis todos e, assim que se fala no assunto, desata a pedir desculpas e a reconhecer as faltas?
E para mais pessoa dos seus quase 60 anos quando eu me aproximava dos 40 anos, mais que respeitável na maneira de estar, havia aquela distância delicada que temos para com alguém que por um pouco podia ser nosso pai.
Valia-lhe ter uma muito boa equipa, alguns deles tendo mesmo ido bastante longe profissionalmente.

Pois quando lá cheguei não demorou muito a que me desse conta que não valia a pena ir ter com ele e pedir-lhe os elementos de que precisava para o meu trabalho, dizia que sim cuidadosamente a tudo e no dia seguinte não se lembrava de nada.
Passei assim a enviar-lhe memorandos escritos mas perdia-os todos.
A situação só se endireitou minimamente quando passei a enviar-lhe os tais memorandos com uma data da semana anterior e com “2ª via” escrito à mão e a vermelho no canto superior direito.
Aí aparecia a correr no meu gabinete com um “Desculpe mas não sei o que fiz ao original, vou já tratar disto antes que esqueça”.
Outras pessoas chegaram-me a perguntar como é que eu fazia para ele me dar a prioridade que não dava a todos, claro que eu respondia que não fazia ideia, que nunca tinha dado por isso.

PS – Aquela 1ª empresa de que acima falei, a das notícias nos jornais, não "fechou" e acabou por “investir”, ainda lá está 30 anos depois.

afcm disse...

Ora aí está.
A imprensa independente está realmente em vias de extinção.
A "promiscuidade" entre jornalistas e políticos ( precisam uns dos outros e cobram favores uns aos outros, certamente), é um dos nossos problemas.

caramelo disse...

Não posso deixar de admirar a forma cândida como o Luis Lavoura diz certas coisas ou coloca certas questões. Mas é claro, meus caros, que os jornalistas servem frequentemente de porta vozes e instrumento do poder. São os chamados pés de microfone. Eu, peço desculpa, mas independentemente do acordo de cavalheiros que terá havido entre o jornalista e o governante, o serviço público foi cumprido pelo jornalista… é por isso que o jornalismo é uma profissão que é, ou deve ser, dura e arriscada, sendo um dos riscos o não ser recebido mais em gabinetes do poder, por falta de confiança.

Luís Lavoura disse...

caramelo

Será verdade que eu sou muito cândido e néscio.

os jornalistas servem frequentemente de porta vozes [...]. São os chamados pés de microfone.

Que um jornalista coloque um microfone à frente de uma pessoa importante, é normal e é a sua obrigação. Que uma pessoa importante chame os jornalistas para que eles lhe coloquem microfones à frente, também é normal e é a sua obrigação.

Agora, que uma pessoa importante instrua um jornalista, em privado, no sentido de este transmitir uma certa coisa que lhe é dita em privado, mas sem revelar quem lhe disse; e que o jornalista aceite fazer este papel de mensageiro - é que já me parece pouco aceitável - tanto da parte da pessoa importante como da parte do jornalista.

Francisco Seixas da Costa disse...

O Luís Lavoura não saberá, mas eu explico. Em toda a parte do mundo democrático (no resto, não sei) é vulgar dar a jornalistas informação de "background" sobre determinados assuntos sobre os quais estão a escrever. Não se trata de instrumentalizá-los ou fazê-los porta-vozes de determinadas ideias, mas apenas de lhes fornecer dados sobre determinado assunto. O jornalista ouve e, depois, escreve o que lhe apetece, eventualmente criticando a posição oficial. Desta forma, a única coisa que o jornalista não poderá alegar, ao escrever um artigo, é que desconhecia a posição oficial.

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