quarta-feira, setembro 13, 2023

Dia de Natália

Artur Boal

Eu tinha acabado de me mudar para Lisboa, nesse final dos anos 60. Uma noite, um amigo e colega de faculdade, Daniel Polónio, levou-me a um bar, situado numa cave, perto do mercado de Campo de Ourique, julgo que em frente à igreja, um local que nunca mais consegui localizar com exatidão. (Se algum olisipógrafo da noite tiver a amabilidade de lembrar o nome, que podia ser "Candeeiro" ou uma coisa assim, ficava muito grato). Nele tocava então Denis Cintra, filho de Lindley Cintra, no tempo em que as baladas "de protesto" estavam na moda.

A certa altura, com algum espavento, Natália Correia entrou na sala fumarenta. Era inconfundível pela sua postura, cabeça atirada para trás, ar desafiante, voz forte. Vinha com Ary dos Santos e um pequeno séquito. O espaço estava "à pinha". Recordo que se juntaram à nossa mesa, onde talvez houvesse amigos comuns. Por pouco mais de uma hora, estiveram por ali, ouvindo Cintra e alguns espontâneos, naquela espécie de baladeirismo vadio que à época se fazia. Partiram depois, imagino, para outras noites. Não recordo ter trocado qualquer palavra com Natália Correia.

Passaram uns anos. Natália era a proprietária daquele que foi um dos bares "políticos" mais famosos da noite lisboeta, o Botequim. Embora encontrasse quase sempre por lá alguns conhecidos, aquela nunca foi a minha praia. Mas não deixava, de quando em quando, de ir ali beber um copo, quase que por curiosidade antropológica, pela imensa graça que aquele local na Graça tinha em termos de frequência.

Numa noite dessas noites, depois de um jantar, creio que na transição dos anos 70 para 80, com umas eleições à porta, fomos lá com um amigo, o Luís Gomes de Abreu. A certa altura, na conversa, ele anunciou, em voz audível em outras mesas, que tencionava abster-se no sufrágio que teria lugar dias depois. 

O que ele foi dizer! A Natália e a sua boquilha avançaram logo para nós. Indignada, abancou na nossa mesa, encetando uma homérica discussão com o Luís, connosco a assistir, divertidos, à cena. A certa altura, o Luís, defensivo, atirou para a Natália: “Mas nós até estamos de acordo na política! Este meu amigo é que é de esquerda!” Desastre! De repente, passei a alvo de Natália Correia, com o Luís aliviado e o meu argumentário já um pouco debilitado pelo consumo líquido da noite. Já nem sei como aquilo acabou, lá para as três da manhã! Até o Dórdio Guimarães a veio chamar várias vezes!

A nossa vida foi andando, a morte apanhou, entretanto a Natália. Há não muito tempo, à volta de uma mesa de jantar, num local bem amável para copos e petiscos, ali pela Sé, do dono, Manuel Murteira, nosso amigo e amigo da Natália, ouvimos histórias deliciosas sobre ela e sobre o ambiente do Botequim. 

Recordou aquele inconfundível porteiro de cor cadavérica, o Bento, o empregado Bandola, bem como o Carlinhos do piano. Falou-se de Isabel Meirelles, a artista plástica surrealista, sócia de Natália Correia, que encontrei várias vezes em Paris, onde tive o gosto de a condecorar, figura que atribuiu o nome ao famoso "bife à Fritz", que era por servido no Botequim. E até veio à baila a história de um cliente dos Açores, que sempre chegava ao bar depois de jantar no Gambrinus, e que, sendo homossexual, revelou um dia que, quando vinha ao continente, tinha uma "dificuldade", porque só aceitava parceiros açoreanos e isso nem sempre era fácil em Lisboa...

Logo depois dessa conversa, deu-me uma de nostalgia e passei pelo Botequim. "Passei" é a expressão exata. Nos breves segundos que estive no bar senti-me como no fado da Amália. É que, de facto, "está tudo tão mudado" que "não vi nada, nada, nada, que fizesse recordar" a Natália Correia. Embora o ambiente parecesse animado, a onda não era, definitivamente, a nossa. (Outra vez!). Abalámos e fomos "dar de beber à dor" a um pouso mais ao nosso jeito. 

Natália Correia voltou entretanto a "aparecer-me", há poucos anos, quando uma editora me pediu que, na FNAC Chiado, ao lado de Manuela Eanes, de quem era amiga, apresentasse a reedição do seu livro "Descobri que era europeia". Foi uma oportunidade para visitá-la de novo.

No dia de hoje, se fosse viva, Natália Correia faria precisamente 100 anos. Devo confessar que não sou um fã incondicional da sua escrita, como nunca o fui de nenhuma das suas opções políticas em democracia, mas reconheço a Natália Correia uma intensidade única, uma presença que foi ímpar na sociedade portuguesa, onde sempre teve a coragem de dizer, em voz bem alta, o que pensava, mesmo que tal não estivesse a favor do vento que soprava. Concedo que é uma imensa banalidade e um lugar comum de trazer por casa, mas apetece-me dizer que fazem hoje falta figuras como Natália Correia. Quase que se imagina o que ela diria, nos tempos que correm...

3 comentários:

manuel campos disse...


Acho que não partiu, segue 2ª via.

A "onda" do Botequim já não é a sua nem de muita gente há muitíssimos anos.

Acabou quando Natália Correia, no seu "Carocha" e à força de muita embraiagem e muito acelerador, deixou de estar presente.

Unknown disse...

Nunca gostei do estilo declamatório e excessivo de Natália Correia. Mas tenho feito um esforço para distinguir a personalidade dos autores da qualidade das suas obras. Ainda que sobre a qualidade da obra desta, pouco possa dizer, por desconhecimento.

Reaça disse...

Natália, Ary...Havia estilos de gente que se tornavam mais refinados por ser no Estado Novo.
E só mesmo pelo Estado Novo.

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