terça-feira, setembro 05, 2023

Exegese de um comunicado


A reunião de hoje do Conselho de Estado - órgão de aconselhamento do presidente da República, relembre-se - acabou emitindo um texto sobre a Ucrânia:

"Quanto ao tema Ucrânia, foi reafirmada a solidariedade e a admiração pela resistência do povo ucraniano e reconhecido todo o apoio que Portugal – com plena concordância entre os órgãos políticos de soberania - tem prestado, nas suas múltiplas dimensões, nomeadamente política, diplomática, militar e humanitária. Foi, ainda, assinalado o compromisso de Portugal no processo de integração da Ucrânia na União Europeia e na NATO."

Interessante texto. Vale a pena relê-lo, nas suas três dimensões.

1. "... foi reafirmada a solidariedade e a admiração pela resistência do povo ucraniano". Uma afirmação "crystal clear", que exprime um sentimento que se sabe amplamente maioritário no país. Nota-se, contudo, a ausência de qualquer referência aos órgãos de Estado e governo de Kiev, frequentemente destacados e mesmo personalizados nas manifestações de apoio político internacional.

2. "... (foi) reconhecido todo o apoio que Portugal tem prestado, nas suas múltiplas dimensões", referindo-se depois a "fórmula" das quatro dimensões que governo e presidentes da República e da AR sempre repetem. É uma constatação em tom positivo, embora o "reconhecido" não vá muito longe em termos de elogio, sobre uma ação da responsabilidade do executivo, o qual sai, mesmo assim, confortado na valia das decisões que tomou, ao afirmar-se que tal foi feito "com plena concordância entre os órgãos políticos de soberania". 

3. "... (foi) assinalado o compromisso de Portugal no processo de integração da Ucrânia na União Europeia e na NATO." . Esta é a expressão para mim mais significativa. Depois da visita do presidente a Kiev, constatou-se que o "compromisso de Portugal" em cada um dos dois processos tinha ficado declinado, em termos de discurso, por Belém e pelo tandem S. Bento/Necessidades, em tons ligeiramente diversos, quer na sua ênfase, quer, em especial, no voluntarismo político e automatismo de etapas que lhes está subjacente. A expressão saída do Conselho de Estado, na sua relativa economia de entusiasmo, fica mais próxima do modo cuidadoso como António Costa tem abordado o problema.

Há dias em que vale a pena ler o que sai de uma reunião do Conselho de Estado, independentemente desse aspeto, neste caso despiciendo, que é saber o que lá realmente se passou.

11 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

A linguagem utilizada por Zelensky nos seus discursos públicos são directamente modeladas nas da ideologia dos EUA, que por sua vez se inspira numa longa e antiga tradição colonial do Ocidente.

A linguagem dum lacaio dos EUA nao podia ser diferente, so porque pertence à aliança da NATO.

Estes politicos que levaram o abraço fraternal aos nazis de Kiev, pensam que os Estados Unidos podem continuar a ser para sempre o pivô dos equilíbrios (ou melhor, dos desequilíbrios) planetários .

Mas é uma utopia conservadora (mantida com milhares de milhões de dólares, guerras e envios de armas), destinada, mais cedo ou mais tarde, a desabar nas rochas da dura realidade.

Francisco F disse...

Nessa sofisticada análise eu incluiria a utilização do termo "NATO" em vez de OTAN.
Como nós somos fanáticos pelo nosso idioma, "NATO" sugere-me que havia um agente da CIA infiltrado na reunião...

Unknown disse...

Gostava de saber em que é que se tem traduzido a solidariedade e o apoio do governo em relação à Ucrânia e à sua integração na UE. É que só vejo um António Costa dúbio e receoso de que lhe falte o dinheiro. Bolas, somos pequeninos em tudo.

manuel campos disse...


Por exemplo uma visita ao sítio do Kiel Institute (1) procurando por "Ukraine Support Tracker" talvez fosse útil para quem quer saber o que é que Portugal tem feito ou deixado de fazer, em termos comparativos com outros parceiros europeus, pelos vistos tão pequeninos como nós apesar de bem maiores.

É natural que qualquer governo esteja preocupado com um conjunto de aspectos que ultrapassam e muito os dias de hoje e tenha que gerir realidades (hoje bastante más) e expectativas (que têm forçosamente que ser boas).
E é bom que esteja e as vá gerindo, há muito Portugal para além da guerra.

Mas como sempre tenho dito, há que conhecer a vida das novas gerações.
E já vi que muito pouca gente a conhece ou quer saber disso, uns porque se estão borrifando, outros porque não têm descendência e o mundo "acaba" no dia em que eles "acabarem"(2).

Conciliar a imprescindível solidariedade com a Ucrânia com a não menos imprescindível solidariedade com os portugueses em dificuldades e/ou sem futuro era bonito.
É isso que acho que está a ser feito, talvez nem sempre bem, mas a ser feito com os tais cuidados que o bom senso impõe.

Mas como disse Descartes, o bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo, toda a gente acha que tem muito mais do que aquele de que precisa.

(1) Há muitos mais sítios onde quem queira estudar o pode fazer, não me dei ao trabalho de os citar, é só procurar se alguém não gostar do que este diz.
(2) Não falei de outros aspectos como o vasto conjunto de pessoas que nos cercam, muito solidárias com tudo mas incapazes de um donativo mesmo simbólico, é terreno onde evito meter-me pelo risco de ser injusto aqui ou ali com alguém em concreto.

Anónimo disse...

Fernando Neves
A relutância dos Estados mais entusiastas da adesão da Ucrânia à UE em aumentar o o orçamento da mesma, perspectiva o que aconteceria se tal acontecesse. Portugal seis um dos países mais prejudicado. Talvez continuassse a haver uma coisa chamada UE, mas não teria nada a ver com está.Muito menos com o seu objectivo

Carlos Antunes disse...

Caro Embaixador
Realmente a leitura dos seu blog é essencial para compreenderemos determinadas situações. A partir do comunicado/síntese do Conselho de Estado sobre a Ucrânia, conseguiu dar-nos a sua visão, nas diversas dimensões, do que se passou no CE quanto à questão ucraniana.
Por contraste, vejam-se as análises feitas pelos media, políticos e comentadores ao sucedido no mesmo Conselho de Estado:
Expresso - “Conselho de Estado muito tenso: Costa deixou Marcelo a falar sozinho”
Luís Montenegro - «Costa “amuado” no Conselho de Estado»
Observador -“Governados por uma criança mimada que fez birra e ficou em silêncio”
“Costa em silêncio (quase) absoluto, Marcelo ataca”.
Politólogo André Azevedo Alves - “Conselho de Estado vincou a tensão PR/PM”.
Público -“Marcelo fez reparos à gestão do dossier TAP e Costa ficou em silêncio”.
Carlos Magno (CNN) "António Costa sentiu-se encurralado no Conselho de Estado".
Anabela Neves "É provavelmente um Conselho de Estado sem grande história".
Mafalda Anjos (Visão) «Um Conselho de Estado “sui generis”: António Costa não quis falar».
Bernardino Soares - “O Conselho de Estado é uma espécie de guerras de alecrim e manjerona”.
Rui Calafate - «Os “dardos envenenados” de António Costa»
Diante destas esclarecedoras (?) análises sobre o que se passou no Conselho de Estado de ontem, com expressões como “ataca, encurralado, amuado, fez birra, ficou em silêncio, dardos, guerras,”, sinto-me tentado a propor que a análise política nos media passe a ser feita pelos jargões futebolísticos do Rui Santos (“o Marcelo da bola”) e dos restantes comentadores de futebol!
Pelo menos, as audiências tenderiam a subir!

J Carvalho disse...

E no fim Marcelo aparece a desmentir toda essa gente, diz que está melindrado, desmente o Montenegro. No CE não aconteceu nada disso, nem silêncios nem amuos, nada. Agora esperemos para ver o que é que esses encartados de mixordice irão dizer. O mais certo é passarem por cima, inventarem nova querela.

Flor disse...

O comentário de Carlos Antunes dá-nos a conhecer uma relação exaustiva e real do que as pessoas têm acesso a toda a hora nas redes sociais e afins sobre este assunto.

Tony disse...

Autêntica vergonha. Conselheiros de Estado, gente de elite e excelência cívica, por isso mesmo, escolhidos com altíssimo critério, verifica-se, com tristeza, que afinal, nessa escolha, terá havido algum engano, (alguma maçã podre). Uma tristeza.

Lúcio Ferro disse...

É total o divórcio entre estes "órgãos de soberania", o seu discurso redondo, e a maioria dos portugueses, aqueles que trabalham, que andam em transportes públicos, que vão ao supermercado e que têm de estar atentos à euribor. Elites da treta, sim, temos, vão a restaurantes da moda, entre uma garfada e um copo de tinto, desligados da realidade, vão bolçando a propaganda que lhes convém. Temos pena, a propaganda e a realidade são coisas diferentes; depois queixem-se quando esta "democracia" for ao charco. Boa tarde.

Nuno Figueiredo disse...

Concelho de Estado, diria.

Bernardo Pires de Lima

Leio no "Expresso" que Bernardo Pires de Lima vai para Bruxelas, reforçar a equipa de António Costa. É uma excelente notícia. O pr...