quinta-feira, setembro 14, 2023

O "pasodoble" da traição


(Vamos lá ver se consigo escrever isto escapando às pedradas morais do politicamente correto. Duvido, mas vou tentar).

Era um casal que recordo na casa dos 50 anos. Julgo que o marido teria uma qualquer ligação à minha família paterna, em Viana do Castelo. Em vida da minha avó, e ela morreu na primeira metade dos anos 60, eles iam visitá-la, algumas vezes ao ano, deslocando-se da localidade próxima onde habitavam.

A vida desse casal tinha, num passado já longínquo, atravessado uma crise. À senhora tinha-lhe fugido um dia o pé, e o resto, para uma traiçãozita romântica, de algumas sérias proporções, que terá abalado o matrimónio, embora não o arruinando em definitivo. Era precisamente o facto de constar que o marido tinha acomodado, talvez com exagerada complacência, o deslize da senhora que motivava algumas graçolas na ala masculina da nossa família.

Recordo que estamos a falar do final dos anos 50 e início dos 60, de uma cidade de província, onde, como em todo o país de então, prevalecia uma cultura predominantemente machista. Uma "traição" feminina era uma "desonra", uma "aventura" masculina era, pelo contrário, uma "ousadia". As coisas eram assim, goste-se ou não de as olhar hoje com outros olhos. Um marido traído era, para poupar palavras, um "corno", uma mulher enganada era apenas uma "coitada". Repito: era assim e não vale a pena "chover no molhado".

Eu era miúdo, ia a Viana com os meus pais umas três vezes por ano e, em algumas dessas ocasiões, acontecia o tal casal passar lá por casa. Com a idade que tinha, não fazia a menor ideia da historieta, nem os tais pecadilhos, se os conhecesse, seriam por mim entendidos. Contudo, a certa altura, comecei a notar que uma pessoa da nossa família, figura brincalhona por natureza, sempre que era anunciada a chegada daquele casal, começava a trautear, baixinho, uma certa música, que, mais tarde, vim a saber tratar-se de um conhecido "pasodoble", que era (e imagino que ainda seja) muito tocado nas touradas. Observei então que quase toda a gente sorria, ao ouvir aqueles acordes. E também que o trauteio era suspenso no instante da entrada do casal na sala, o qual, curiosamente, era assim recebido sempre num ambiente muito risonho, que os visitantes seguramente atribuiam ao regozijo provocado pela sua aparição. Por mim, um dia, perdida a inocência, lá cheguei à explicação de tudo.

Com os anos, na minha família paterna, o trautear desse "pasodoble" passou para sempre a ser usado como referência implícita a qualquer história de traição feminina (nunca masculina, machismo oblige). E esta referência foi-se espalhando risonhamente pela minha geração e dos meus primos (a geração seguinte não irá prolongar esta memória, porque ninguém lha transmitiu, podem ficar sossegados as/os puristas). E, ainda hoje, se alguém, entre nós, é ouvido a trautear a melodia, é certo e sabido que vem aí a caminho alguma historieta de "gossip" picante...

Há umas semanas, passei pelo que resta da praça de touros de Viana do Castelo, na Argaçosa, junto às Azenhas do Dom Prior. Está agora revestida de uma estrutura, julgo que metálica, para a preparar para um qualquer destino desportivo. E como a todos nos acontece em certas alturas, perante um determinado estímulo de memória, dei comigo a assobiar uma música. Adivinharam: era esse "pasodoble". E lembrei-me então desta história. Isto é como as cerejas.

9 comentários:

P. Valente disse...

Engraçada esta memória. Faz-me lembrar uma velha expressão, a propósito dos maridos traídos, que ouvi ainda a pessoas mais velhas:
"Pô-lo a correr atrás do cavalo do Zé Casimiro". Aludindo ao célebre cavaleiro tauromáquico José Casimiro (1881-1950).

Ou da seguinte quadra, dirigida a um marido de Campo Maior, na mesma situação:

Acabou tudo em melhor
Cada qual no seu terreno
Ela em Campo Maior
Ele no Campo Pequeno

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Com essa bela história, hoje a banda sonora do meu serão vai ser uma playlist de pasodobles. Adoro!

Nuno Figueiredo disse...

por una cabeza...

manuel campos disse...


"Things Ain't What They Used to Be", do título de um conhecido standard de jazz de Duke Ellington.
Muito mudou com a geração que agora tem à volta dos 50 anos (a dos meus filhos) e então com a geração à volta dos 20 anos (a dos meus netos), a diferença é abismal.

Desde há 60 anos para cá conheci “cornos” e “coitadas” mas também conheci “cornas” e “coitados” (“Pardon my english”).
Sou dos que nunca teve ilusões de que “it takes two to tango” e que não existem “brigadas” femininas dedicadas a desviar do bom caminho os maridos das outras.

Bastou olhar toda a vida à minha volta e não ser demasiado ingénuo.
Isso sempre aconteceu, ainda que fosse mais fácil acontecer numa grande cidade do que numa pequena cidade, na grande vira-se a esquina e ninguém nos conhece, na pequena não vimos ninguém e toda a gente nos viu.
Sendo o número de mulheres e homens na idade activa para estas estatísticas muito equivalente, sejam solteiros, casados, divorciados ou viúvos, não me venham cá com coisas de que os homens isto e aquilo, o somatório das várias combinações de casais possíveis nos vários estados civis disponíveis fecha a zeros como é evidente, aritmética pura.

O que acontece é que a maneira como uns e outros se apresentavam perante a sociedade que os cercava era diferente, fruto do modo como na altura estas situações eram encaradas e isso não tinha só a ver com estarmos “aqui”, não era muito diferente noutros países menos “fechados”, a cinematografia europeia da época está aí para o provar (a americana não conta muito, sabe-se porquê).
Este tipo de assuntos não era encarado da mesma maneira entre homens ou entre mulheres (escrevi “era” e não foi por acaso), em parte devido a uma espécie de “solidariedade” mais forte no masculino do que no feminino, há até uma anedota antiga que visava abordar o modo como ambos os lados viam este tipo de situações.

Entretanto “as coisas já não são o que eram” e a geração dos meus filhos olha tudo isto com uma louvável indiferença, só ultrapassada (a grande velocidade) pelo modo como a geração dos meus netos a vê, também por aí estamos a entrar num mundo novo.

Segue a anedota pois para as pedradas morais do politicamente correcto cá estamos, só as atira quem está a fugir de que lhe sejam atiradas.

Uma senhora chega a casa só de manhã.
O seu marido pergunta onde esteve e ela responde que dormiu em casa da melhor amiga e mais não diz.
Ele telefona às 10 melhores amigas dela e todas lhe dizem que há semanas que não sabem dela.
Um senhor chega a casa só de manhã.
A sua mulher pergunta onde esteve e ele responde que dormiu em casa do melhor amigo e mais não diz.
Ela telefona aos 10 melhores amigos dele, nove confirmam que ele lá dormiu e o 10º de que não só lá dormiu como ainda lá está a dormir.

manuel campos disse...


Um amigo meu acaba de me telefonar da Guarda onde almoçou na "Colmeia" e confirma todo o bem que aqui disse do local.

afcm disse...

As coisas ( ou melhor, o olhar com que as vemos), mudaram, mesmo. Há uns anos, dizia-se de um homem que gostava de "mijar fora do penico", como se diz na Beira, que "é mulherengo, mas é bom homem" ; hoje, diz-se e sente-se :"é bom homem, mas é mulherengo".
Também historieta, nos anais das croniquetas judiciais, conta-se que um determinado cavalheiro, tendo-se visto sob o fardo da censura social por via da infedilidade da sua excelsa esposa,decidiu, in extremis, pedir o divórcio em tribunal.O divórcio foi decretado, com "culpa da mulher" ( era assim que então se imputava subjectivamente a ruptura do casamento).
Não satisfeito com a sentença, o cavalheiro começou a fazer sucessivos pedidos/requerimentos ao processo, com vista a que a sentença fosse tornada pública em Jornal da região. O juiz foi sempre indeferindo ( já que a publicitação da sentença em qualquer jornal que fosse não estava prevista na lei). Sem desistir, o Cavalheiro continuou insistindo nos requerimentos . Um pouco farto e cansado, o Juiz lavrou despacho do seguinte teor : "PASSE-SE ALVARÁ de CABRÃO".

(Hoje estendi-me....)

Anónimo disse...

Por una cabeza ... de un noble potrillo

Flor disse...

Nuno Figueiredo "Por una cabeza" é um lindo tango de Carlos Gardel brilhantemente dançado por Al Pacino no filme "Perfume de Mujer".

Flor disse...

Sr. Embaixador, achei graça à história que contou mas é bem verdade e isso já passou comigo que qualquer coisa que ficou lá no fundo da memória e um dia de repente vem á tona e nem sabemos porquê. No seu caso foi a antiga Praça de Touros. Teve tudo a ver. :)

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