sábado, outubro 10, 2020

Os filhos ilegítimos de Trump


Não sei como se chamam, nem sei como chamar-lhes. É uma raça política estranha, que vive num registo cheio de contradições, se calhar em sintonia com este estranho e novo tempo – o qual, no discurso ácido de que agora se alimentam, chega a parecer velho. Às vezes, parecem de uma esquerda radical, outras vezes chegam a tresandar a uma direita velha e relha.

O fim do mito soviético, enterrado nas pedras do muro derrubado em Berlim, tornou muitos deles órfãos de um passado político do qual, curiosamente, nem sempre haviam sido seguidores incondicionais. Mas a desaparição ou falência de um certo tipo de partidos, em países onde a esperança já teve melhores dias, acabou por conduzi-los à “terra de ninguém” onde hoje vivem.

É difícil catalogá-los numa mesma prateleira, sendo que o único denominador comum entre todos parece ser a sua sedução por modelos autoritários, a recusa da globalização e a identificação caricatural que fazem das democracias liberais com o neo-liberalismo mais maléfico. Têm dois alvos de eleição: a Europa integrada, tida como símbolo do regresso da Alemanha ao lugar de comando, e um mundo ocidental sob a matriz da NATO.

O principal farol que os ilumina é a figura de Vladimir Putin, visto como o chefe da resistência a um mundo que diabolizam. Alguns alimentam uma discreta sedução por figuras como Orbán. Se lhes perguntarem por Lukashenko, dirão que é para manter no lugar, quase apenas e só porque o líder bielorrusso desagrada àqueles que eles detestam. O Donbass é um seu lugar de culto e o teste do algodão é a resposta à pergunta sobre se a Crimeia é ou não legitimamente russa.

Erdogan é simpático a muitos. Maduro a outros tantos. Apoiam quem mantiver Cuba “do outro lado”. Olham com bonomia divertida a Coreia do Norte, pela irritação que provoca em quem eles não gostam. No Médio Oriente, protegem Assad e o Irão. Mas não é isso contraditório com a simpatia por Ancara? A lógica não é o seu forte e mandam às urtigas a coerência.

A irónica novidade é que Donald Trump é o grande culpado da sua reconciliação episódica com os Estados Unidos – depois de uma vida que alimentaram contra o satã yankee. Por isso, detestam a América de Biden, os democratas, tidos por cúmplices de uma Europa feita à medida dos interesses que desprezam. Se pudessem, davam cabo de Schengen, recuperavam o sentido nacional, último bastião do novo “no passarán”. Por essa razão, bateram palmas ao Brexit, vendo o afastamento do Reino Unido como uma oportunidade para diluir uma União Europeia que já não têm como projeto redentor.

É bem revelador do estado a que chegaram as coisas ouvir e ler esse discurso de sobrolho cerrado, adjetivando duramente os adversários, numa onda de desespero que, há que reconhecer, deixou de ter um porto político seguro de abrigo. Alguns andam pelas graves trincheiras das redes sociais, outros palestram declarações chocantes.

Uma coisa me parece evidente. Esses órfãos políticos são hoje os filhos ilegítimos de Trump. Pelo menos, até ver.

7 comentários:

Grunho Xuxa disse...

Contra o Islão, chouriça e garrafão!

Take Direto disse...

A derrota de Trump nas urnas será excelente para deixar estes filhos ilegítimos órfãos de uma vez.

Anónimo disse...

O Jose Manuel Fernandes???

Anónimo disse...

Ankara e o Irao dao-se lindamente, por si so admirar a logica revisionista da turquia actual ou do Irao, nao e razao para se ter alguma contradicao. E obvimanete a turquia nao e erdogan.
A critica tb poderia ser feita de um qq outro lado pondo em casa o estado do actual sistema ocidental. Se trump foi eleito, nao foi so devido as gracas de russos e afins, uma quantidade de americanos, por uma razao ou por outra, votou em trump (nao estou, obviamente a falar das questoes das maiorias, etc. Muitos milhoes de americanos votaram em trump e isso e significativo)
Creio que um erro da sua analise e achar que apenas uma certa esquerda quasi comunista se reve em algumas atitudes de putin. tb ha uma direita radical que o faz.
O mundo ocidental sobre matriz da nato e outras estorias significou a perda de industria qualidicada em muitos paises para beneficio de antigos paises terceiro mundistas, seja turquia china, vietname e afins. Os genios de um certo modelo capitalista ocidental acreditaram que o melhor era sub empreitar tudo a china, que de certo mais cedo ou mais tarde se tornaria democrata... De uma naivete indizivel. Perdeu-se muita industria e a china ficou na dela. De certo que em certos meios alemaes a alegria e grande, mas o beneficio da alemanha nao significa o da europa, apesar da qualidade da lider que tem. Por ca uns quantos infelizes dignos de um pais tropical pensam que o futuro do pais esta no turismo, com uma geracao inteira que teve partir para arranjar trabalho condignamente pagos para as suas qualificacoes.
Tretas sr.ambaixador, sao tudo tretas.















MANOJAS disse...

Sr. Embaixador leia no Diário de Notícias o artigo "A nova velha Guerra Fria ou como o Ocidente perdeu a Rússia". Na verdade quem perdeu a Rússia foi a Europa e não me parece que tenha ganho alguma coisa com isso. Veremos, embora eu já talvez não.

Anónimo disse...

"em quem eles não gostam" - errado
"naqueles de quem não gostam" - certo

... porque não se "gosta coisas" mas sim "de coisas"

E. Dias disse...

Meu Caro Senhor,
Se por acaso conhecesse alguém que eu conheço não lhe teria feito retrato mais fiel! Ele é tudo o que descreve, deixando-me por vezes atarantado com a falta de coerência, a não-percepção do mundo em que vive, a ignorância crassa sobre tudo o que não lhe convém, e a falta de noção do mal que ele viveria o seu modo de vida caso fosse posto em prática as coisas que advoga...

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...